Leituras: O Negro no Futebol Brasileiro — Mário Filho

Hevanderson
Odara Magazine
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8 min readAug 15, 2020

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O Negro no Futebol Brasileiro é um clássico da literatura esportiva escrito pelo jornalista Mário Filho cuja primeira edição saiu no ano de 1947. Por ser meu primeiro contato com o autor, confesso que iniciei essa leitura com um certo“pé atrás” justamente por ter sido escrito por um homem branco ainda nos anos quarenta, pensei que mesmo tratando de questões raciais o livro ainda pudesse reproduzir ideias e expressões racistas da época. Mas para minha surpresa Mário Filho já tinha uma visão muito avançada sobre o tema, questões que agora estão sendo amplamente discutidas, como a negritude de Machado de Assis por exemplo, já eram levantados por ele quando comparava o “bruxo do Cosme Velho” com o jogador Domingos da Guia, referindo-se a ambos como “mulatos cariocas”.

O que torna essa obra mais interessante é o fato dela ser escrita como um grande romance histórico em vez de utilizar uma estrutura mais comum de livros acadêmicos, isso faz com que o livro tenha um texto atraente a todo tipo de leitor.

O Racismo e o Início do Futebol no Brasil

A história começa mostrando como eram os primeiros clubes do Rio de Janeiro na décadas de 1910 e 1920 e o que eles tinham em comum: eram racistas, aristocráticos e tinham o remo como esporte principal, isso deixou marcas até hoje no nome de alguns deles como o Botafogo (Botafogo de Futebol e Regatas), Vasco (Club de Regatas Vasco da Gama) e Flamengo (Clube de Regatas do Flamengo), por exemplo. Mesmo assim o futebol foi aos poucos crescendo em popularidade e tomando o lugar das regatas.

Havia ainda algumas características que diferenciavam os clubes. Os times da Zona Sul (Fluminense, Flamengo e Botafogo) foram os mais resistentes à entrada de jogadores negros e a administração desses clubes era mais vinculada a alta sociedade carioca enquanto os times das Zonas Norte e Oeste(como Bangu, América, Vasco, Madureira e Andaraí) estavam mais próximos às classes mais baixas, no caso de Bangu e Andaraí porque eram times de fábricas, já o Vasco por ser um time da segunda divisão que havia se fundido com o Lusitânia, um clube mantido por pequenos comerciantes portugueses, esses fatores fizeram com que o ingresso de jogadores negros fosse mais fácil nessas equipes, o que não significava que elas não fossem racistas. Um exemplo disso é quando parte do elenco do América abandonou o time e foi para o Fluminense assim que souberam do ingresso de Manteiga, primeiro jogador negro do clube. A regra geral era que um jogador negro ou mulato só entrava no time se não houvesse um jogar branco tão bom quanto ele.

A Profissionalização do Futebol e a Ascensão Social do homem negro

Em 1923 o Vasco da Gama conquistou seu primeiro campeonato com um elenco repleto de jogadores negros e mulatos. Enquanto nos times da Zona Sul (o Vasco não era considerado um time grande até então) os atletas costumavam ser estudantes universitários ou já terem uma profissão, era comum nos times menores o futebol ser a única fonte renda dos jogadores, já que a condição do homem negro naquela época praticamente os relegava a trabalhos subalternos e o acesso a educação superior era quase inexistente, era mais fácil ao homem negro dedicar mais tempo do dia para treinar o seu futebol. O Vasco explorou essa condição e montou uma equipe que treinava quase diariamente enquanto que os times da grandes treinavam alguns dias na semana. O resultado disso foi óbvio: o time de São Januário possuía um elenco com impressionante condicionamento físico e capacidade técnica cuja a principal estratégia era aguardar que o adversário estivesse cansado para começar a pressionar, daí veio a fama de “time da virada”. Em muitas das partidas do campeonato de 23 o Vasco começava perdendo, mas virava o placar no segundo tempo quando o adversário já estava morto de cansaço.

O campeonato do Vasco foi um dos fatores que aumentou a pressão para que os outros times tivessem elencos profissionais. Também por causa desse campeonato foi criada a AMEA (Associação Metropolitana de Esportes Athleticos) no ano seguinte.

O intuito era preservar a branquitude nos times da elite carioca, várias regras foram criadas para impedir o acesso a negros e pobres na liga (os jogadores não poderiam atuar em sub-empregos e nem serem analfabetos, por exemplo), o próprio Vasco só passou a fazer parte da instituição em 1925.

Outro fator era que com o amadorismo no futebol, os jogadores costumavam deixar os times sempre que surgia uma proposta melhor e para conter esse comportamento foi criada uma regulamentação injusta sobre a contratação de jogadores. Quando um atleta decidia mudar de clube, a AMEA determinava que ele deveria ficar quatro anos na “cerca”, ou seja, sem poder integrar a equipe titular. Na prática, o jogador que mudasse de time estava aposentado.

Quando os jogadores brasileiros descobriram que o futebol europeu era profissionalizado em países como a Itália e Espanha, começou a haver uma debandada de jogadores, principalmente os brancos que tivessem sobrenome europeu pois isso facilitava sua naturalização nesses países. Muitos até fingiam terem sobrenome italiano, afinal de contas, desde que fossem brancos quem iria se incomodar?

Nos caso dos jogadores Negros o futebol passou a ser usado para escada para se conseguir um emprego formal, que lhe pudesse garantir uma renda estável pelo resto da vida. Muitas esquipes pagavam o “salário” do jogador com um emprego, e como a carreira de futebolista é curta, era muito mais negócios abandonar os campos por uma vaga numa fábrica.

