Sensacionalismo ou jornalismo?

Thais Barion
Observatório de Mídia
6 min readNov 27, 2017

Principalmente na televisão brasileira, onde a busca por audiência em seu sentido original é “a alma do negócio”, ainda é muito presente o sensacionalismo. A preocupação e todos os fundamentos jornalísticos de imparcialidade, objetividade, verdade e principalmente o “ouvir todos os lados” são deixados de lado.

Isto é claramente visto no caso da jornalista Mirella Cunha, com a reportagem “Chororô na delegacia: acusado de estupro alega inocência”, que foi ao ar em 2012 no Brasil Urgente, da Tv Bandeirantes. Nos aproximadamente 3 minutos do vídeo, Mirella supostamente entrevista Paulo Sérgio Souza Silva a todo tempo o ridicularizando e humilhando devido à sua forma de falar considerada errônea segundo os padrões hoje estabelecidos de linguagem, além de confundir o exame de corpo de delito com “estropias” e depois “próstata”. A jornalista usa a ignorância dele como notícia, como quando pergunta “se ele gosta de fazer exame de próstata” e ele sem saber o que é, diz fazer o necessário pra provar sua inocência.

O erro começa no título da reportagem, quando se refere a Paulo como acusado. Mas na realidade ainda é um suspeito, já que não existiam provas concretas contra ele, apenas o testemunho de uma pessoa. Os exames só foram feitos 2 meses após sua prisão. Segundo o Art. 14, inc. III do Código de ética, “o jornalista deve: a) Ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, todas as pessoas objeto de acusações não comprovadas, feitas por terceiros e não suficientemente demonstradas ou verificadas. b) Tratar com respeito a todas as pessoas mencionadas nas informações que divulgar”.

Mas o principal problema é a não cobertura jornalística. Não houve uma pauta, nem perguntas formuladas ao suspeito, muito menos informação. Quem assiste não sabe o que aconteceu, quem o acusou de estupro, como ele chegou à delegacia, onde foi, quando foi ou porque aconteceu. “Há encontros dos media com a atmosfera ética do momento, não com o imperativo lancinante da obrigação moral, o culto do dever metamorfoseou-se em virtude instantânea, em entusiasmo ético e consumista. […] já não estamos perante o dever-fazer imperioso, mas perante a teatralidade do Bem; a emoção hiper-realista do público catódico sucedeu ao idealismo da obrigação categórica” (LIPOVETSKY, 1994, p.157).

Isso não quer dizer que Paulo fosse inocente, a questão é a forma como os profissionais devem agir conforme as determinações éticas e sociais, como escrito pela Declaração Universal dos Direitos do Homem no seu Artigo 2 “Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” e Artigo 5 “Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.

O que vai ao encontro do Artigo 9º, Inciso II do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros: “É dever do jornalista Opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem”. A jornalista usou claramente de sua superioridade naquele momento em relação ao suspeito. Ele não tinha poder de fala naquele momento, suspeito de estupro, sem estudo, pobre e negro. Em oposições a milhares de pessoas o assistindo. “A veracidade, com todas suas dificuldades, pelo menos pode ser testada. Equilíbrio, também, é muito subjetivo. Escrever uma matéria tratando de ser justo com os dois lados da história talvez não seja o ideal de verdade, sobretudo se os dois lados não têm o mesmo peso (KOVACH e ROSENTIEL, 2004, p. 74).

Esse preconceito também é discriminado pelo Código de Ética do jornalista no Artigo 10 “O jornalista não pode concordar com a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, políticos, religiosos, raciais, de sexo e de orientação sexual”. Nestes termos é possível relacionar a outras reportagens de Mirella Cunha, no qual entrevista um bandido homossexual e torna isso a “notícia”, incentivando — o a fazer declarações ao seu parceiro, tudo em tom de ironia e muitos risos.

