Entrevista com Jész Ipólito: Gordofobia não é isolada!

Marco Magoga
ograndeclose
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20 min readJan 17, 2018

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Foto: Regiane Silva

E O Grande Close Entrevista está de volta! Dessa vez com uma das pioneiras da militância gorda no Brasil, Jéssica Ipólito. Jész, como gosta de ser chamada, tem 24 anos, atualmente mora em Salvador — BA e escreve no blog Gorda e Sapatão (inclusive, se vocês não conhecem, leiam!). Jészdeu uma entrevista babadeira pra mim, e você confere as respostas logo abaixo. E lembrando que pra quem ainda não leu a primeira entrevista da coluna O Grande Close, com a Bee Reis, é só clicar aqui.

[O Grande Close]: Então, Jéssica, me conta um pouco sobre sua infância e adolescência. Você foi uma criança/adolescente gorda? Que marcas você imagina que isso deixou em você, quais as lembranças que você tem dessas épocas?

Primeiramente, FORA TEMER! (não dá pra perder nenhuma oportunidade, néan?)

Bom… Eu gosto de relembrar essa parte da minha vida, principalmente porque agora eu tenho consciência política do que já vivi. Minha infância eu lembro pouco… Tenho alguns episódios que marcaram, como por exemplo, o fato de ir sempre pra fazenda onde minha tia trabalhava no sistema casa-grande-senzala. A família da minha mãe nasceu e cresceu no interior de São Paulo, numa cidadezinha muito pequena chamada Turiúba. Lá viviam trabalhando em plantações desde pequenos. Minha mãe conta que a casa que ela morava era de barro, bem humilde e com muita gente, família grande… A comida não era farta, nem as condições de vida eram boas. Minha mãe logo saiu da roça e foi morar sozinha na “cidade grande” e trabalhar. Nesse contexto, uma tia e um tio ficaram mais tempo vivendo/trabalhando em fazendas, e disso eu me lembro bem… Dos feriados que íamos de ônibus pra Santa Fé do Sul ou Planalto (tudo interior de SP). Eu sendo uma criança gorda e grande, sempre fui alvo de comentários maldosos. Minha mãe também, porque diziam que a culpa de eu ser gorda era dela. Depois de um tempo, principalmente durante a adolescência, parei de ir pra casa desse meu tio, irmão mais velho da minha mãe, porque ele sempre era muito hostil e grosso comigo, me repreendia quando eu comia alguma coisa, falava bosta pra minha mãe e ela não ficava quieta, daí eles brigavam bastante.

Na escola eu era temida, me lembro de empurrar os mulekes na hora do recreio porque eles ficavam me xingando. Eu era a maior da turma geralmente, só perdia pra alguns meninos. Então eu tive que usar da violência algumas vezes pra me defender. Eu lembro que teve uma época que meus pelos começaram a crescer muito, até no rosto, e os garotos faziam coro no intervalo gritando de “gorda baleia saco de areia“e “macaca peluda não abraça senão ela te esmaga“. Lembro de chegar em casa e passar a gilete no meu corpo todo. Quando minha mãe viu, ficou brava comigo porque eu não podia usar aquilo. Mas eu não contei a ela o que tinha acontecido; senti vergonha, e senti que era culpada. Eu era muito encrenqueira na escola, conversava demais, respondia professores… Vira e mexe eu ia para diretoria, além de que, eu também adorava passear pelo pátio fora de hora (quem nunca?).

