O Supremo Tribunal da Internet não perdoa, mas também não resolve

Leonardo Santana
Observatório de Mídia
3 min readNov 27, 2017
Duas vezes ganhador do Oscar, o ator americano Kevin Spacey era uma das maiores potências de Hollywood (Foto: The New York Magazine)

No Supremo Tribunal da Internet, só há uma resposta certa. Contrariando a máxima de que a rede é terra de ninguém, os últimos anos têm mostrado que conseguimos criar um sentimento muito grande de união entre usuários caso eles concordem com algo. O julgamento das causas é rápido e certeiro. Navalha na carne. E, mesmo que seja positiva a crucificação de figuras que não queremos em destaque nas mídias, fica a pergunta: até onde vão os benefícios da vilanização simplória dos nossos infratores?

No início do mês, a bomba: Kevin Spacey, ator premiado em teatro, cinema e televisão e figura coringa da Netflix, é acusado de assédios cometidos a um menor de idade na década de 80. O banho de água fria sobre os fãs de “House of Cards” não veio sem fazer barulho. Dias depois, novas acusações surgem e colegas do norte-americano denunciam o ambiente de trabalho “tóxico” acarretado por ele.

Antes mesmo que a justiça e a plataforma de streaming pudessem condenar o ator de “Beleza Americana”, a internet se encarregou da tarefa, já que poucas horas foram suficientes para Spacey ocupar o primeiro lugar dentre os assuntos mais falados mundialmente no Twitter. O pedido de desculpas do ator — que veio acompanhado de uma saída arbitrária do armário — não convenceu ninguém. Não teve com defende-lo.

A retaliação é justificada, considerando Hollywood e todo o histórico de assédios e escândalos sexuais que a indústria rende todos os anos. O STI fez a escolha bem cabida de colocar Kevin Spacey no ostracismo. Sua série foi cancelada e sua participação em produções posteriores, jogada no lixo. Nada mais justo.

Irmão de Ben Affleck (outro ator bem-sucedido com histórico de assédio), Casey Affleck ganhou o Oscar de Melhor Ator na cerimônia de 2017, apesar de acusações graves (Foto: Variety)

Mas o fato de que Johnny Depp, condenado por agressões a sua ex-esposa, está para estrelar um filme da franquia “Harry Potter” é sinal de que o buraco da discussão é bem mais embaixo; o ator Casey Affleck ter lavado uma estatueta do Oscar este ano, em meio a acusações de violência sexual, faz pensar que talvez o problema seja maior que uma única pessoa a ser crucificada em 140 caracteres; e a demissão da jornalista Giulia Ferreira após a mesma denunciar o cantor Biel por assédio indica que estamos mais preocupados o ataque virtual a nossos vilões do que resolver realmente os problemas que temos enquanto sociedade.

Em nossa reação superficial a esses crimes, a negatividade é direcionada ao indivíduo e não ao sistema do qual ele se beneficia.

É questionável também a escolha desses antagonistas, já que Kevin Spacey, o único dentre os citados que teve sua carreia destruída, assediou um homem, diferentemente dos outros; enquanto que Azealia Banks, a rapper americana que aos poucos tenta recuperar sua carreira depois de ser condenada pelo Tribunal, é uma mulher negra.

Preso na inércia de sua recepção seletiva, o Supremo Tribunal da Internet não divulga toda a realidade, mas apenas as únicas que ele acha que serão apreciadas pelo público. Numa realidade em que os internautas só se seduzem por conteúdos que condigam com a opinião que eles já têm, não vale tanto a pena para o STI ir contra a maré de uma lógica (a cultura do estupro) já tão injetada na sociedade.

Não rende tanto click.

Destruindo uma carreira aqui e outra ali, a eleição de bonecos a serem malhados em praça pública pouco faz para resolver o problema. Embora a punição de Spacey tenha vindo como uma lição válida para um homem que nunca pagara por seus erros do passado, não é nela que reside a solução da violência sexual. O ódio não vai incitar o debate.

O foco não deve ser na punição de um indivíduo, mas no entendimento da origem do problema como um todo. Isso porque, pra cada Kevin Spacey que apagamos do mapa, mais dezenas de Johnny Depps e Casey Afflecks seguem ilesos.

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