O retrato das vítimas de Charles Manson na cobertura de sua morte

Gabriel Leite Ferreira
Observatório de Mídia
6 min readDec 27, 2017

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Jesus Manson: stencil retratando o criminoso Charles Manson com uma coroa de espinhos (Foto: Gabriel Leite Ferreira)

No dia 19 de novembro de 2017 morreu, aos 83 anos, Charles Manson, um dos criminosos mais famosos dos Estados Unidos. No fim da década de 1960 ele fundou a Família Manson, comunidade que pregava a chegada do Apocalipse por meio de uma guerra racial sem precedentes. Sua personalidade cativante e dominadora arrebanhou seguidores, todos à margem da sociedade, e entre 1968 e 1969 Manson planejou uma série de assassinatos com o objetivo de dar início à tal guerra. As mortes foram todas cometidas por sua Família, sendo ele o mentor intelectual dos crimes.

A chacina começou no dia 9 de agosto de 1969, com a morte da atriz Sharon Tate, grávida de oito meses, morta junto a outras seis pessoas presentes. No dia seguinte, a Família matou o casal Rosemary e Leno LaBianca. Os assassinatos ganharam repercussão nacional, e Manson e mais quatro membros da Família foram presos naquele mesmo mês. Manson foi sentenciado à morte, mas teve sua pena comutada pela prisão perpétua.

Desde sua condenação, Manson se tornou um símbolo do fim do sonho hippie e, consequentemente, um ícone da cultura pop. Já à época de seu julgamento circulavam gravações do tempo em que ele se aventurou pela música — os Beach Boys chegaram a reinterpretar uma composição dele em 1968. Décadas se passaram, mas a mística permaneceu intacta: o Guns N’Roses gravou sua música, bem como Marilyn Manson, que inclusive se inspirou no assassino para criar seu nome artístico. A banda de indie rock Kasabian pegou seu nome emprestado de Linda Kasabian, uma das integrantes da Família.

Suas ideias e feitos brutais estão cravados no imaginário norteamericano. Portanto, a notícia de sua morte foi motivo de grande audiência — houve até mesmo quem a lamentasse. Diante disso, resolvi fazer uma pequena análise da cobertura do assunto pela mídia brasileira, focada na extensão das matérias e no espaço dedicado às vítimas de Manson. Baseei-me em três veículos nacionais: o G1, o EL PAÍS e a VEJA.

Manson durante seu julgamento pelo caso que ficou conhecido como “Tate-LaBianca murders” (Foto: Reprodução)

Os dados

O G1 publicou 8 matérias sobre Manson, entre o dia 4 de janeiro, data de sua primeira internação, e o dia 19 de novembro, sua morte. Dessas, 3 falavam sobre seu estado de saúde, 3 abordavam projetos cinematográficos relacionados ao criminoso (incluindo aí o próximo filme de Quentin Tarantino), uma noticiava sua morte e uma dissecava sua influência na cultura pop.

‘Serial killer’ Charles Manson é internado em estado grave nos EUA: 1.323 caracteres, 262 sobre as vítimas;

Charles Manson está muito fraco para ser operado de hemorragia interna: 1.692 caracteres, 180 sobre as vítimas;

Hollywood rodará filme sobre assassino em série Charles Manson: 1.545 caracteres, 203 sobre as vítimas;

Quentin Tarantino planeja filme sobre o ‘serial killer’ Charles Manson: 2.343 caracteres, 344 sobre as vítimas;

Charles Manson não vai ser o tema principal do próximo filme de Quentin Tarantino, diz diretor: 1.789 caracteres, 376 sobre as vítimas;

À beira da morte?: Charles Manson volta às manchetes nos EUA com legado de racismo, conspirações sobre os Beatles e sangue: 3.222 caracteres, 719 sobre as vítimas;

Charles Manson morre aos 83 anos nos EUA: 9.487 caracteres, 719 sobre as vítimas;

Charles Manson e a cultura pop: veja bandas, filmes e série relacionados ao assassino: 5.090 caracteres, 670 sobre as vítimas.

