Música, Fibonacci e o Diabo
Por Adriano Camargo Monteiro
Um dos meios para expandir a consciência e modificar e transformar o indivíduo em seus aspectos emocional e mental é a música. Na prática da Filosofia Oculta, a música tem sido utilizada de diversas maneiras. Na Via Draconiana, ela é especialmente importante em seus aspectos mais ocultos.
A música sempre esteve presente em todas as culturas e épocas e foi se desenvolvendo ao longo do tempo, sendo usada para diversas finalidades. Os antigos povos de quase todos os lugares pensavam que a música fosse uma dádiva, um presente dos deuses, e, para os gregos especialmente, um presente das deusas: as musas, mais especificamente a musa Euterpe.
Agora, se a musa da música é quem estruturou todos os elementos musicais, ninguém sabe, ao certo… Mas, como é sabido, a música é caracterizada basicamente pelos seguintes elementos: melodia, harmonia e ritmo. A melodia pode ser definida como uma sequência de notas dentro de uma escala, uma após a outra (são os solos instrumentais e as linhas vocais ou instrumentais); a harmonia é a combinação de notas que são vibradas simultaneamente; e o ritmo é a marcação do tempo e o que faz a melodia e a harmonia fluírem. Além desses, a boa música ainda apresenta dinâmica (volume e intensidade dos sons), timbres etc. Para que uma música possa ser diferente da outra, esses elementos característicos devem ser compostos e arranjados de modos diferentes e com o feeling e o “jeito” muito pessoal de cada músico/compositor/instrumentista. E essas características e elementos apresentam certa variedade: diversos modos/tonalidades de escalas), que são a base para as harmonias/acordes e diversos modos rítmicos.
E o que Fibonacci tem a ver com isso? Toda essa variedade dentro da
música, que existe essencialmente na matemática, está relacionada à
sequência numérica de Fibonacci, que também está relacionada a diversas
áreas do conhecimento. Fibonacci, ou Leonardo de Pisa, foi um matemático italiano da Idade Média (1170–1240) que descobriu uma sequência numérica em que o número seguinte é sempre a soma dos dois anteriores, assim: 1, 1, 2, 3, 5, 8… Na música, essa sequência está presente nos intervalos musicais, ou seja, na relação entre duas notas, formando as
escalas, que são a base para as melodias e para os acordes (harmonia).
Esses intervalos procedem em graus a partir da primeira nota ou tônica. Por exemplo, a escala básica e simples é formada por intervalos de terça (3o grau), quinta (5o grau) e oitava (8o grau) a partir da tônica (1o grau), ou seja, a sequência Fibonacci: 3, 5, 8. Essa sequência, na escala natural, de tonalidade dó maior (ou C, em notação cifrada), apresenta, então, as notas mi (3o grau), sol (5o grau) e dó (8o grau) a partir da tônica dó (1o grau) — em cifras, E, G e C, respectivamente.
Entretanto, há outros números na série Fibonacci, antes e depois dos números 3 e 8. O número zero obviamente “expressa” pausa (ou silêncio), usada na música; o número 1 é a tônica; o outro número 1 é o uníssono, quer dizer, dó e dó, de mesmo grau e altura (ou frequência). Os números depois de 8 apresentam outros intervalos com notas da escala natural (no caso de dó maior) que entram na formação de outros acordes dessa tonalidade, repetindo as notas em oitavas, infinitamente. Quando se tratar de outras tonalidades/escalas, os mesmos intervalos são transpostos para a tonalidade em questão, mantendo a série Fibonacci inalterada.
Mas as músicas compostas com a escala natural (dó maior) e suas transposições para outras tonalidades, que sempre estão nos intervalos correspondentes à série Fibonacci, em geral são bastante consonantes, “agradáveis”, estáveis em sua vibração, como a grande parte das composições musicais fáceis de digerir pela maioria das pessoas. Músicas ou meros sons consonantes são literalmente harmônicos, segundo o conceito geral e senso comum predominante. Refletem a harmonia comum e a “perfeição” do mundo como ele deveria se manifestar para a grande maioria dos seres humanos e segundo o que esses humanos pensam sobre o que é harmonia. Os sons consonantes expressam, de modo geral, a harmonia universal segundo os padrões rígidos de estética, beleza e, até mesmo, alguns tipos de religiosidade. As escalas e intervalos consonantes e a série Fibonacci seguem padrões tradicionais que refletem um mundo/universo organizado de acordo com regras relativamente restritas. Mas, certamente, existem muitas obras musicais relativamente consonantes excelentes e realmente inspiradas, em diversos gêneros musicais, e que podem levar o ouvinte a um grau de êxtase.