Todos esses fatores forçaram a profissionalização do futebol, era isso ou a qualidade do futebol brasileiro estaria condenada.

Na era do futebol profissional surgiu uma dos primeiros casos em que um jogador de futebol torna-se também um símbolo midiático, era a época em que Leônidas da Silva, o Diamante Negro (sim o nome do chocolate vem daí) estava em todos os lugares. O inventor da bicicleta era um gênio nos campos, seu prestígio transcendeu as quatro linhas, Leônidas era abordado nas ruas, comerciantes pediam para aparecer em fotos junto com ele. Tudo que se associava ao nome de Leônidas vendia feito água.

O Diamante Negro também ficou conhecido por ser muito polêmico e falar abertamente sobre o racismo no futebol. No livro, Mario filho faz um contraponto entre Leônidas e Domingos da Guia, jogador também negro com também grandioso em talento e popularidade.

Enquanto Leônidas era atacante, Domingos era um defensor. Leônidas expansivo, irreverente. Domingos mais contido e reservado, evitava os holofotes com todas as forças. Seu modo de jogador remetia ao futebol inglês, assim como a escrita de Machado Assis tem algo de literatura inglesa. Nas palavras de Mário “as anedotas de inglês sendo, para Domingos, o que Sterne foi para Machado de Assis. De uma certa forma Domingos foi o Machado de Assis do Futebol brasileiro, Inglês por fora, brasileiro por dentro. Sobretudo carioca. (…) Como o velho Machado. O mulato de pince-nez, de barba de Ministro do Império, o preto de fala macia, arrastada, com o seu passo de malando, de samba de breque. Mais inglês, porém, do que os ingleses brancos que o torcedor conhecia.”

A copa de 50 e aumento do racismo do futebol

A derrota do Brasil para o Uruguai acirrou as tensões raciais e a condição do homem negro no futebol volta a ficar em xeque mesmo após todas as conquistas alcançadas duramente nos anos anteriores.

“… três pretos foram escolhidos como bodes expiatórios: Barbosa, Juvenal e Bigode. Outros mulatos e pretos ficaram de fora: Zizinho, Bauer e Jair da Rosa Pinto. Era o que dava, segundo os racistas que apareciam aos montes, botar mais mulatos e pretos do que brancos num escrete brasileiro.”

Foi nesse período que surgiu um mito duradouro no futebol brasileiro até tempos recentes: o de que goleiros negros não eram confiáveis. Tudo isso porque Barbosa, um homem negro, era o goleiro da seleção de 50.

Uns acusavam Flávio Costa. Mas quase todos se viravam era contra os pretos do escrete.
- O culpado foi o Bigode!
- O culpado foi o Barbosa!

A “redenção” só viria com a conquista da Copa do mundo de 58.

Créditos: FIFA.COM

Pelé, Didi, Garrincha e a “redenção” do negro brasileiro no mundial de 58

Os estigmas da derrota de 50 ainda reverberavam no cenário do futebol nacional poucos anos antes do mundial da Suécia em 58. Jogadores e técnicos negros sendo sistematicamente preteridos em relação aos brancos. A CBD à época também acreditava que os jogadores brancos pudessem adaptar-se melhor ao clima nórdico e por isso deveriam ser prioridade na escalação.

A preocupação de embranquecer o escrete chegou a tal ponto que na estréia contra a Áustria o único preto foi Didi.
(…)
Onde se podia escolher entre um branco e um preto ficava-se, inicialmente, com um branco. De Sordi em vez de Djalma Santos, Orlando em vez de Zózimo. No lugar de Garrincha, Joel, no de Pelé, Dida…

A situação só mudou no dia 15 de junho de 58 com a vitória do Brasil sobre a relação Russa que era vista como favorita até então, Garrincha foi fundamental nesse jogo, surpreendendo todo esquema de defesa que os russos haviam preparado com o objetivo de neutralizá-lo.

Os que amavam o esporte mais popular do mundo saudaram a vitória do Brasil contra a Rússia como a salvação do futebol-arte. Que laboratório poderia produzir um Didi, um Garrincha, um Pelé?…

Nessa mesma noite da vitória, Didi reuniu titulares e reservas afim de evitar o ocorrido em 1938, a popularidade de Leônidas da Silva havia prejudicado o grupo como um todo e isso contribuiu para que a seleção brasileira não fosse vitoriosa naquela copa do mundo. Dessa vez não poderia haver astros, ninguém maior que ninguém, era o momento de compromisso com o título. E assim foi feito.

A conquista de 58 criou, inevitavelmente, seus ídolos. Didi foi consagrado pela crônica esportiva como o melhor jogador do campeonato. Garrincha, pelo seu dribles geniais e pelo fair play (ele foi o primeiro a botar uma bola para fora de campo quando um jogador da equipe adversária se machucava) e Pelé que saiu do mundial eleito pela imprensa francesa como “Rei do Futebol”, rei do esporte mais popular do planeta, alcançando um patamar que até então nenhum homem negro brasileiro jamais tinha conseguido conquistar.

Não é nenhuma novidade que ainda nos dias atuais o racismo segue presente no futebol e não seria muito difícil listar neste texto pelo menos dez eventos de ataques de ofensa racial sofridas por jogadores negros nos últimos três anos tanto no Brasil como em outros países. Outro fator é que mesmo o futebol sendo um dos primeiros espaços onde a ascensão social de pessoas negras foi possível, os locais de tomada de decisão e administração de equipes e entidades esportivas continuam sendo muito restritos para nós. Obras como a de Mário Filho são necessárias para sabermos quais são as origens desses problemas e podem nos auxiliar na criação de estratégias para superá-los.

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Analista de sistemas. Flamenguista. Leitor compulsivo. Escritor intrometido.