Silêncio (2016)

Rodrigo Quintino
OFFHistory
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4 min readDec 1, 2023
Silêncio (2016)

Silêncio foi um filme que assisti na não tão longínqua época em que cursava graduação em História, e, de certa forma, foi definidora para minha carreira acadêmica. Dalí, nasceu minha primeira pesquisa de Iniciação Científica e a paixão pelo estudo da relação entre cinema e Japão. O texto da Iniciação nunca foi publicado na íntegra, apenas em resumos de anais de eventos. Ainda pretendo publicá-lo, não sei quando, mas por enquanto, trago algumas reflexões feitas ao longo daquela pesquisa.

Para contextualizar o leitor que pode nunca ter ouvido falar desse filme, o que não surpreende se tratando de uma obra pouco conhecida, e muito subestimada, de Scorsese, Silêncio trata do contexto de proibição do cristianismo e expulsão de padres jesuítas do Japão no século XVII, durante o período Edo-Tokugawa. Nesse contexto, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), dois padres jesuítas portugueses, viajam até a terra do sol nascente em busca de seu antigo mentor, conhecido como Padre Ferreira (Liam Neeson). Lá, a dupla enfrenta a perseguição de um governo que deseja, por autodefesa, se livrar das influências externas, sobretudo de um país colonizador.

Silêncio (2016)

A obra, como típico de Scorsese, é grandiosa e impactante, tanto em forma quanto em conteúdo, e carrega discussões profundas em vários aspectos diferentes. O título (que, vale destacar, já dava nome ao livro que Scorsese se baseou) resume bem o que o diretor ítalo-americano faz: utilizar o silêncio para manifestação do silêncio. Parece óbvio, eu sei, mas permita-me elaborar melhor o pensamento.

Para nós, espectadores ocidentais, é estranho pensar em uma obra que se constrói, inteira, em suas mais de três horas de duração, sem trilha sonora, afinal, é a música a principal responsável pela manipulação dos nossos sentimentos na forma ocidental de se fazer filmes. Scorsese, acostumado que é com a indústria hollywoodiana, percebe isso e utiliza justamente o sentimento de estranheza da ausência de som para manifestar a principal temática da obra, o desconforto vivido pelo protagonista Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) ao se deparar com o silêncio de Deus em meio aos seus questionamentos morais e de fé.

Sebastião é constantemente confrontado com escolhas que colocam em xeque suas convicções de fé, sendo a principal delas a escolha imposta entre cometer apostasia, mesmo ato que seu mestre foi acusado de cometer, ou deixar que inúmeras pessoas sofram com torturas. Tal forma de agir, inclusive, demonstra o conhecimento das lideranças japonesas com o modus operandi cristão, pois, enquanto torturavam o próprio Sebastião, perceberam que ele se tornaria um mártir, porém colocando outras pessoas para sofrer no lugar dele, criaram um dilema de fé: permitir o sofrimento do próximo em detrimento do seu ou profanar um símbolo religioso sagrado.

Sebastião busca constantemente o auxílio divino sobre qual a atitude correta a ser tomada nessa situação, e tudo que encontra é, justamente, silêncio. Deus não lhe oferece uma solução, ao contrário, o deixa sem resposta, com um constante sentimento de vazio. Aqui está a sacada de Scorsese: incômodo do silêncio da falta de trilha sonora representa o incômodo do silêncio de Deus para com o protagonista.

Tal utilização de linguagem se pauta em uma ideia comum dentro do Japão: o Ma 間. Composto pela junção dos kanjis de portal 門 e sol 日, o Ma pode ser compreendido como um intervalo, um vazio, mas que permite que algo se manifeste através dele. Dessa forma, o vazio gerado pela ausência de música permite com que se manifeste, em nós, espectadores, as angústias sentidas por Sebastião dentro da diegese.

Silêncio (2016)
Silêncio (2016)

No entanto, o silêncio de Silêncio pode ser interpretado para além das questões de fé, pois outro tema abordado na obra é a dificuldade de contato e a falta de diálogos entre as duas culturas abordadas. Os cristãos têm muita dificuldade de explicar o cristianismo aos japoneses, que, por sua vez, temem as consequências da disseminação de tal religião. Aqui cabe um apontamento: embora um primeiro olhar possa dar a entender que o filme carrega uma abordagem maniqueísta, uma observação mais profunda mostra o contrário.

Silêncio não se preocupa em criar santos ou demônios, mas em retratar as dificuldades mútuas de compreensão da cultura do outro. Os japoneses reagem com tanta violência por medo da ameaça que o cristianismo causa a sua tradição cultural, além do temor da colonização já ocorrida nas Américas; os cristãos portugueses, por outro lado, não se esforçam para compreender essas tradições, mas tentam impor sua religião tal como disseminada na Europa. O vazio do silêncio transmite, também, a barreira de silêncio gerada pela falta de diálogo.

Nesse aspecto, não só a trilha sonora se destaca, mas também o aspecto visual. O filme, na grande maioria de suas cenas, é envolto por uma grande névoa embranquecida, o que pode também simbolizar, visualmente, as dificuldades e barreiras entre as duas culturas.

Silêncio, é portanto uma obra sobre silêncios: o de Deus para com os homens; e o dos homens, uns para com os outros.

Filme: Silêncio

Diretor: Martin Scorsese

Ano: 2016

País: Estados Unidos / México / Itália / Taiwan

Distribuição: Paramount Pictures

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Rodrigo Quintino
OFFHistory

Professor, mestre em História Social. Crítico de cinema e RPGista nas horas vagas.