Agora, o que o capeta tem a ver com tudo isso? Simples. Antigamente,
quando a religião mandava no mundo ocidental, controlando até mesmo a
produção cultural, certos tipos de combinações de notas musicais, ou
intervalos, eram proibidos e categorizados como coisas do Diabo. O mais
famoso desses intervalos era conhecido como diabolus in musica, que era
um intervalo dissonante de quarta aumentada (4o grau mais meio tom, a
partir da tônica dó, por exemplo, que resulta na combinação entre as notas dó e fá sustenido), ou de quinta diminuta, ou seja, dó e sol bemol, sendo o sol bemol igual ao fá sustenido. Esse intervalo também era chamado de trítono, pois era feito de três tons inteiros. No exemplo, contando-se do dó ( C ) e indo até o fá sustenido (F#), temos três intervalos inteiros:
1) dó ao ré;
2) ré ao mi;
3) mi ao fá sustenido.
Não seria trítono se, a partir da nota dó, o intervalo fosse apenas fá natural; do mi ao fá natural há meio tom e não um tom inteiro. Logo, o “maldito” intervalo diabolus in musica é dó com fá sustenido, podendo ainda ser combinado com outros intervalos que podem ou não estar na série Fibonacci. É claro que esse e outros intervalos dissonantes são bastante usados em diversos gêneros musicais, mas apreciado somente por uma minoria, se comparada às grandes populações ao redor do globo. Está claro que os intervalos dissonantes podem “perturbar” a ordem das coisas, se o leitor já estiver entendendo…
Note que o “som do capeta”, o intervalo de quarta aumentada, não faz parte da série Fibonacci. Quando se quebra a consonância com a dissonância, abre-se um outro universo musical (e não somente musical), mais rico e multifacetado; quando essa “bela” sequência numérica sofre alteração, a harmonia estável é quebrada e a “rebelião” é instalada na ordem das coisas, advêm as transformações, as mudanças, o progresso, novas regras, novas experimentações, experiências, novas percepções, novos mundos. E esses mundos, na Filosofia Oculta, são aqueles que as pessoas comuns, das consonâncias demasiadamente açucaradas e das regras restritas, não se atrevem a explorar. As dissonâncias subvertem as tradições e as regras inúteis restritivas e provocam a inquietação do espírito, geram inquietudes pelo crescimento, por descobertas, pela evolução mental e emocional. A dissonância na música é equivalente ao surrealismo, nas artes plásticas; à poesia “maldita” e romântica e aos poemas sem métricas exatas, na literatura; aos sabores “estranhamente” condimentados, agridoces e apimentados, na gastronomia; etc.
As notas musicais estão relacionadas aos planetas da tradição oculta e alquímica e às cores, como seguem:
• Saturno/nota si/cor preta;
• Júpiter/nota dó/cor azul;
• Marte/nota ré/cor vermelha;
• Sol/nota mi/cor amarela;
• Vênus/nota fá/cor verde;
• Mercúrio/nota sol/cor laranja;
• Lua/nota lá/cor violeta.
Os antigos egípcios sabiam disso e faziam invocações musicais para convocar esses sete planetas (na Filosofia Oculta, o Sol e a Lua são considerados planetas). Assim, uma sinfonia cósmica consonante é a conjunção e o ritmo próprio desses planetas, formando harmonias que alguns consideravam celestes. Uma conjunção entre Júpiter e Vênus faz um intervalo musical entre dó e fá, por exemplo. Quando uma dissonância surge nessa harmonia cósmica plácida (que provoca monotonia e tédio), os planetas revelam seu lado oculto, sombrio, sinistro, impetuoso e impulsivo, porém necessário para as transformações do universo, assim como conhecer o subconsciente (considerado “demoníaco”) é essencial para o crescimento e a evolução mental e emocional de alguém. A dissonância faz brilhar as cores das notas sobre o fundo negro das trevas, pois sem esse contraste não é possível extrair” a luz e o conhecimento.