No ensino médio eu dei uma segurada, mas eu fazia parte do grupinho dos esquisitos, pois tinha outra gorda — minha amiga — e uns meninos feios, com nome esquisito… Quero dizer, não éramos nenhum pouco populares, e nem queríamos ser. Naquela época eu só queria ouvir umas bandas de rock, bolar um plano pra conseguir sair no final de semana (minha mãe não deixava eu sair muito, era difícil convencê-la), e enfim… Só isso. Eu continuava gorda, os xingamentos continuavam, mas eu não agredia mais ninguém. Enquanto minhas amigas arrumavam seus primeiros peguetes, eu estava lá pra ouvir o que elas contavam. Não tinha vontade nenhuma de ir atrás dos garotos; pelo contrário, eu nem lembrava deles… Aliás, só lembrava quando rolava os comentários das amigas sobre quem pegou quem. Eu sentia que estava de fora, que não fazia parte… Em alguns momentos eu até quis fazer parte, teve uma vez num bar que um cara ficou afim de mim, eu achei ele engraçado… A forma como ele flertava, conversava… Até que no final quando fui me despedir, nos beijamos. Foi bem estranho! Mas eu também senti que tinha feito parte do todo naquele momento, e a sensação de pertencimento e a forma como você é tratada quando cumpre um determinado papel social é como um gol na Copa do Mundo, bem bizarro!

Na escola eu ficava olhando as sapatonas, tinha algumas assumidas e outras que não, mas que todo mundo falava que eram (e eu sabia que eram, e elas também). Eu tinha umas atitudes lesbofobicas, falava mal delas, dizia “credo”, não me aproximava… Mas era tudo lesbofobia internalizada porque eu queria ser exatamente como elas, ter a liberdade que elas tinham e que exibiam sem pudor, eu queria usar as roupas que elas usavam, dançar da forma que dançavam umas com as outras… Enfim, eu adorava o jeito que elas se expressavam. Eu queria ser uma delas! Mas só fui entender isso quando sai de casa pela primeira vez pra me casar com uma mulher.

[O Grande Close]: Bem, você foi uma das pioneiras no ativismo virtual. Eu, inclusive, aprendi muito com você quando comecei a querer me informar mais sobre feminismo, movimento negro, até eu descobrir que existia uma militância gorda atrelada a esses movimentos. Como foi esse processo de tornar-se essa militante que acabou virando referência? Você já era alguém que militava “na vida real” e depois começou a publicar isso na internet, ou foi um processo mais orgânico e “natural”? Conta um pouco dessa sua trajetória política.

Eu também não sei como aconteceu de eu virar referência, de verdade, não sei, mas fico feliz com isso. É gratificante e fortalecedor saber que as minhas ideias movimentam e se somam com outras, que as pessoas refletem sobre o que eu falo e/ou escrevo e que elas levam isso a outros espaços, e assim novas articulações são construídas. Eu comecei a escrever no blog na mesma época que eu comecei a me enfiar nos movimentos sociais, nos idos de 2013. Me enfiava mesmo porque eu ia aonde não me convidavam, ficava ouvindo tudo bem atenta e voltava pra casa pensando em tudo, mas eu não entendia direito como as coisas funcionavam, mas isso não foi um empecilho.

Quando comecei a participar mais efetivamente no movimento feminista em São Paulo, meus textos foram ganhando mais embasamento, eu conseguia perceber o que acontecia comigo enquanto gorda e lésbica e que era tudo por conta do capitalismo patriarcal, era por causa de uma estrutura bem maior. Assim, fui me livrando da culpa que sentia por ser eu. Depois passei a ir a encontros do movimento negro de mulheres, participava de seminários (não como debatedora), palestras, apresentações, rodas de conversas… Nesses momentos eu fui compreendendo minha negritude, compreendendo as questões raciais, compreendi a família que eu tenho e nossas trajetórias. Enfim, eu colava em muita atividade e isso foi muito bom pra eu conhecer as inúmeras possibilidades de fazer política e eu fiquei (ainda fico) encantada ao ver mulheres organizadas discutindo suas demandas. Tudo caminhou junto, o blog e a militância mais física nos movimentos, mas eu não registrava tudo que fazia na rua, eram mais minhas reflexões a partir de como eu ia me compreendo como um ser político. Todos os espaços que participei foram importantes na minha formação política que ainda está em andamento sem prazo de validade. Todas as mulheres foram importantes pra eu compreender quem sou eu e qual o meu lugar nesse mundão.

[O Grande Close]: É uma pergunta básica, mas eu percebo que a internet ainda não chegou a um consenso sobre o assunto. Qual é a definição de gordofobia pra você? (eu sei que você falou sobre no Canal das Bee, mas queria deixar registrado aqui também).

