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Sobre balões e as noites de Odara

Hevanderson
Odara Magazine
Published in
5 min readMar 13, 2017

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Mil olhos para vê-la por completo. Dois mil ouvidos para escutá-la inteira. Odara é imensidão verde de colinas e morros onde toda uma comunidade se abrigada e compartilha do mesmo modo de vida. Milhões de almas formando um espírito vivo, renovado a cada geração.

Na colina de Eldorado, Diana estava sentada sobre uma pedra mexendo em suas tranças enquanto via à distancia o movimento que acontecia no morro do Retiro, o mais próximo de onde vivia. Grupos de pessoas preparavam um tecido muito grande “como vão conseguir desdobrar aquele cobertor gigante?” - pensou. Eles esticavam o pano repetidas vezes parecendo nunca se cansar. Apesar de toda dificuldade envolvida na tarefa tudo era feito com suavidade e coordenação como fosse uma dança coreografada.

Diana só deixou de ter sua atenção totalmente tomada por aquela cena ao sentir o toque leve de uma mão pressionando seu ombro. “Vai ser a primeira noite de balões naquele bairro, ainda não tivemos a nossa mas um dia chegará o momento de pintar o céu” explicava Ivone, sentando-se ao seu lado. Dizia que Eldorado era um bairro ainda jovem e com poucas pessoas, diferente das colinas que são vistas mais à beirinha do horizonte, repletas de casas. “É cheio de gente. Por isso lá eles pintam o céu mais vezes, Mãe?”

“Isso mesmo. Se olhar com cuidado vai perceber no meio daquela gente toda algumas pessoas vestindo túnicas pretas e com pescoço enfeitado por colares. São os mensageiros. Nesta noite nada acontecerá naquela comunidade longe dos olhos deles”.

Ivone falava dos mensageiros de Iku, andarilhos incumbidos de levar a notícia e organizar o ritual das noites de balão. Discretos e pontuais, chegam sempre a sete dias do início da cerimônia ao lugar onde devem estar, não importando de onde vieram. É comum ver mensageiros caminhando no cotidiano de Odara apesar de causarem surpresa quando são vistos por mais de um dia na mesma região, se isso acontece todos se põem em alerta pois brevemente anunciarão aos viventes locais quem serão os próximos viajantes.

“Tem um homem empurrando o cesto do balão um pouco mais para cima, consegue ver?” Diana ainda mirava ao grupo com o pano mas logo o encontrou. “Sim, porque só ele leva o cesto?” — perguntou? “Veja, ele o convocado dos mensageiros, vai partir no balão que está sendo preparado. O pano na verdade é o envelope do balão, só as pessoas mais próximas do passageiro podem preparar o pano e em seguida prendê-lo ao cesto como determina o ritual.” Dona Ivone olhou para Diana de modo distinto, algo entre o pesar e a alegria, a falta e a felicidade, lembrava-se da viajem de seu pai, ainda quando vivia numa colina mais povoada. A carta que vira na porta de sua casa com a convocação de um mensageiro, em sete dias o balão deveria estar pronto para transportá-lo. Abaixo da carta uma outra folha ainda em branco aguardava pelos nomes escolhidos por seu pai para fazerem parte da cerimônia. Uma vontade de contar toda a história a Diana surgiu em seu interior no entanto o mesmo ímpeto fez com que desistisse da ideia.

O balão já se encontrava montado sobre o topo da colina, seu envelope ainda vazio. Bem a frente do cesto começaram a formar um círculo em volta do passageiro. Uma fogueira foi acesa no centro da roda. Por trás da linha do horizonte a luz do sol começava a se esconder. “Agora Diana a parte mais importante: o conto. O viajante falará a história de sua vida, todos vão ouvi-lo pela última vez”.

“Toda a vida dele mãe? Vai ter tempo para isso?”

“Sempre há tempo o bastante para histórias, toda história é um ensinamento. Não importa se o vivente tenha caminhado por dias dolorosos a maior parte de seu tempo em Odara. Até os que se deixaram levar pelas trilhas da maldade merecem ser ouvidos.”

“Sua avó, quando eu tinha seu tamanho, contou-me sobre um rapaz de vida manchada, cuja má fama se espalhara por todas as colinas, tão desonestas e malignas eram suas atitudes. Roubava, metia-se em brigas, deixava se levar pela inveja e arquitetando intrigas destruía relacionamentos. Quando os mensageiros o chamaram não ousou convidar ninguém para a cerimônia. Seu balão estava malfeito e não havia alma disposta a auxiliá-lo. Se o balão sobe mal pode não tocar o topo do céu e perder-se no firmamento. Isso equivale a deixar de existir. Tamanho foi seu desespero que Nanã, nossa Mãe ancestral, desceu do Orum para ouvi-lo. Aos prantos e visivelmente arrependido contou a ela toda sua história. Usando seu axé Nanã garantiu que o balão pintasse o topo do nosso céu e chegasse ao Orum, o céu dos orixás.”

Sons de atabaques ecoavam de Eldorado, o ritmo vibrante das batidas chegavam aos ouvidos de Ivone, sua fala interrompeu. A última parte da cerimônia havia começado. Pares de mãos castigavam o couro dos atabaques numa intensidade cada vez maior. O canto de todos fundia numa única voz chamando por Xangô. Cessaram os atabaques embora canto tenha permanecido, desta vez com mais volume. Xangô estava presente e o fogo a queimar na fogueira era mais ardente, alimentado não pela lenha mas pelo axé, pois Xangô é o próprio fogo. Uma pequena bola de incandescente subiu pelo ar separando-se da fogueira, flutuado rumo aos queimadores do balão.

Retiro tornou-se clarão no meio da paisagem noturna quando Xangô tocou os queimadores formando uma chama colorida por múltiplos tons de vermelho. Rapidamente o envelope se expandiu erguendo completamente o balão. Outra canção se iniciou, o coro celebrava o embarque passageiro e a beleza daquela decolagem, tambores e palmas voltaram a ritmar a cantoria. Lá em Eldorado Diana e Ivone acompanhavam o ponto incandescente a subir sem parar, incansável, céu acima. Alcançado o topo do céu não se via mais balão. Era, a partir daquele instante, um brilho perene na imensidão noturna.

“E Odara mais uma vez pinta no céu uma estrela, decora a noite.” — Disse Ivone em voz alta, embora falasse consigo mesma.

“Mãe, será que um dia farei um voo assim tão lindo?”

“Com certeza minha pequena, mas não pense no voo. Importa mesmo é fazer sua vida em Odara ser digna de uma bela história. Assim, o brilho de sua estrela na imensidão da noite nunca será uma luz sem significado.”

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Hevanderson
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Analista de sistemas. Flamenguista. Leitor compulsivo. Escritor intrometido.