Uma mensagem de 1984 (ou 1983, eu não sei)

Abreu Ferreira
Observatório de Mídia
8 min readJan 8, 2018

Ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes entre si e não vivam sozinhos — a um tempo em que a verdade exista e o que é feito não possa ser desfeito:

Da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensar — saudações!

Essas foram as primeiras palavras lúcidas que Winston Smith, protagonista do livro 1984 (de George Orwell), escreveu em seu diário. Ele vivia num mundo distópico em que qualquer um que se rebelasse contra o Partido (o governo), até mesmo em pensamento, acabaria sendo vaporizado, que é como as pessoas se referiam a quem desaparecia abruptamente, tendo todos os rastros de sua existência apagados. Winston arriscou a vida ao escrever esse diário, porque sabia que lutava por algo valioso. Acho que nós que temos liberdade de fala e de pensamento devíamos discutir esse tipo de livro e tentar aprender um pouco, para reconhecer as ameaças que existem e sempre existirão à nossa liberdade.

A figura do Big Brother (o Grande Irmão) serviu de inspiração para o popular reality show… Porque ele é um cara malvado que força as pessoas a lutarem entre si até que reste apenas um grande campeão, não é mesmo? Distopia errada, meu amigo. Battle Royale e The Hunger Games seriam referências um pouquinho mais coerentes.

O livro

Em 1984, acompanhamos Winston Smith, um funcionário público de uma sociedade controlada por um governo totalitário, conhecido como Partido, e supostamente liderada por um homem chamado Grande Irmão. O Partido controla tudo, escrevendo todos os livros, produzindo todos os filmes, e vigiando e punindo as pessoas, para que ninguém se rebele contra o Estado. Winston trabalha no Ministério da Verdade, um ramo do governo dedicado a contar mentiras. Seu trabalho consiste em alterar trechos de jornais, livros e afins, de forma que o Partido pareça sempre coerente e altruísta. Winston não pensa muito no que faz, simplesmente cumpre ordens: todo dia recebe notas com as instruções e o material necessário para o trabalho, e faz as alterações cabidas, em seguida descartando as evidências da fraude num tubo que dá numa fornalha. As cópias antigas dos livros são destruídas e substituídas pelas novas versões, e a história é reescrita de forma que o Partido se torne inquestionável.

Winston nasceu em um tempo antes do socialismo inglês, do Partido e do Grande Irmão. Ele lembra vagamente de como era o mundo e tem consciência das várias mentiras que o Partido conta. Não é possível ter certeza de mais nada, e Winston várias vezes questiona a si próprio, porque não existem provas concretas nas quais apoiar suas convicções. Já sequer tem certeza se realmente vive no ano de 1984, ou se ainda está em 1983. Ele tem ciência de que as gerações vindouras acreditarão piamente nas mentiras contadas pelo Partido. Todos com quem convive já parecem acreditar, e até aqueles que sabem das contradições do governo parecem ignorá-las, porque elas serviriam a um bem maior. Winston se sente sozinho nesse mundo, e acha uma aberração a miséria à que o povo é submetido, e odeia o Partido, e quer encontrar uma forma de destrui-lo.

Pôsteres do Grande Irmão eram fixados por toda parte, para lembrar a população da vigilância constante e implacável à que era submetida

Sob vigilância constante, com câmeras por toda parte — inclusive nos banheiros — e com todo mundo apoiando cegamente o Partido, iniciar uma revolução parecia uma terefa impossível. Havia boatos sobre a Irmandade, um grupo que se preparava secretamente para armar uma revolução, mas Winston não tinha certeza se o grupo realmente existia, nem como entraria em contato com os membros. Ele passou a visitar cada vez mais os bairros pobres onde vivia o proletariado, a gente que não fazia parte do Partido. Lá não era tão vigiado, e ainda era possível encontrar alguns artefatos de uma época mais feliz, na qual o Partido não existisse. Foi numa loja de quinquilharias que Winston encontrou um caderno em branco, no qual decidiu iniciar o único ato de rebeldia que, a princípio, lhe pareceu possível: escrever.

No apartamento em que morava, a câmera era posicionada em um ângulo peculiar, que deixava um canto do cômodo fora da área de visão. Foi lá que Winston sentou várias vezes, usando o caderno como um confidente. Esse foi apenas o começo de suas aventuras.

Ingsoc, novilíngua para “socialismo inglês”, é como o Partido nomeava o sistema político em que vive Winston

Na tentativa de entender melhor as ideias de 1984, e como elas se aplicam ao jornalismo, vamos analisar duas das formas de manipulação usadas no governo do Grande Irmão, o duplipensar e a novilíngua. Eu queria muito falar sobre mais coisas, mas deixei para fazer de última hora. Estudante não vale nada. Eu, pelo menos, não valho.