Eu acredito que temos um consenso mínimo sobre o que é gordofobia, mas talvez, um conceito mais elaborado esteja ainda em vias de acontecer, porque temos corpos gordos diferentes, vivências diferentes e a depender do ponto de partida, a definição de gordofobia pode diferir. Ainda não estamos organizada/os enquanto movimento social pra garantir uma concordância nos conceitos, mas não acho isso de todo mal, é até bom para mostrar que a gordofobia se manifesta de inúmeras maneiras.

Eu entendo como gordofobia as inúmeras manifestações de ódio e ojeriza, institucionalizadas e individualizadas, contra as pessoas gordas, o que não se limita a dificuldade em encontrar roupas (essa é só um viés da gordofobia). Eu falo de pessoas gordas, aquelas que sentem na pele o cerceamento do seu ir e vir nos espaços públicos, principalmente, como ônibus e suas catracas horrendas, bancos e cadeiras estreitas e apertadas, poltronas… Além de todo o imaginário social criado a respeito uma pessoa gorda, calcado em estereótipos pejorativos e depreciativos, que recai na nossa subjetividade causando lacunas irreparáveis.

O debate sobre gordofobia e aceitação do corpo é recente, e muita gente ainda acha que estar gorda é algo ruim, ou acredita que uma pessoa gorda é sinônimo de doença. A patologização do corpo gordo ainda persiste. Estamos ainda nos compreendendo como seres humanos dignos com corpos gordos, estamos compreendendo nossos tamanhos com normalidade, com beleza, com apreciação e reverência. Estamos aprendendo que ser gorda não é um xingamento ou palavrão; ser gorda é também ser linda e admirável! Pouco a pouco estamos quebrando a lógica perversa que está posta para alijar mentes e menosprezar corpos. São passos pequenos, mas muito importantes para uma construção futura de militância mais forte, estruturada, coesa e assertiva.

[O Grande Close]: E você acha que a militância virtual pode ser um recurso na luta contra a gordofobia e as diversas formas de opressão?

Ela tem sido a única forma de aproximar pessoas para a necessidade de se lutar contra gordofobia e eu acho imprescindível que ela continue através da internet e que cresça para além das páginas. Isso já tem acontecido, eu já fui a debates sobre gordofobia promovidos por coletivos, por exemplo. Já tive notícias de movimentos assim rolando em algumas cidades fora do eixo RJ-SP. Então a internet é sim uma ferramenta primordial na conscientização sobre as correntes que nos prendem, não devemos menosprezá-la jamais. A internet tem uma força mobilizadora surpreendente, é só saber usá-la a nosso favor!

Foto de Rafael Canoba para o Ensaio (in)contornos

[O Grande Close]: E falando diretamente sobre pessoas gordas, você acha que a “aceitação” e o “amar o corpo”, o que se costuma chamar de empoderamento, é suficiente? Ou há outras questões a serem tratadas além dessa?

Não é suficiente, empoderamento é só uma parte que ajuda a chegar a outras questões, que são muitas. Eu vejo, por exemplo, como a questão econômica é um pilar a ser descascado sob o viés da anti-gordofobia. Onde as pessoas gordas estão empregadas?! Isso já se liga à questão de gênero, raça e classe. Por exemplo, a área de telemarketing, lugar que estive por muito tempo, é um ambiente onde você encontra muitas pessoas gordas/negras/LGBT’s; esse tipo de subemprego não exige a tal da “boa aparência”, pois você só usa sua voz ali. Mas em empresas multinacionais há mulheres gordas negras? Em que cargo? Sabe… As questões são interseccionais, são mais estruturais do que tão somente o empoderamento individual, por isso não podemos ficar presos a ele. Em contrapartida, ele é fundamental, porque se a gente não se sente minimamente bem com quem somos, como vamos sair de casa pra pleitear algo social e coletivo?! Fica difícil, a chance de desistir é maior.

