“Não imaginam o prazer que é estar de volta” — a icônica frase que me faz querer fingir minha morte e realizar um evento só pra falar isso.

A melhor pior novela das nove

Felipe Soares
marmita
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10 min readMay 14, 2018

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Não é novidade para ninguém que eu odiei “O Outro Lado do Paraíso”, porém não há como negar seu sucesso. O que podemos dizer desse fenômeno que tinha tudo para ser um fracasso?

Sou assumidamente noveleiro. Minha primeira novela foi “Por Amor” em 1998, eu tinha 5 anos, não gravei quase nada, mas aquele final no Jardim Botânico ficou na memória. Desde então foram 20 anos de histórias (brasileiras e mexicanas), que alimentaram minha mente criativa. Somente minha família e amigos próximos ouviram minhas análises, alguns deles me acham chatos, outros gostam, e chegou a vez de vocês ouvirem minhas teorias.

A história

Iniciada em 23 de Outubro de 2017, a novela que substituiu “A Força do Querer” começou com uma responsabilidade gigante: manter a audiência do horário nobre e ser no mínimo tão boa quanto sua antecessora. A expectativa era grande, a última novela das nove de Walcyr Carrasco foi “Amor a Vida”, aquela com o Félix e o primeiro beijo gay da televisão brasileira.

Olha a carinha de quem sabe fazer novela, mesmo que ruim né!

Inteligente, Walcyr saiu do eixo Rio-São Paulo e ambientou sua história no jovem estado do Tocantins, dividida basicamente entre Palmas e uma cidade fictícia perto do Jalapão. A novela tem como pano de fundo a história de Clara, uma moça ingênua do interior e herdeira de terras cheias de esmeraldas, onde seu pai morreu tentando minerar. Ela se apaixona por um Gael, playboy de uma família respeitada e falida de Palmas. A mãe/vilã do playboy, Sophia, era contra o casamento, mas ao saber da riqueza que a menina desperdiçava faz questão de apoiar o casamento e arquiteta um plano para retirar de suas mãos as terras tão valiosas. Além disso, o príncipe vira sapo quando ele começa a espancar por ciúmes a mulher. Antes de denunciar o marido a menina é jogada num hospício pela sogra com a ajuda de outras pessoas. O que ninguém esperava era que a mocinha ia voltar. Com um plano que quase dá errado, Clara consegue escapar e dá início a sua vingança baseada na justiça.

Foram 173 capítulos de um folhetim típico do bem contra o mal. Vingança é um dos temas básicos para se construir uma história, um sentimento genuinamente humano que faz qualquer platéia esquecer os limites do real e imaginário. Liste agora quantas histórias tem como vingança o plano de fundo, vai se surpreender.

Porque é ruim?

Narrativa pobre de propósito

Essa é a maior crítica da novela. O texto era tão pobre que minha família ficava preocupada comigo por cada reação a um diálogo ruim. Não havia um jogo de palavras, um mistério, um cuidado na escolha de cada frase. Era tudo jogado, mastigado e exaustivamente explicado.

Nunca era só um “Eu te amo”, era um “Quando te vi entrar eu sabia que era você, só não admitia para mim. Com o tempo fui te admirando mais, querendo cada vez mais, te amando mais. Nossa é isso mesmo… Eu te amo!”, eu não sou burro, eu sei que aquele personagem está amando pelo simples motivo de que eu assisto a novela! As explicações estavam em todas as falas, em todos os momentos, parecia que somente a expressão do ator não era suficiente ou o público que era idiota.

Não era só no diálogo mastigado que fazia o texto ser pobre, mas sua profundidade. Não houve uma preocupação em informar o público, não queria fazer efeito na sociedade. Em outras palavras, simplesmente pegaram temas polêmicos para garantir audiência e não para pôr em pauta assuntos delicados, é como se numa conversa eu falasse “Deus não existe” e não mostrasse qualquer argumento para fazer o outro entender minha posição. A novela lavou as mãos e deixou os assuntos serem crucificados.

Machos escrotos e estereótipos

Não sei como o autor pensou nisso, mas tenho certeza que era um objetivo: mostrar todos os tipos de macho escroto na face da terra. Tem aqueles que batem em mulher, tem os pedófilos, tem os que casam e descasam pra manter a “fama”, tem os que não conseguem dizer na cara da mãe que ela é racista e ficar sem falar com ela, tem aquele que se faz de bom moço, aqueles interesseiros, tem os que pedem para a namorada virar prostituta e outros, muitos outros. O pior é que alguns deles viram heróis, são os galãs, do dia pra noite são do bem. Não houve um equilíbrio, então ou era muito ruim ou só ruim, o que torna difícil já que somos obrigados a ficar com o “menos pior”.

