Jornalismo, ética e voyeurismo

Thais Barion
Observatório de Mídia
6 min readNov 16, 2017

Você conhece a história do livro “O Voyeur” de Gay Talese?

Se não, vou contar resumidamente para avançarmos às questões éticas e morais que envolvem não só o livro, mas o jornalista quem o escreveu em relação ao papel do jornalismo. Sobre a ótica da legislação brasileira relacionada à Americana.

Gay Talese recebeu uma carta em 1980. Um homem relatou ter comprado um motel no Colorado (Manor House Motel) e construído uma estrutura no sótão dos quartos, com buracos e um sistema aparentemente de ventilação para bisbilhotar a vida sexual dos hóspedes, sem que fosse visto, obviamente. Na carta, o homem também o convida a conversar e a conhecer seu motel. Esse homem é Gerald Foos, que concorda ajudar Talese com um livro sobre ele sem que seja identificado. A curiosidade do jornalista o levou a aceitar de Foos os seus escritos durante os próximos anos, mas não sabia ainda se iria publicá-los.

Resumindo: O livro foi publicado 35 anos depois, após Foos ter concordado em ter seu nome usado. Grande parte da obra, consiste nos relatos de uma espécie de diário de Foos, que fazia anotações do comportamento sexual de seus hóspedes, considerando-se um pesquisador das ações humanas.

Discussões éticas

Muitas controvérsias em termos jornalísticos apontam para a não fidelidade de certos relatos de Foos, como por seus escritos datarem de 1966, sendo que a compra do imóvel foi realizada em 1969. Talese quase não publicou seu livro temendo estas informações incorretas. Ele mesmo diz não ter certeza em poder confiar em sua fonte. Mesmo assim, publica argumentando que certas informações poderiam ser alteradas nas próximas edições.

Conforme estabelece o código de ética Americano, nem rapidez nem formato são desculpa para informações incorretas, ao mesmo tempo que permite a atualização e correção ao decorrer da vida da notícia. Isso mostra que “as questões éticas raramente são claras. Quase sempre são confusas. O desconcertante avanço da tecnologia, a complexidade dos padrões culturais, o pluralismo dos estilos de vida e dos valores, tudo isso torna difíceis as decisões morais” (OVERBERG, 1999).

Já o art. 2, inciso I, do Código de Ética dos jornalistas brasileiros, “a divulgação de informação, precisa e correta, é dever dos meios de comunicação pública, independente da natureza de sua propriedade”. Assim, é possível desvincular esta obra do mundo jornalístico para a ficção: Dar um novo nome a este gênero, agora conhecido como New Journalism, não justifica o não seguimento ético jornalístico. Ainda neste âmbito, segundo o art. 3, os meios de comunicação se pautarão “pela real ocorrência dos fatos e terá por finalidade o interesse social e coletivo”. O livro não apresenta este interesse público, mas sim o interesse do público: na maioria das vezes fofoca e entretenimento barato.

Aposto que esta indecisão de publicar ou não, seja um dos motivos que levou Talese a demorar tanto a decidir sobre sua obra. Mas será que Talese ia ficar esse tempo em contato com Foos e sua história, se realmente não tinha a intenção de publicar? Ou ele iria divulgar o nome mesmo sem consentimento? Se isso tivesse acontecido, teria violado à ética jonística brasileira, pois “é dever do jornalista respeitar o direito à privacidade do cidadão”. E mesmo com a permissão do voyeur, essa imagem e honra poderia ter sido afetada da mesma forma. O código de ética resguarda a origem e identidade das fontes quando o jornalista considerar correto e necessário.

Isto se torna um dilema: O jornalista não pode arcar com toda a responsabilidade das declarações de sua fonte, e ainda pode ser acusado de inventá-las, já que no jornalismo não existe uma “história” de um personagem sem o personagem. Se ele fosse mesmo fazer isso, as críticas e negativas do público poderiam ser bem maiores. Por outro lado seria uma obrigação “denunciar” um acontecimento deste, mostrando “as caras” dos indivíduos. Na realidade deveria ter feito isso muito tempo antes da publicação do livro. Como aconselha o Código Americano em considerar as intenções da fonte antes de prometer anonimato.

Cúmplice

O fato de Talese não ter denunciado e feito com que Foos parasse com seus atos, o torna cúmplice, segundo a Constituição de 1988 em seu inc. X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. Muitas delas sofreram essa violação irreparável da privacidade, tiveram suas vidas expostas ao íntimo. Ainda mais se levarmos em conta que as anotações estão nos livros, expondo-as mais uma vez, mesmo que de forma não identificável. Conforme o art. 349 do Código Penal, cabe detenção “prestar a criminoso, fora dos casos de co-autoria ou de receptação, auxílio destinado a tornar seguro o proveito do crime”.