E é aí que eu vejo a importância de nos organizarmos como movimento social anti-gordofobia, que não temos ainda (ou eu ainda não soube, me avisem desse bafo!), mas que seria muito útil pra colhermos nossas demandas, debatermos nossas questões, apoiarmos e somarmos em outros movimentos, enfim, fazer a roda girar a nosso favor. Esse é um sonho que eu tenho mesmo, de fazer parte de uma organização anti-gordofobia, de poder incidir nas políticas públicas de saúde, por exemplo, pra termos um atendimento mais digno nos consultórios médicos; pra que nos planos de educação a questão de gênero, sexualidade e o debate anti-gordofobia estejam presentes, de mãos dadas. Eu sozinha acho muita coisa, imagina se estiver junto de outras pessoas debatendo isso?! Sairiam ideias mais estruturadas, tenho certeza! São muitas questões que permeiam a questão da gordofobia, antes fosse só a aceitação do corpo! (Risos)

[O Grande Close]: Qual sua relação com o termo plus size? Você se sente representada? Que tipo de corpo gordo você acha que ele visa representar?

Esse termo Plus Size não me representa porque diz respeito a um segmento da moda, que se utiliza de um suposto novo conceito de corpo pra vender um padrão de existir. Então não tenho como me sentir parte disso politicamente. Esse termo diz respeito às mulheres mais “curvilíneas”, e eu sou gorda mesmo! 150kg, meu caro! Jamais o Plus Size e esse mundo da moda vai me representar (Risos). No entanto, eu adoro quando a gente se apropria das coisas, como por exemplo as minas do rap: Issa Paz e Sara Donato com o Rap Plus Size! As minas mandam muito na letra, destroem com o machismo da cena rap, falam sobre o poder do corpo gordo, e não são curvilíneas, sabe?!

Isso é fantástico! Ressignificar o termo Plus Size nesse contexto é muito positivo. Mas a indústria da moda é bem cruel e não poderia ser o contrário, porque a função ali é o lucro, e como aliadas temos as indústrias farmacêutica e a mídia: o combo para provocar adoecimento mental e físico, que vai gerar lucro. A nossa depressão gera lucro, enriquece bolsos e explora pessoas para que outras tenham seu empoderamento em casa. Não dá pra aceitar tudo sem questionar a quem essas indústrias servem realmente e como nosso empoderamento individual pode acontecer pautando essas questões estruturais, promovendo questionamento e consciência para não reproduzirmos outras opressões.

[O Grande Close]: Você acha que a gordofobia deve ser tratada como um assunto “isolado” ou é um fator que sofre influência de outros fatores? Por exemplo, a luta contra a gordofobia de um homem branco hétero e de uma mulher negra lésbica pode diferir ou “a causa é a mesma”?

Não da pra ser tratado isoladamente e também não acho que a causa é a mesma. Mas só vejo como possível a construção de um projeto político anti-gordofobico maior e coletivo se ela estiver alinhada a outras questões, como o anti-racismo e o feminismo. Não faz muito sentido pra mim um homem hetero branco gordo lutando contra a gordofobia porque ele tem privilégios que precedem a gordofobia, ele teria que lutar contra o racismo também, reconhecer seus privilégios e encarar qual seu lugar socialmente, ir contra o sistema hegemônico branco… Enfim, uma série de coisas, que não raro, os homens brancos não querem abrir mão. E eu não vou convencer um homem branco cisgenero de que isso é necessário pra causa.

Então, nesse sentido, a construção de um projeto político deve ser encabeçado por quem está na linha de frente da pancadaria diária: as pretas, as mães, as lésbicas, as mulheres transexuais, as bissexuais, as travestis, as pessoas com necessidades especiais (seja de audição, fala, visão), e até os boys gays eu acredito que podem somar nessa. Enfim, as pessoas que reúnem em vida um combo de opressão, porque quando estiver bom pra gente-gorda-preta-lésbica-mãe, por exemplo, vai estar muito melhor pro homem branco porque a gordofobia pra ele nem vai chegar. Então os agentes são diferentes, as demandas são diferentes, e num país colonial e racista, é fundamental a luta anti-racista como base pra se pensar ações anti-gordofobia que atinjam as áreas da saúde, da educação, da cultura, de moradia e por aí vai…

[O Grande Close]: Você acha que militâncias lgbttq+, gorda, feminista e negra podem contribuir e se fortalecer entre si?