Você já fez melhor Walcyr!

Além disso reforçou estereótipos ao invés de combate-los. Depois de uma novela que ensinou o Brasil termos novos sobre sexualidade e gênero, assim como as nuances que existem nesse mundo, nosso querido Walcyr pisa na ré e volta tudo de novo. Primeiro com a dupla de cabeleireiros gays extremamente afeminados, como se só houvesse essa profissão para quem é poc (um beijo para todas as pocs!), depois temos uma história do diretor de hospital que ainda estava no armário, uma história completamente desperdiçada. Os gays eram a parte cômica da novela, fazer o público rir de um cara que ama outro cara, como se nesse país isso fosse completamente aceito e virar piada o que mais se precisa sobre esse assunto. Não houve por parte dos escritores uma criatividade para fazer esses personagens ou trazer esses temas à tona. As pocs eram as bichinhas engraçadas do salão e o diretor, só para mero prazer de rir de um cara que sai do armário. Tentaram consertar com um beijo longo dos dois, mas sem a preparação do público para tal cena ela foi simplesmente abominada, no metrô eu ouvi comentários negativos, era como se estivessem obrigando o público a ver.

No Sense, No Sense, No Sense

Podemos afirmar que essa novela foi a rainha do sem sentido. Em alguns momentos eu realmente fiquei Nazaré Confusa e só pensei WHAT? Gente cadê aquela pasta linda com todas as coisas que acontecem para a manter a história no mínimo aceitável? Fora que nela houve mais ressuscitações que a bíblia. Vou listar alguns sem sentido aqui para vocês:

Tô assim até agora com algumas coisas da lista.
  • Clara sumir e todos acharem ok;
  • Um hospício na beira do penhasco (quero muito conhecer essa locação de fácil acesso e no Brasil) ;
  • Tratamento de choque (já tá virando clichê Walcyr, você usou isso em “Amor a Vida” também);
  • Mercedes fala que Clara vai sofrer se continuar a se vingar. Ela se vingou e saiu ilesa e mais ryca que antes.
  • Renato vilão (a virada desse personagem foi a coisa mais ridícula da TV brasileira);
  • Adriana não reconhecer a mãe (com 10 anos você reconhece sim as pessoas);
  • Sofia receber o mesmo tratamento de Clara, mesmo a nova diretora não sendo corrupta e fazer tudo dentro da “lei”;

Nesse link ainda há outros no senses dessa novela que usa e abusa da falta de memória do povo brasileiro a seu favor. O problema é chamar o telespectador de burro, mas mesmo com toda essa incoerência ela bateu recordes, então há seu valor.

Porque é boa?

Soft por natureza

Em minhas aulas de TV na faculdade estudamos o livro “Sobre a Televisão” de Pierre Bourdieu. No segundo capítulo do livro ele diz:

“É uma lei que se conhece muito bem: quanto mais um órgão de imprensa ou um meio de expressão qualquer pretende atingir um público extenso, mais ele deve perder suas asperezas, (…) deve aplicar-se em não “chocar ninguém” , como se diz, em jamais levantar problemas ou apenas problemas sem história. (…) é o assunto soft por excelência.” — BOURDIEU, Pierre.

Quem viu a novela deve ter tido um insight e entendeu o que estou falando. A novela inteira é esse trecho. Walcyr ousou quando mostrou Clara apanhando e tratando do assunto de forma bem forte, porém a ousadia fez com que tivesse que correr com a segunda fase, o risco de ser encurtada era evidente e a saída foi seguir o conselho do nosso amigo Bourdieu: pegar leve.

Então aqueles temas fortes como racismo, nanismo, abuso infantil, foram colocados superficialmente, foram meros secundários, só estavam acontecendo ali e se resolviam na mesma velocidade que Patrick fazia as pontes áreas Palmas-Rio. Assuntos ótimos jogados no lixo, a novela poderia ser mais rica tematicamente falando, mas ao invés disso só quis deixar a mostra para nos programas da Globo falar que abordou temas polêmicos. O preocupante é que DEU SUPER CERTO!

Brasileiro gosta é de treta!