Esse mesmo crime de cumplicidade por não denúncia é ainda mais grave quando Fooz conta ao escritor que viu um assassinato em um de seus quartos, mas não fez nada. Da mesma forma que Talese também não tomou nenhuma atitude, apesar de não terem encontrado registros sobre esse crime. Até mesmo Talese se pergunta: “Eu me tornei cúmplice de um projeto repugnante?” Ou a repulsa deve ser do personagem, mentiroso compulsivo que vê no voyeurismo “um estado natural do homem”? De qualquer forma, Fooz permaneceu 3 décadas em sua vida de voyeur. Mas a questão é que Talese também observou pela abertura de um dos quartos. Ele mesmo conta que viu um casal fazendo sexo oral, quando sua gravata escorregou pela grade de ventilação e balançou sobre a mulher ali embaixo. O que realmente aconteceu entre Foos, Talese e o motel, ninguém sabe ao certo.

Público

Talvez Talese fosse mesmo um cúmplice. Ou seria um segundo voyeur a partir da escrita e publicação dos registros de Fooz? E nós um terceiro a partir da leitura? É necessário para o jornalista pensar nas consequências de suas ações, tanto para si quanto ao leitor. Segundo o código Americano, o jornalista deve recusar atividades que possam comprometer sua integridade ou danificar sua credibilidade. Benetti (2008) acrescenta que “as noções de autoridade, legitimidade e credibilidade são fundamentalmente dependentes da mútua capacidade de imaginar o outro e si mesmo, exigida no jornalista e do leitor no interior do contrato de comunicação.”

Isso mostra a importância da relação entre o jornalista e seu público. Essa ousadia de Talese pode ter refletido negativamente a seu público mais tradicional. Para o código também é preciso pesar a necessidade do público em receber ou não tal informação, levando em conta danos e desconfortos, além de estabelecer que é preciso explicar processos e escolhas éticas a ele, o que não foi feito pelo jornalista, que fugiu de muitas pressões sociais que o cercou.

Credibilidade

Mas toda a credibilidade criada por Talese grandemente ao longo de toda sua carreira não vai desaparecer com uma obra que pode ter causado controvérsias éticas. Como explica Serra (2006) “um produtor/ emissor A se vai tornando credível perante um receptor B à medida que vai ganhando a confiança deste; e em que, reciprocamente, um receptor B vai ganhando confiança num produtor/emissor A à medida que este vai conseguindo demonstrar a sua credibilidade”, e não de uma hora pra outra.

As mídias em geral, por outro lado, tendem a ganhar essa credibilidade e usá-la a seu bem proveito, de acordo com seus próprios interesses. Como anlisa Bueno (2009, p. 236) as pautas “têm sido gestadas, pensadas, planejadas nas assessorias de imprensa a serviço das empresas, entidades e mesmo do Governo”. Desta forma a manipulação e distorção da realidade é aceita pelo público como verdadeira. Isso nos faz pensar sobre qual deve ser o papel do jornalismo na sociedade hoje. A base seria informar, levar conhecimento às pessoas. Este exemplo de Talese e muitos outro são importantes para o público pensar mais criticamente no conteúdo noticioso que o cerca, como também ao jornalista, para que este saiba o objetivo que quer alcançar com seu trabalho.

Referências:

BENETTI, Marcia. Blogs jornalísticos e formações imaginárias. Eco-Pós. Vol.11, nº 2, agosto-dezembro 2008.

BUENO, Wilson da Costa.

Comunicação empresarial: políticas e estratégias. São Paulo: Saraiva, 2009. Disponível em: http://www.cairu.br/biblioteca/arquivos/Comunicacao/Fontes_noticias.pdf, acesso em 27 de outubro de 2017.

SERRA, Paulo. Web e Credibilidade — O Caso dos Blogs. 2006c.

OVERBERG, Kenneth. R. Consciência em conflito. Tradução de Attílio Brunetta. São Paulo: Paulus, 1999, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp133093.pdf (24 de outubro de 2017), acesso em 27 de outubro de 2017.

Links:

http://veja.abril.com.br/entretenimento/imperdivel-polemico-livro-de-gay-talese-sobre-voyeur-e-lancado/, acesso em 23 de outubro de 2017.

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/10/1822850-fiel-a-relato-livro-o-voyeur-e-mais-confissao-do-que-reportagem.shtml, acesso em 23 de outubro de 2017.23.

https://istoe.com.br/gay-talese-no-livro-o-voyeur-privacidade-violada/, acesso em 24 de outubro de 2017.

https://www.spj.org/pdf/ethicscode/spj-ethics-code-portuguese.pdf, acesso em 24 de outubro de 2017.

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