Siiiim! Devem! Sem passar por cima de ninguém, sem achar que é olimpíada da opressão, sem omitir que o racismo é a grande desgraça plantada por aqui, que a misoginia e o machismo matam também diariamente. Em suma: sem negar nossas diferenças, sendo propositivos e unindo forças em um alvo em comum de cada vez.

Foto de Renata Martins

[O Grande Close]: Há um “lado negativo” em estar tão “na linha de frente” da militância já há certo tempo? Se sim, quais os desgastes pessoais que isso pode acarretar? Você já sofreu algum tipo de desgaste por ter dado “a cara a tapa”?

Há o lado do cansaço em lidar com tanta energia ruim em cima de você, sabe? Quanto mais eu ficava conhecida, mais demandas iam surgindo, mais pessoas me solicitavam a todo momento, mais negligente com minha vida eu ia ficando porque não sabia lidar com tudo ao mesmo tempo… Como ainda não sei. Ser “famosa” ainda continua sendo um choque pra mim, eu fico com cara de pastel sem saber o que falar quando alguém que eu não conheço vem falar comigo, dizer que me segue nas redes e que gosta do que eu faço. Não é ruim! É muito legal! Mas eu sou tímida também, não sei fazer muito mais do que agradecer e pedir um abraço.

Eu me afastei da militância já tem um tempo (um ano), fiquei só com a construção da Don’t Touch My Hair (uma festa black que eu ajudo a organizar em SP) e os planos pra novas atividades em feminismo interseccional (com as migas da DTMH). Aí fui aprovada na Universidade Federal da Bahia recentemente e mudei de Estado, de estilo de vida, ainda estou me adaptando, mas tudo isso muito quieta, sem conseguir escrever. Recusei palestras, fui diminuindo as escritas no blog (normal, nunca fui muito assídua na produção de texto). E também pelo cansaço mental, por desanimo, por falta de auto-estima, por não me sentir boa suficiente em nada, por estar desempregada e tendo de me virar com pequenos trabalhos, enfim…

No início desse ano eu sofri dois ataques de odiadores no Facebook, e isso me cansou muito! Meu blog também já sofreu ataques algumas vezes a ponto do servidor sair do ar. No Instagramtambém rolou a mesma coisa, tive meu perfil derrubado do dia pra noite, e era um espaço muito legal, que eu gostava de interagir porque a dinâmica lá é diferente. Compreendi que dar a cara a tapa tem um preço e que é preciso administrar a forma como se paga senão você fica devendo. E por um tempo eu fiquei em dívida comigo mesma, sabe? Agora eu estou buscando meu equilíbrio, retomando minhas vontades, meus sonhos mais íntimos e aprendendo a saber mediar tudo isso com responsabilidade, tanto para com a militância quanto para minha vida. Eu agora começo a estudar bacharelado em Gênero e Diversidade, um curso “militante” por assim dizer, e acredito muito que vou poder contribuir de outras formas para militância estando agora na Universidade, e é por isso que eu preciso me centrar, estudar e alinhar pra garantir que tudo caminhe bem e que nenhuma parte de minha vida fique prejudicada como já esteve antes.

[O Grande Close]: O que percebo muito na internet, especialmente quando falamos de militância gorda, é que ainda temos muita “militância de vivências”, ou seja, pessoas falando sobre a experiência de ser uma pessoa gorda, mas não parece haver a mesma força pra levar essa militância para uma “organização Acadêmica”, ou seja, desenvolver termos e conceitos, pesquisar dados, construir pesquisas empíricas. Você acha que isso é necessário, essa “organização” do movimento, trazê-lo para a Academia?