E eu estou mentindo? O motivo real do BBB 2018 ser um sucesso é porque a treta reinava. Tinham personagens fortes. Tinha o bem e o mal. Toda semana éramos presenteados com uma bela treta que culminava na eliminação de alguém.

Semelhanças entre duas narrativas são meras coincidências…

Essa estratégia de eliminação também aconteceu na novela. As vinganças de Clara eram realizadas uma a uma. Se estudarmos a curva de audiência eu tenho quase certeza que sempre há uma queda após a conclusão de uma vingança. A verdade é que todos não queriam ver a bela história de Clara na recuperação de seu filho, queríamos ver ela f*der com todo mundo.

A segunda fase foi boa porque todos nós éramos a Clara, todos queríamos vingança, todos nós ficávamos bem quando ela conseguia. Pode parecer meio perverso, mas uma novela nos garante o único momento em que podemos desejar a morte ou o mal de alguém sem culpa. Eu ficava impressionado com a quantidade de gente falando que todos os caras maus tinham que morrer, direitos humanos na ficção não existe, mas essa é a graça não é? (afirmação #polêmica)

O Bem contra o Mal e só

A eterna luta entre a luz e a escuridão, entre os jedi e o lado negro da força, entre Deus e o Diabo. Essa prática milenar de usar a dualidade das coisas sempre dá certo. Em minhas pesquisas me deparei com uma crítica interessante da novela (confira nesse link), onde ele diz que em épocas de crise histórias do tipo de “O Outro Lado…” são comuns e bem aceitas, pois desperta emoções contidas. Somos maquineístas, principalmente para culpar o que está acontecendo em nossas vidas, por isso precisamos achar um vilão e a novela nos entrega 5 de uma só vez.

Querem chegar em casa do trabalho que as castiga e ser recompensadas com exemplos claros da justiça que elas não encontram na vida real. Uma flagrante necessidade de recompensa emocional. — SZKLO, Henrique.

A novela preenche essa necessidade do brasileiro de justiça, de ter uma felicidade, ver cada vilão ser castigado por seus crimes é maior que a consciência daquela narrativa ser ruim, dos furos de continuidade, dos personagens fracos, dos diálogos explicativos e exaustivos. A vitória de Clara é o nosso prazer.

Isso explica muito fato de que no final ninguém prestou muita a atenção. A vingança acabou, não tinha mais nada para ver. Minha mãe estava dormindo, minha irmã não sabia que era o último capítulo, meu irmão e cunhada preferiram ver Guerra Infinita. O Brasil não parou para ver o final. Agora quem perdeu a novela pode rever a parte que realmente é boa em 10 capítulos no Globo Play, parece piada, mas não é.

Para concluir…

Walcyr Carrasco tem mais é que abrir uma champanhe com fogos de artifício. Foi um sucesso, bateu recordes e deu a Globo muitos dinheiros. Quem é a crítica perto de uma audiência de 49 pontos no Rio de Janeiro em seu penúltimo capítulo?

O que podemos aprender com isso é que conhecer o público é essencial (ele sabia o que o povo ia querer e entendeu quando ia querer, tanto que adiantou a narrativa para poder conquistar), entender o momento é essencial (o sentimento no país influencia sim no modo como escrevemos, não há como fazer uma obra sem sentir o termômetro social-político-econômico do país) e que ter auto-confiança é essencial (Walcyr tem que ter muita para falar que a novela dele era uma das melhores). O mais importante é que “O Outro Lado do Paraíso” mostra que ainda temos muito a avançar em termos de cultura e representatividade, se algo desse tipo é extremamente aceito, então é obrigação de quem no futuro fará esses produtos de mudar. A construção de uma real representatividade, de informar, alertar e conscientizar sem deixar de ser divertido é o nosso objeto de estudo.

Para a novela essa era a única coisa que existia em Palmas.

Aceitar uma novela no Tocantins onde a única externa era no Jalapão é como negar a cultura e verdade de um estado inteiro, mas isso é para outro post. Aproveitar que a próxima novela das nove também foge do eixo Rio-São Paulo e mostrar essa interiorização de nossas narrativas nacionais.

Falando nela, abaixo coloco a apresentação especial da próxima novela das nove que estréia hoje. “Segundo Sol” que já começa com uma expectativa maior e cheia de polêmicas.

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Felipe Soares
marmita

Cientista, publicitário e escritor. Curioso até demais.