Quando o diabolus in musica se manifesta na experiência do indivíduo,
com a nota “intrusa” “quebrando” a sequência da escala convencional, a
dissonância faz uma ruptura, um “buraco negro” na sequência Fibonacci, e as notas dó e fá sustenido (em nosso exemplo aqui) abrem um portal para o qual a consciência é “sugada”, entrando assim na dimensão aberta sinistra e rica de Júpiter, conhecida na Via Draconiana como a qlipha (“concha”) jupiteriana. De modo geral, se a combinação de notas for maior, a experiência e a expansão da consciência também vão se ampliar.
Todos os planetas do sistema setenário planetário da Filosofia Oculta têm
seu lado escuro, mais oculto e secreto, que pode ser acessado por meio de
seus trítonos. A nota tônica de cada planeta com sua quarta aumentada gera o vórtice energético para o lado oculto, para o “lado negro da força”
planetária, para a qlipha correspondente ao plano planetário da nota tônica; a quarta aumentada é que cria a fenda para o “outro lado” (sitra ahra). Além disso, o intervalo de quarta justa (4J), em cada tonalidade, vibra os quatro elementos (Ar, Fogo, Água e Terra) no planeta correspondente a determinada tônica. A quarta aumentada “demoníaca” (4+), portanto, vibra o Espírito oculto e sombrio sobre esses elementos, a Sombra (junguiana) inacessível e secreta do Logos individual.
Assim, temos os trítonos de cada planeta, de cada vibração espiritual e
frequência mental e emocional:
Em termos práticos, e em um contexto apropriado e em conjunto com
outras “ferramentas”, a vibração sustentada e não resolvida dos trítonos
deve ser feita de maneira correta e de acordo com a natureza de cada
planeta/plano de consciência, por meio de certos procedimentos,
concentração e vontade. Esse som dissonante juntamente com o ritmo
sincopado é o buraco negro do universo mágico, aberto na superfície da
consciência comum. Basicamente, a síncope é um deslocamento do tempo
normal, da nota do acento rítmico para a batida fraca, que pode se prolongar até a batida forte (acento rítmico), abrindo um buraco no andamento rítmico (como um deslocamento de ar, ou o deslocamento da mente para outro “mundo”). A síncope “quebra” o ritmo, causando a sensação de vazio e de queda, e de queda no vazio; nesse “vazio”, o diabo in musica vibra e um portal pode ser aberto para a consciência. Quando a síncope e o trítono são contextualmente aplicados em uma prática meditativa ou ritualística (simples ou complexa), pode-se atingir certo grau de êxtase correspondente à vibração planetária em questão. Se o êxtase for demais, o indivíduo pode ele mesmo ter uma síncope, ou seja, “apagar” temporariamente, com a consciência “vazia”.
Pelo que precede, o “diabo intruso” é o guardião do portal para a senda da
autoconsciência expandida. O intervalo de quarta aumentada e a síncope
vão além do conceito “tradicional”, comum e corrente do que seja divino (o
que é muito relativo no próprio nível da vida cotidiana). O trítono sincopado rompe a tal “harmonia divina” para ir mais além da ordem
estabelecida e das muitas regras inúteis da existência, para mais além do
cosmos como é manifestado, para o “outro lado” (sitra ahra), para o universo B, além de nosso universo pretensiosamente conhecido.
Parece que Fibonacci e o Diabo viviam em desarmonia antigamente, em
tempos terríveis de dominação dogmática quando a Inquisição via o mal em tudo e categorizava coisas, animais e pessoas como sendo obras do Diabo, segunda sua visão distorcida, tendenciosa e realmente perversa. Tendo a música autêntica e honesta sido inspirada pela musa ao longo da história, fica evidente sua relação com feminino e sua forte influência. A musa Euterpe era também considerada a doadora dos prazeres, dos deleites e da alegria. Daí, o controle da produção musical (e de todos os prazeres do povo) pelas instituições sócio-religiosas repressoras e opressoras, já que a religião/Estado também controlava, perseguia e eliminava o feminino por essas e outras infinitas e absurdas razões “diabólicas”…
Publicado originalmente em Revista Sitra Ahra, edição #1, páginas 12 à 17