Samurai Gourmet (2017)

Rodrigo Quintino
OFFHistory
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4 min readOct 10, 2023

Nós, como seres humanos, normalmente nos encantamos pelo extraordinário. Estamos acostumados a nos engajar com universos fantásticos, de seres extraordinários e poderosas magias, dando vida a nossa imaginação. Também nos acostumamos a ver valor e entretenimento em obras que, mesmo se passando em nosso mundo, trazem narrativas grandiosas: sentimos a tensão de filmes de ação com quase super-heróis ou nos emocionamos com grandes dramas. De fato, eu também sou apaixonado por O Senhor dos Anéis, ou Cidadão Kane, ou 007.

Mas hoje gostaria de falar de algo diferente: o cotidiano.

Há beleza no cotidiano? No ordinário? No dia-a-dia? Naqueles momentos esquecíveis que compõem grande parte da nossa vida? Para responder essa questão, gostaria retornar a algo que aconteceu no longínquo ano de 2020. Naquela ocasião, após um dia absolutamente comum, decidi, à noite, abrir o Netflix e assistir alguma coisa. A escolha? Uma série japonesa de comédia despretensiosa e com uma premissa um tanto excêntrica: Samurai Gourmet. Nunca ouviu falar? Tudo bem, dessa vez não vou te acusar de morar em uma caverna ou ilha deserta. É o tipo de obra que, infelizmente, quase ninguém conhece, mas todo mundo deveria ver.

O título é quase autoexplicativo: Takeshi Kasumi (Naoto Takenaka) é um simpático senhor aposentado que decide se aventurar por diferentes restaurantes de Tóquio e região. Neles, acaba se deparando com diversos dilemas existenciais (tomar ou não uma cerveja no almoço durante a semana? experimentar ou não aquele prato novo que o fará sair da zona de conforto? Fazer ou não fazer barulho ao comer uma sopa em um restaurante chique?) e, para resolvê-los, tem a brilhante ideia de imaginar como um Samurai (Tetsuji Tamayama) agiria em seu lugar.

Parece o tipo de coisa que você assistiria? Provavelmente não, mas eu insisto que Samurai Gourmet é uma obra que todo mundo deveria ver. Por trás da ideia um tanto estranha a série se revela deliciosamente boa. Os dilemas são cotidianos e aparentemente banais, porém ganham um tom épico na cabeça de Takeshi.

Você simpatiza e se identifica com o protagonista já nos primeiros minutos. A série diverte, emociona, e é impossível não se pegar, ao menos em um dos doze episódios, pensando algo como “isso é o tipo de dilema que eu também teria no lugar dele”. Dois exemplos me vêm à mente: o dilema da cerveja no primeiro episódio; e o episódio do peixe, que, de forma tocante, aborda a nostalgia de uma passado belo, que continua vivo ao ser relembrado no presente.

Além de deixar com muita fome (é sério, não assista de barriga vazia), a obra faz refletir sobre a grandeza da banalidade do cotidiano, e sobre como a questão mais simples e corriqueira pode se tornar tão grandiosa quanto um filme de Akira Kurosawa. Obra do destino? Parece que um Ás de espadas foi aberto na mesa de pôquer da minha vida, porque era exatamente o tipo de coisa que eu precisava para aquele dia.

O mais belo e encantador de Samurai Gourmet reside no fato de fazer tudo isso com uma leveza e delicadeza difíceis de encontrar. O dia-a-dia ganha um tom, ao mesmo tempo, épico e intimista nas atuações brilhantes dos dois protagonistas; na trilha sonora; e, em especial, na fotografia, por meio dos movimentos de câmera fluídos; dos planos fechados e planos detalhe enfatizando a apetitosa comida; e do tratamento de cores e luz que alterna entre tons claros e lavados, normalmente com muito verde e azul, ao retratar Takeshi, e uma paleta mais escura e sóbria, com ênfase no marrom e contrastes marcados em luz e sombras, para o Samurai. A escolha por uma iluminação e paleta leve e que remete a sonhos, justamente para representar a realidade, diz muito sobre a mensagem da série: no mais aparentemente banal, reside o belo. Praticamente todos os elementos narrativos parecem nos levar a flutuar. Tudo é absurdamente cotidiano, absurdamente leve, e absurdamente poético.

Samurai Gourmet. Ep 1.
Samurai Gourmet. Ep 1.

Takeshi nos ensina que a coisa mais comum do mundo pode suscitar em nós os sentimentos mais belos. Afinal, o extraordinário nos faz sentir vivos, mas é o ordinário que, de fato, preenche grande parte de nossa vida.

Mas afinal, Samurai Gourmet é perfeita? Para responder, faço as palavras de David Ehrlich, crítico do portal A Escotilha, as minhas: “Há algo que estrague a série? Bem, uma coisa: ela acaba”.

Naquele dia, que tinha tudo para ser esquecido como foram muitos outros, devorei a série, cujos episódios duram cerca de vinte minutos, e fui dormir com um sorriso que há muito não tinha, e a certeza: nossos dilemas diários carregam muito mais beleza e poesia do que nos damos conta.

Série: Samurai Gourmet

Direção: Michihito Fujii e Mamoru Hoshi

Ano: 2017

Distribuição: Netflix

Baseado na obra de: Masayuki Kusumi

Referências:

EHRLICH, David. ‘Samurai Gourmet’: a saborosa liberdade da aposentadoria. A Escotilha. Olhar em Série. 3 dez. 2018. Disponível em: < http://www.aescotilha.com.br/cinema-tv/olhar-em-serie/samurai-gourmet-netflix-resenha/>. Acesso em: 11 mar. 2020.

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Rodrigo Quintino
OFFHistory

Professor, mestre em História Social. Crítico de cinema e RPGista nas horas vagas.