Talvez a atitude da jornalista de abuso de autoridade se dê por não esperar que alguém defenderá este criminoso, como se ele merecesse isso por tudo de ruim que tenha praticado. Mas isso não é função do jornalista, a punição deve vir de órgãos competentes. Outro se o motivo foi puramente a audiência, ele foi alcançado. “Brasil Urgente” foi responsável pelas maiores audiências da Band por muitos anos. Isso acontece pois principalmente no jornalismo policial, os telespectadores gostam de ver o rosto dos criminosos, como uma forma de aproximação daquela realidade, ao mesmo tempo que deseja um “final ruim” àquela pessoa, como se fosse um filme ou uma novela real. Ou ainda na credibilidade criada pela mídia em geral, pois utiliza de certa (falsa) objetividade, pois o “próprio fundamento dos discursos factuais se baseia quase sempre na fiabilidade do testemunho do locutor e não na sua observação e verificação diretas” (RODRIGUES, 1988, p. 32).

Mas como firma o Código de Ética em seu Art. 11, inc. III, “o jornalista é responsável por toda a informação que divulga, desde que seu trabalho não tenha sido alterado por terceiros”. Mirella Cunha foi demitida dias depois pela emissora e mesmo através de pesquisas não consegui mais notícias ou informações sobre ela depois do ocorrido. A reportagem não foi ao-vivo, então não houve descuido, mas consentimento dos produtores e responsáveis. Também o âncora Uziel Bueno fez comentários impróprios durante a gravação. Devendo assim os detentores do meio de comunicação assumirem também a responsabilidade, não somente com a demissão, como se isso fosse livrar a culpa deles. A emissora foi condenada a pagar R$ 60 mil por dano moral coletivo e violação dos Direitos Humanos. A Tv Bandeirantes também foi proibida de exibir entrevistas ou imagens de presos sob custódia do Estado, com penalidade de R$ 50 mil para cada descumprimento. Até por que, “cada um, agindo eticamente, constrói o próprio caráter em direção à virtude; no mesmo movimento, constrói o bem comum tal como ele é entendido em sua comunidade”, (BUCCI, 2000, p.16).

Este é um dos caminhos para um jornalismo mais ético e verdadeiro. As ações devem ser em conjunto dos jornalistas e das emissoras com os telespectadores, pois muitas empresas obrigam o profissional a serem antiéticos para garantir seus empregos, ou eles próprios adotam esta atitude para crescer dentro da empresa dando audiência para à instituição. Por outro lado é necessário que a população em geral seja mais crítica em relação ao que assiste, para não incentivar esse jornalismo sujo. Apesar de que para isso é necessário também uma mídia que informe corretamente e conscientize essa atitude. Isso forma um círculo, sem começo ou fim, no qual algum lado tem que dar o braço a torcer. Desta forma, “não são os diplomas intransigentes de valores que irão permitir mobilizar os homens na empresa, se não fizerem acompanhar de medidas concretas de negociação, de redistribuição e de formação. Não serão as homenagens à deontologia jornalística a elevar, de uma forma mágica, a qualidade da imprensa: apostemos antes na competência profissional dos jornalistas e na consolidação de uma imprensa escrita de bom nível, capaz de contrabalançar a influência televisiva e de criar um público mais exigente, melhor informado.” (LIPOVETSKY, 1994, p. 240)

Referências:

https://www.youtube.com/watch?v=1lk0yMCCWso

https://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/06/caso-mirella-cunha-rende-condenacao-de-r-60-mil-a-tv-bandeirantes.html

http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/ba/2012-06-08/advogado-de-jovem-ironizado-por-reporter-na-tv-diz-que-prisao-foi-irregular.html

BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

KOVACH, Bill; ROSENTIEL, Tom. Os elementos do Jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público exigir. 2ª edição, São Paulo: Geração Editorial, 2004.

LIPOVETSKY, Gilles. O Crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos. Lisboa: Dom Quixote, 1994.

RODRIGUES, Adriano Duarte. O Acontecimento. In: Revista de Comunicação e Linguagens. Vol. 8, 1988.

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