Cart (2014)

Rodrigo Quintino
OFFHistory
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4 min readApr 18, 2021

O Oscar de 2020 foi inesquecível para o cinema sul-coreano com Parasita recebendo o maior premio da noite. O fato é notável por dois motivos principais: Parasita foi, ao mesmo tempo, a primeira produção do país a ganhar um Oscar, e o primeiro filme internacional em língua não inglesa a levar a estatueta de melhor filme.

Parasita (2019)

Dentre as muitas funções do Oscar e de outras premiações, a formação de público é uma das mais importantes, e nesse aspecto a vitória de Parasita foi extremamente benéfica. Os holofotes se voltaram ainda mais para o excelente, e que já há muito tempo merecia atenção, cinema sul-coreano, e dois exemplos claros são Call e Minari, que têm ganhado grande repercussão em 2021.

A temática de crítica social, presente em quase toda filmografia de Bong Joon-ho, chama atenção em Parasita, que vale lembrar, foi lançado no mesmo ano do também maravilhoso Bacurau. Foi justamente essa característica de alfinetar de forma ácida o sistema capitalista, que me fez lembrar quase imediatamente de outro filme das terras de BTS: Cart.

A obra, que passou longe de ter o hype e o prestígio de seu conterrâneo premiado, foi lançada em 2014 e dirigida por uma mulher, Boo Ji-young. Na trama acompanhamos a vida de Sun-hee (Yum Jung-ah), uma funcionária de supermercado que luta pelos seus direitos após uma ameaça de demissão em massa realizada de forma abusiva pela empresa que trabalhava.

Cart (2014)

Fica evidente a crítica às relações abusivas entre patrões e funcionários causadas pelo neoliberalismo (e sério que algumas pessoas defendem que suprimir direitos trabalhistas vai melhorar a vida dos funcionários? Negociar com o patrão de forma igual? Sério?). O impacto do trabalho excessivo na vida pessoal e profissional das pessoas também é abordado, o que o igualmente sul-coreano Byung-chul Han discute muito bem em seu livro Sociedade do Cansaço. Isso fica claro nas cenas da relação de Sun-hee com seu fllho Tae-young (Do Kyung-soo — sim kapopeiros, é o cara do EXO).

Tae-young personifica também outro tema inserido no grande eixo de crítica ao capitalismo: o impacto da desigualdade social na vida de adolescentes. Desde Bullying, passando por dificuldades em relacionamentos amorosos até (novamente, e talvez esse seja o grande tema da obra) relações abusivas com patrões, o personagem de Do entrega uma complexidade temática gigantesca, intensificada pela boa atuação do idol.

Todas essas temáticas, por si só, são impactantes, mas a forma em que Cart as apresenta ao espectador potencializa ainda mais as críticas feitas. Longe das tramas cheias de plot-twist e da estilização da violência características dos filmes de Bong Joon-ho ou Park Chan-wook, talvez os dois mais famosos cineastas do país, Boo Ji-young conduz aqui uma trama simples, narrada de maneira igualmente singela e sem grandes recursos que normalmente chamam atenção. E não, isso não é de forma alguma um demérito, ao contrário, destaco essas características justamente para enaltecer Cart, que consegue, por meio da simplicidade no uso da linguagem, causar um impacto gigantesco ao tocar em temas complexos de uma forma palpável e realista.

Para exemplificar o que disse acima, vale citar a cena em que Tae-young e sua namorada quebram o vidro do estabelecimento em que ele trabalhava. A cena não é filmada com um grande plano-sequencia mostrando a pedra em câmera lenta estilhaçando os pedaços de vidro que se propagam lentamente no ar. Ao contrário, temos um plano aberto da pedra sendo arremessada, e só. A cena de violência que vêm a seguir também não é glamourizada, e justamente pelo realismo e simplicidade, aumenta o impacto do absurdo de tudo que é mostrado.

Cart (2014)

Cart é uma obra que, diferente de Parasita, não se propõe grandiosa, e talvez por isso não tenha recebido tanta atenção, mas mostra uma crítica crua e efetiva as mazelas do neoliberalismo.

Filme: Cart

Direção: Boo Ji-young

Ano: 2014

País: Coreia do Sul

Distribuição: Netflix

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Rodrigo Quintino
OFFHistory

Professor, mestre em História Social. Crítico de cinema e RPGista nas horas vagas.