Duplipensar

Winston, durante os exercícios matinais (feitos em casa, sob orientação de uma instrutora na televisão, e vigilados por uma câmera), faz uma reflexão mental sobre o duplipensar:

Winston abaixou os braços e lentamente tornou a encher seus pulmões de ar. Sua mente mergulhou no mundo intrincado do duplipensar. Saber e não saber, ter crença de completa veracidade ao contrar mentiras cuidadosamente construídas, ter simultaneamente duas opiniões conflitantes, sabendo que são contraditórias e acreditando em ambas, usar lógica contra lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, acreditar que a democracia era impossível e que o Partido era o guardião da democracia, esquecer o que quer que fosse necessário esquecer, então trazer isso de volta à memória quando necessário, e então prontamente esquecer de novo: e acima de tudo, aplicar o mesmo processo ao processo em si. Esse era o último detalhe: conscientemente induzir a inconsciência do ato de hipinose que você acabou de performar. Até entender a palavra “duplipensamento“ envolvia duplipensamento.

Em suma, duplipensar é manter, consciente e inconscientemente, duas crenças conflitantes entre si, acreditando em ambas. Num regime dependente de mentiras para manter a população sob controle, era necessário que as pessoas ignorassem o sofrimento e as contradições. O próprio slogan do Partido contia exemplos de duplipensamento:

Guerra é paz

Liberdade é escravidão

Ignorância é força

É uma ideia de difícil compreensão, porque raramente percebemos por conta própria quando estamos duplipensando. Mas com esse rebuliço em torno da “pós-verdade” e a onda conservadora que tem se espalhado pelo mundo e a instantaneidade superficial desses tempos de internet, não é difícil acreditar que as pessoas estejam realmente dando prioridade àquilo que faz com que se sintam bem, ignorando todo o resto. Elas buscam apenas informação que corrobore suas crenças já estabelecidas. Então acabam ignorando as contradições. Os políticos discursam de forma a esconder seus podres, mas isso já era esperado, não é mesmo? Mas isso não é sobre política. Agora as pessoas estão fazendo isso consigo mesmas, e isso as está alienando de uma compreensão superior de si mesmas e da sociedade. É tão abstrato que nem sei se faz sentido. Mas enfim, me propus a escrever sobre esse assunto e vou escrever, estando preparado ou não. Porque é isso que as deadlines exigem de uma pessoa responsável.

Enfim, parte do problema reside no processo de produção de informação. Ou seja, a culpa recai nos jornalistas. Mas veja bem, a solução de grandes problemas começa em pequenos gestos. É claro que não existe imparcialidade, mas jornalista não pode fazer de uma opinião uma verdade. Ele precisa ser transparente com relação aos dados e explicar o processo de formação de sua opinião, para que o leitor possa formar sua própria. Jornalista tem uma certa função didática, mas nunca doutrinária.

Novilíngua

Syme, filólogo colega de trabalho de Winston, era especialista em novilíngua, a nova língua que o Partido criava a partir do inglês. Syme ajudava na criação da versão definitiva do dicionário de novilíngua. Durante uma refeição na cantina do Ministério, Syme explica seu trabalho para Winston:

Você acha, arrisco dizer, que nosso trabalho principal é criar novas palavras. Mas nem perto disso! Nós estamos destruindo palavras — aos montes, centenas delas, todos os dias. […] É claro que o grande desperdício está nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos inúteis também. Não são só os sinônimos; também tem os antônimos. Afinal, qual a justificativa de haver uma palavra que é simplesmente o oposto de outra? Uma palavara contém seu oposto em si mesma. Tome “bom”, por exemplo. Se existe uma palavra como “bom”, qual a razão de haver uma palavra como “ruim”? “Desbom” vai servir da mesma forma — até melhor, porque é um oposto perfeito, diferente da outra opção. Ou de novo, se você quer uma versão mais forte de “bom”, qual o sentido de haver uma série de palavras vagas e inúteis como “excelente” e “esplêndido” e todas as outras? “Maisbom” dá conta do sentido, ou “duplomaisbom”, se você quer algo ainda mais forte.

O intuito do Partido ao reduzir o vocabulário e simplificar a língua era reduzir a capacidade cognitiva das pessoas. Palavras complexas contêm ideias complexas. Chegaria a um ponto em que a língua seria tão simples que as pessoas sequer seriam capazes de pensar em se rebelar contra o governo, ou de elaborar suas insatisfações. Essa seria a forma máxima de controle.

O brasileiro não tem, culturalmente, o hábito da leitura. Em pesquisa realizada pelo Ibope em 2015, 44% da população não lê livros, e a média de leitura é de 4,96 livros por ano (completos ou não). Para piorar, a troca instantânea de mensagens de texto, possibilitada pela internet, trouxe a “necessidade” de uma linguagem mais rápida, com uso excessivo de gírias, abreviações e a substituição de palavras por emojis (que representam ideias com imagens — como uma rosto amarelo tristonho ou um cocô sorridente). Com isso acaba se perdendo parte da riqueza da linguagem e, consequentemente, de pensamento.

Acho que é dever dos jornalistas preservar a língua nacional e incentivar a leitura e o consumo de informação. Não é nosso papel alfabetizar as crianças (alfabetizar, aliás, é o mínimo que precisamos fazer — é triste precisar encarar a alfabetização como um grande passo). Mas podemos criar projetos que instiguem o interesse pela leitura, especialmente dos jovens. Também devemos nos livrar da vergonha de meter palavras mais difíceis nos nossos textos, de vez em quando, porque faz bem lembrar as pessoas de que elas existem. E devemos apoiar os neologismos e as gírias, porque uma língua que evolui é sinal de uma sociedade que evolui. Mas essa é minha opinião. Tem gente que não gosta, e tudo bem.

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