Hamilton (2020)

Rodrigo Quintino
OFFHistory
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4 min readApr 14, 2024

Deixando de lado as polêmicas envolvendo a categorização, ou não, da obra disponível no Disney+ como um filme, o fato é: Hamilton, sem dúvidas, foi, e ainda é, um grande fenômeno no âmbito dos musicais.

Hamilton (2020)

E isso é feito com méritos, afinal, as músicas são bem elaboradas, interessantes e envolventes, e contribuem muito para a construção da narrativa. Sobre isso, o que mais me chamou atenção, sem dúvidas, foi o fato de Hamilton, por meio das músicas de RAP, transformar uma história sobre um burocrata, que tinha tudo para ser enfadonha, em algo dinâmico e eletrizante. A ideia de transformar os debates políticos em batalhas de rima é simples, mas muito efetiva, e a tensão nas cenas de escrita também funciona muito bem.

No entanto, embora tenha, de fato, gostado muito de Hamilton, algo na construção da narrativa me incomodava constantemente enquanto assistia, a ponto de quase me tirar da imersão causada pelas músicas: a dualidade do discurso.

O músical, desde o início, parece ser uma grande ode a diversidade, enfatizando em vários momentos o fato de seu protagonista ser um imigrante; colocando atores e atrizes negros e latinos para viver personagens importantes na trama; além, claro, de utilizar, na maioria do tempo, um gênero músical de origem afroamericana e associado historicamente a grupos marginalizados.

Esses temas são interessantes pois se propõem a subverter a narrativa nacionalista tradicional da independência dos EUA, indicando uma revisão histórica sensível e interessante para o discurso popularmente hegemonico sobre a formação do país, e sinalizando que, de fato, aquela nação foi formada por muitas mãos e muitas vozes, as quais foram, como o próprio Alexander Hamilton, esquecidas pela História. Além disso, após a sequência da independência, o país é retratado em crise, coisa rara de se ver nas telas ou nos palcos do país, que se orgulha de ser o mais poderoso do mundo.

Hamilton (2020)

Ok, mas, onde está a dualidade? A sensação que tive, em vários momentos da obra, era que eles tentaram ser disruptivos com aquele tipo de narrativa que normalmente envolve a história do EUA, do patriotismo exacerbado e exaltação dos grandes líderes, mas, no fim, mesmo com a introdução de temas pertinentes, ainda exaltam exacerbadamente esse nacionalismo que tentam criticar, construindo, apesar de tudo, a mesma narrativa de sempre sobre um homem branco salvador. A figura de George Washington em todas as cenas que aparece, como sendo o grande general inabalável, com postura firme e exercendo o papel de pilar dessa nova nação nascente, exemplifica bem esse sentimento.

Hamilton (2020)

Isso se intensifica ainda mais na omissão da obra em trabalhar temas sensíveis como a escravidão ou o extermínio indígena. O primeiro deles chega a ser citado nos debates entre Hamilton e Thomas Jefferson, porém de forma rápida e sem a devida profundidade. O segundo, por sua vez, é completamente ignorado pela narrativa. Sobre isso, a escolha de um ator negro para viver Jefferson é, no mínimo, curiosa.

Hamilton (2020)

A contradição dos pais fundadores, mesmo os que aparentemente se opunham, serem coniventes com a escravidão, é deixada de lado, enquanto o caso extraconjugal de Alexander ganha espaço central como a grande polêmica de sua vida.

Mesmo gostando da obra como um todo, as músicas boas não encobriram totalmente o incômodo com a sensação de que Hamilton estava em cima do muro, com medo de arriscar. A discussão sobre diversidade e as várias mãos que construíram coletivamente o país é pertinente na narrativa enquanto não contradiz com a ideia tradicional dos fundadores brancos dos EUA, e é freada quando parece se aproximar de temas sensíveis que possam manchar a imagem do grande general George Washington, ou do exímio político Alexander Hamilton.

No fechar das cortinas e apagar das luzes, Hamilton é, em sua essência, uma obra sobre um homem branco colocado como fundador e salvador da nação.

Filme: Hamilton

Diretor: Thomas Kail (gravação da peça músical de Lin-Manuel Miranda)

Ano: 2020

País: Estados Unidos da América

Distribuição: Disney+

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Rodrigo Quintino
OFFHistory

Professor, mestre em História Social. Crítico de cinema e RPGista nas horas vagas.