Aula de Jornalismo na publicação do roubo do Enem

Isaque Costa
Observatório de Mídia
4 min readDec 19, 2017

No dia 30 de setembro de 2009 a jornalista Renata Cafardo, recebeu uma ligação na redação do jornal Estadão, que iria impactar a vida de quatro milhões de estudantes de todo o Brasil. Um homem afirmava ter roubado a prova do Enem e queria vende-la por 500 mil reais.

Cafardo, especialista na área de educação, de imediato queria ir encontrar Gregory Camilo, responsável por negociar a venda das provas, mas seu editor na época foi contra a ideia de ir encontrar o até então suspeito do possível roubo. Após convencer seus colegas de trabalho, montaram uma mini operação para que ela pudesse ter contato com a prova. E seus superiores determinaram que ela logo de cara deveria deixar claro que o Estadão não comprava informação.

Diferente de outros veículos de comunicação, como a Folha de São Paulo e a revista Época que não levaram à sério a chamada que informava o roubo da prova do Enem, Renata Cafardo retornou a ligação e marcou um encontro em um café próximo a sede do Estadão, para que pudesse ver se realmente tinham a prova. Foi ao encontro com dois colegas de trabalho, Sergio Pompeu e o fotógrafo Evelson de Freitas, que ficaram de longe para fotografar os homens que iria encontrar ela, gravadores nos bolsos e uma única ordem de seus superiores, falar em alto e bom som que o jornal Estado de São Paulo não compra informação.

Em uma palestra ministrada na Semana Estado de Jornalismo em outubro de 2017, na sede do Estadão, a jornalista relata que chegou ao local do encontro muito nervosa, e que de tão tensa não conseguiu cumprir a única ordem que lhe foi dada. Sentou na mesa com os dois criminosos e pediu para ver a prova. Para que pudesse depois confirmar a veracidade do documento, decorou uma questão e a devolveu, disse que voltaria para a redação e entraria em contato com eles assim que tivesse a resposta de seus superiores em relação ao dinheiro. Fato que não aconteceria.

Os editores Ricardo Gandour, Mar­celo Beraba e Luciana Constantino, reu­nidos com Renata Cafardo e Sérgio Pompeu, decidiram não publicar a história de imediato. Precisavam confirmar que era mesmo o Enem. Por já ter trabalhado na área de educação, tinha contato com fontes importantes, uma delas era o na época ministro da educação, Fernando Haddad, assim entrou em contato com o Ministro e ditou a questão que tinha memorizado. Haddad entrou em contato com o MEC para que confirmassem se a questão era realmente do Enem. Após horas de espera, Fernando Haddad e o presidente do Inep, Reynaldo Fernandes, confirmaram o vazamento do Enem, para a repórter.

Depois de 17 horas de trabalho e com pouco tempo restante antes do fechamento do jornal do dia seguinte, Renata Cafardo conseguiu publicar o furo mais importante do ano de 2009, três dias antes da aplicação da prova para estudantes do Brasil inteiro. Esse caso é uma verdadeira aula de como se deve fazer uma apuração antes de publicar um furo jornalístico. Verificou os fatos de forma criteriosa, e ouviu as partes de maneira adequada, quando esperou a confirmação de Fernando Haddad e demonstrou muita coragem e determinação.

Após a veiculação da matéria Fernanda foi ameaçada de morte e protegida pela polícia. Depois de serem identificados através das fotos feitas pelo fotógrafo do Estadão, os criminosos foram condenados. O Enem foi adiado e a prova foi aplicada com sucesso posteriormente. Hoje o Exame Nacional do Ensino Médio tem credibilidade, mas o roubo de 2009 retardou a consolidação do exame no Brasil no que se diz respeito a sua confiabilidade.

Um episódio desses reafirma aquela visão de que para fazer Jornalismo de qualidade o repórter precisa ir às ruas e estar em contato com a notícia pessoalmente. É possível sim fazer uma matéria séria e interessante por telefone e através de emails, mas os textos que mais instigam o interesse do leitor são aqueles que o contato com as fontes fica evidente.

Nos dias de hoje o Jornalismo que copia textos de vários sites e recriam as notícias é muito comum, e por muitos profissionais é considerado um Jornalismo sem alma, mas por outros se gerar muitas visualizações já está valendo.

Renata Cafardo brincou na palestra na semana de Jornalismo do Estadão, que fez a matéria da sua vida, mas não teve a capa da sua vida, devido ao tempo mínimo que tinham para o fechamento do jornal, assim não foi possível fazer uma capa muito elaborada. Essas 17 horas que a jornalista trabalhou para confirmar os fatos e publicar o furo que mudou sua vida profissional, é um exemplo de que da para fazer Jornalismo de qualidade, precisa ter coragem, determinação, curiosidade e sempre ir atrás da verdade, preceitos básicos e talvez perdidos.

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