O EL PAÍS publicou 4 matérias, entre os dias 12 de julho e 21 de novembro, sendo uma sobre o próximo filme de Tarantino, 2 sobre sua morte e uma sobre as moças da Família.

Tarantino vai filmar os assassinatos da Família Manson: 2.835 caracteres, 584 sobre as vítimas;

Charles Manson, o assassino mais famoso dos EUA, morre aos 83 anos: 3.362 caracteres, 747 sobre as vítimas;

Que fim levaram as ‘garotas Manson’?: 9.286 caracteres, 676 sobre as vítimas;

O segredo em torno do corpo de Charles Manson: 4.339 caracteres, 390 sobre as vítimas.

A VEJA, por sua vez, veiculou 6 matérias entre os dias 4 de janeiro e 21 de novembro, sendo uma sobre sua internação, 2 sobre sua relação com Hollywood, uma sobre mulheres que se envolvem com homens monstruosos (Manson planejou se casar com Afton Burton, moça de 26 anos), uma sobre sua morte e uma sobre seu impacto no rock.

‘Serial killer’ Charles Manson é internado em estado grave: 1.789 caracteres, 523 sobre as vítimas;

Tarantino planeja filme sobre assassinatos de Charles Manson: 1.478 caracteres, 401 sobre as vítimas;

O fascínio do mal: mulheres que amam monstros como Manson: 4.213 caracteres, 723 sobre as vítimas;

Hollywood rodará filme sobre assassino em série Charles Manson: 1.449 caracteres, 203 sobre as vítimas;

Assassino Charles Manson morre, aos 83 anos, nos EUA: 1.253 caracteres, 328 sobre as vítimas;

As conexões roqueiras de Charles Manson: 3.939 caracteres, 441 sobre as vítimas.

Sharon Tate, a mais célebre vítima de Mason (Foto: Tumblr)

E aí?

Comparando-se os dados dos três sites, chama atenção a profunda discrepância entre o número de caracteres das matérias e o número de caracteres destinados às vítimas. Levando em conta a aura que se criou em volta da vida de Manson, é difícil taxar essa característica como pura coincidência.

Um fato: tragédias dão audiência, por mais insensível que possa soar. No caso das Tate-LaBianca Murders isso é explícito, uma vez que um dos assassinatos envolveu uma personalidade famosa, a atriz Sharon Tate. Contudo, a fama de Manson é o centro da polêmica aqui. Todas as matérias analisadas traziam-no como sujeito — o que é até mesmo óbvio, já que o fato noticioso era seu falecimento — , mas, invariavelmente, deixavam suas vítimas em segundo plano. Para citar um exemplo prático, somente uma matéria contava com foto de uma das pessoas assassinadas.

Vale lembrar que Tate era uma atriz conceituada à época, apesar da pouca idade (26 anos), além de casada com o diretor Roman Polanski. Ela era, inegavelmente, uma pessoa importante. Por que, então, não publicar uma matéria sobre sua carreira? Rosemary e Leno LaBianca eram um casal de anônimos, mas não estariam eles também sujeitos aos critérios de noticiabilidade? Por que, afinal, o lado mais sombrio de histórias escabrosas sempre chama mais atenção?

Leno e Rosemary LaBianca, casal de comerciantes mortos pela Família um dia depois da morte de Sharon Tate (Foto: CBS News)

Não tenho base teórica para discutir profundamente todas essas questões, mas estou certo de que a glamourização de crimes como os da Família Manson tem relação com a resposta. Sua presença na cultura pop alcançou um nível comparável ao de mártires — vide a fotografia que abre esse texto. Não julgo o fascínio que ele possa despertar, pois aí entram questões subjetivas, mas julgo, sim, o papel do jornalismo diante disso. O que é mais correto: divulgar e exaltar tal glamourização ou voltar o foco para o lado mais prejudicado, isto é, as vítimas? É impossível não lembrar dos infames programas policiais brasileiros, como Brasil Urgente e Cidade Alerta, que se baseiam exclusivamente no sensacionalismo e estão pouco ou nada preocupados com a reparação de violências estruturais.

É claro que a história não pode ser esquecida, mas não estão nos lembrando demais dela?

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