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O dia da posse do Obama | Crônicas da Pele

Hevanderson
Odara Magazine
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3 min readMay 1, 2020

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Vinte de janeiro de dois mil e nove. Eu era estagiário há pouco mais de um ano quando Barack Obama, primeiro presidente negro dos EUA, tomaria posse 146 anos após o fim da escravidão naquele país. No Capitólio, ao lado de Michelle Obama, ele faria seu primeiro discurso como chefe do executivo diante da multidão que o aguardava para celebrar sua chegada ao centro do poder mundial. Eu, como na maioria dos dias, passava boa parte do expediente com o corpo em baixo de mesas alheias. Não era comum pessoas usarem notebooks em suas baias e embaixo delas sempre havia quase sempre gabinetes de computadores ou algum de seus cabos apresentando defeitos. Voltar pra casa com a roupa um pouco suja fazia parte da rotina, apesar dos pesares, fui o primeiro de minha família a ter o privilégio de passar por esse tipo de inconveniente, certamente o primeiro cara preto a ingressar naquele setor de TI numa multinacional de auto peças.

Meu ramal não me dava sossego. Dessa vez era o médico ocupacional da fábrica e seu problema recorrente com a impressora. Segui em direção ao consultório, ele me aguardava do lado de fora em frente a porta enquanto conversava com o gerente de RH. Parou o assunto assim que me viu e logo disse: “Ô rapaz! De novo essa impressora, sempre dando problema essa porcaria, depois vê com teu chefe se não podemos trocar. Quer ver só, você vai embora e ela volta a pifar.”

“Tudo bem, deixa que eu falo com ele.” respondi.

“Aaah, você viu que o Obama tá entrando hoje né? Agora temos até que tomar cuidado com você, vai ficar por aí se sentindo importante.”

Se correm em nossas veias dores ancestrais, é possível que na dos brancos corra um fetiche de superioridade tão antigo quanto. O médico e gerente agora riam daquela fala enquanto me olhavam, esperavam uma reação de minha parte. Não participei da gargalhada. Em silêncio encarei os dois por alguns segundos, nem preciso dizer que não se constrangeram.

Decidi não comentar com ninguém sobre o que tinha acontecido, conforme passavam os dias convenci a mim mesmo que tudo aquilo era um fato sem muita importância. Mas algumas memórias simplesmente não envelhecem nem deixam de nos visitar. E esta me faz pensar às vezes com certa culpa, por não ter tomado uma atitude mais contundente, mais dura. Pergunto a mim mesmo onde estaria agora se a minha resposta fosse melhor.

Prefiro evitar a dupla derrota de reviver o racismo e ainda punir a mim mesmo pela reação que foi possível naquele dia. Lutar pela raça é minha prioridade, ensinar brancos a não serem racistas, nunca será. Por mais oito anos a partir daquele janeiro, o casal mais poderoso da face da terra seria preto, como meus pais e meus parentes, como as pessoas do meu bairro. Isso eles jamais puderam tirar de mim.

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Hevanderson
Odara Magazine

Analista de sistemas. Flamenguista. Leitor compulsivo. Escritor intrometido.