Qual é o papel e a credibilidade da mídia na hora de retratar casos de assédio?

Bárbara Alcântara
4 min readJan 8, 2018

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Eu sou muito fã de Smiths. Sério. “Meat is Murder” é, na minha opinião, um dos melhores álbuns da história e eu sempre amei o Morrissey. Mesmo os comentários mais absurdos que ele fazia (principalmente em relação ao consumo de carne, claro) sequer balançavam a minha admiração. Ela continuava ali, bem intacta.

Eis que, no fim do ano passado, tudo isso caiu por terra com uma simples matéria: “Morrissey defende Kevin Spacey, culpa vítima e revolta fãs dos Smiths”. Eu não digo que chorei, mas o sentimento foi de uma faca rasgando o meu coração. Fiquei desolada. Como é que o Morrissey, praticamente assexuado, achava “ok” esse assédio?

Poucos dias se passaram e, é claro, chegou a famigerada carta de retratação:

“Há algumas semanas eu, erroneamente, permiti que o jornal alemão Der Spiegel entrasse em minha vida. […] Eu mataria Donald Trump? Não, nunca. Eu apoiaria as propensões privadas de Kevin Spacey? Não, nunca. Eu, de alguma maneira, apoiaria o abuso de crianças? Não, nunca. Eu apoiaria o abuso sexual? Não, nunca. Eu apoiaria o estupro? Não, nunca. O Der Spiegel transmitiu minha visão justamente? Não, nunca. Vou falar novamente com a mídia impressa? Não, nunca. […] No mundo da música, assim como na política, se você mostra quaisquer sinais de disponibilidade para promover a diferença, você será bloqueado. […] A música é eternidade e a chegada de 2018 é o momento para ser novo e diferente, mas você deve se esquecer da mídia impressa, que está enfeitiçada com sua própria reflexão e não quer saber da sua. […] Enquanto isso, nosso pedido ao Der Spiegel para publicar o áudio da entrevista comigo, sem cortes, foi negado. Deixe que isso seja a resposta deles.”

Chegamos a um ponto complicado em que a credibilidade da mídia é constantemente questionada. O que pensar a respeito desse caso? Como é que saberemos quem está dizendo a verdade?

Morrissey tem um histórico de dizeres polêmicos mas nunca em relação a isso. Então será que o jornalista se aproveitou dessa (má) fama para divulgar essa informação ou Morrissey se utilizou da descredibilidade da mídia para se isentar das consequências de suas opiniões polêmicas, depois que o caso tomou proporções enormes e muito negativas?

É impossível chegar a uma conclusão. A gente nunca vai saber quem é que estava certo. Talvez se o jornalista divulgasse o áudio completo. Ou talvez nem dessa forma. E a questão primordial desse caso, na realidade, acho que nem é essa.

Grande meme que define todo o sentimento (Fonte: internet)

Retornemos à polêmica principal: depois que as primeiras matérias envolvendo o assédio do Kevin Spacey foram divulgadas, Hollywood foi virada de pernas para o ar. Muitas outras denúncias começaram a surgir, e toda a sujeira que um dia fora jogada para debaixo do tapete começou a subir. O que ficou claro foi: é um problema estrutural; é abuso não só sexual, mas de poder.

Os escândalos tomaram proporções tão gigantes que, na premiação do Globo de Ouro, as atrizes usaram preto para demonstrar o repúdio aos assédios e ao silêncio guardado por anos, e discursos inflamados tomaram conta do local, quando críticas sobre a falta de representatividade feminina foram trazidos incontáveis vezes.

Mas e o que a mídia tem a ver com isso?

Tá, mas e daí? (Fonte: internet)

Os veículos de comunicação tem um papel importantíssimo na divulgação e na validação desses acontecimentos. Mas muitas vezes rola uma “vista grossa” — os casos são tratados como irrelevantes, e é a mídia que ajuda a deixá-los esquecidos, guardados à sete chaves.

Além disso (e principalmente), tem se tornado cada vez mais difícil distinguir o que é a verdade factual e o que é inventado. As fake news têm rodado tanto a internet que, muitas vezes, denúncias reais acabam sendo ignoradas exatamente com o discurso de: “ah, mas isso daí não aconteceu, foi o jornalista que distorceu o meu comentário” ou então “isso daí só está sendo publicado porque dá audiência”. É quase uma versão moderna do conto do “Pedro e o Lobo”.

Foi exatamente isso que Morrissey fez. É o que milhares de homens que são incriminados usam de argumento favorável. E muitas vezes acaba se tornando a voz da mulher contra a voz do homem — e convenhamos que em uma sociedade com tanta disparidade, o homem tem muito mais credibilidade, certo?

Já começa errado quando as notícias que envolvem estupro ou assédio sempre virem acompanhadas por um “suposto”. Como assim “suposto” assédio? A palavra da vítima não é suficiente?

Alunas de jornalismo da Cásper Líbero criaram um site/reportagem falando sobre a pornografia de vingança, as leis veiculadas sobre isso e como a mídia interfere no tratamento (Fonte: divulgação)

Isso sem contar que, na maioria das vezes em que denúncias são feitas (principalmente quando o caso é de revenge porn), o foco é sempre maior nas vítimas, e às vezes torna a exposição ainda mais intensa do que realmente ajuda a combatê-la.

A solução para isso eu não sei qual é. Talvez mudar a forma como o assunto é abordado pela mídia. Ou então talvez não exista mesmo uma forma viável de mudar. A questão é que, a própria descredibilidade da mídia tem servido como desculpa esfarrapada para abusador, e um grande espaço para mudança acaba se tornando obsoleto.

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