Não escrevo mais relatórios, às sextas escrevo delírios

Felipe Moreno
2 min readSep 2, 2016

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Enviei centenas de e-mails corporativos,
escrevi centenas de posts institucionais,
slogans, catálogos, releases.
Às sextas escrevi relatórios.

Isso no passado. Hoje não.

Hoje escrevo da vida, por ela, sobre ela.
Da minha, dos outros, de tudo o que é dela.
Um inútil para o mercado, um coitado para quase todo o resto.
Enquadrado no código penal da inutilidade,
dos ‘desaserviçados’, ‘infuncionais’, desnecessários,
da mesma laia que professores de filosofia de colégios particulares,
prejudicando a dobradinha das aulas de Física uma vez por semana;
da laia dos músicos que às terças tocam covers em bares vazios;
ou dos hippies que importunam pedestres para vender seus artesanatos.

Escrevi para empresas e marcas; escrevi números e dados.
Isso antes, porque hoje não.
Hoje brinco com as palavras, ataco fogo em cada uma delas.
E se antes ainda era alguma seriedade, conduta, informação,
hoje são obscenas, reles, preguiçosas.

Sem um puto no bolso, é verdade, mas com o peito da palavra cheio de [descobertas.
Antes tinha dinheiro, vestia boa roupa, tomava café caro, nascia em notebook [e era lida por homens qualificados.
Hoje anda com o bolso sem um puto, a sola do tênis aberta, o dinheiro do [transporte contado, surge em guardanapo de boteco com caneta bic e quem lê são algumas moças e os moradores de rua.
(Viva meus lambes!)

Tirei a roupa social das minhas palavras e dei a elas um presente:
deixei que ficassem nuas, soltas, declaradas, vivas,
acessíveis para traduzir qualquer merda da minha cabeça maluca.

Minhas palavras já não dizem mais números, noção, notícia:
agora gritam bichos, maus modos, nomadismos.
Se se depara com o outro e o outro a vê inútil, mesquinha
(quando com sorte, bonita).
Pois não escrevo mais relatórios,
Às sextas escrevo delírios.

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Felipe Moreno

Haicaísta com ternura, prosador com afiação (e vice-versa). Autor de “o bambu balança” (Bestiário, 2022): https://tinyurl.com/36r2kc4j