Eu vejo que o debate sobre gordofobia tem ganhado espaço aos poucos. Já participei de entrevistas para TCCs sobre gordofobia, projetos de pesquisas também… Ainda é pouco e mal divulgado, mas tem gente fazendo esse movimento sim. Apesar de não achar que a Academia seja o suprassumo social, acredito que ocupar esse espaço com nossas questões é muito necessário! Produzir pesquisas e teorias a partir das vivências é muito significativo, tanto que me encantei com a artista visual Fernanda Magalhães, de Londrina-PR, que propõe pensar o corpo gordo e sua existência a partir de si mesma. Eu gosto muito da série A Representação da Mulher Gorda Nua na Fotografia, 1993, sugiro que conheçam. Já é o debate sobre corporeidade gorda na academia.

Precisamos conhecer também Milly Costa, militante anti-gordofobia e anti-racista há muito tempo em Salvador, mas que eu mesma só vim conhecer a pouco mais de um ano. Ela faz parte do Coletivo Gordas Livres, que tem canal no YouTubee página no Facebook pra discutir gordofobia interseccionando outras lutas. Então não vejo como um movimento só de ida até a Academia. Não é só isso. Precisamos saber das pessoas que já estão na luta e que são invisibilizadas, nos apropriarmos do debate e estabelecermos uma via de mão dupla entre produção acadêmica e vivência, sem sobrepor uma a outra dando carga de valor maior ou menor para as atuações das pessoas gordas em movimento.

[O Grande Close]: Relacionado à questão anterior, você percebe que estamos organizados enquanto militância no Brasil ou ainda é um movimento muito recente? Como melhorar?

Primeiro que (FORA TEMER!) creio que é preciso acreditar que somos militantes anti-gordofobia nas redes sociais, e que esse ato é político. Acreditando no que somos, promotoras de políticas de combate à opressão, fazer o movimento de sair da internet e nos encontrar pessoalmente já seria um ótimo passo! Nos organizarmos, estarmos próximos, promovendo debates políticos, tensões e alianças, traçando estratégias e rumos… Enfim, contato direto, presença, voz, ouvir uns aos outros. Mas acredito ser uma questão de tempo pra essa militância tomar um corpo mais aprumado e pleitear suas demandas com os pés no chão.

Fora que lutar contra gordofobia precisa ser algo dentro do contexto que vivemos: um país racista, golpista atualmente — querendo a volta de Estado de exceção por completo — encarcerador de pretos e pobres, separatista: quem tem, tem, e quem não tem, não tem! Então eu vejo que se faz necessário sim estabelecer uma linha ideológica de atuação como ponto de partida pra gente não ficar que nem galinha ciscando em terreiro o tempo todo, sem rumo nem objetivo final. Também é necessário pensar numa pratica: pra mim, se não houver debate e práxis anti-racista, feminista, que pense nas pessoas LGBTs, já fica complicado de se estabelecer algo mais conciso. A gordofobia não age sozinha, ela faz parte de uma estrutura de poder muito maior. Por isso, achar que vamos resolver só a gordofobia e tudo vai ficar lindo é muita ingenuidade e falta de olhar ao redor. Novamente, quando juntas/os, as ideias de ações e demandas vão se organizar bem melhor e poderemos saber, coletivamente, por onde começar a incidir.

[O Grande Close]: Eu percebo no seu blog que você tem uma relação muito particular com a Arte. Você acha que a Arte pode ser uma aliada na(s) militância(s)?

Com certeza! Tanto que em 2014 eu fiz o “Desafio da Arte Gorda”, que foi um chamado às pessoas que produzem arte de alguma forma (desenho, ilustração gráfica, pintura, esculturas, grafite, etc) para pensar as formas que o corpo gorda era desenhado em suas obras. Isso veio da minha insatisfação de ficar horas a fio vasculhando o Tumblr, Pinterest, Flickr, e outras plataformas de compartilhamento de imagem, que não tinham mais as imagens que eu gostaria de usar no blog. Além de ser uma iniciativa questionadora da normatividade. Sempre foi muito difícil manter essa parte visual atualizada e que dialogasse com minha proposta no blog porque justamente a área das artes visuais é muito inflada de uma estética eurocentrada, magra, padronizada como um todo. Daí me veio a ideia de provocar as pessoas a pensarem a forma como elas produzem as imagens e o porquê dessas pessoas não pensarem — primeiramente — em retratar uma pessoa gorda quando vão desenhar.

Foi muito legal promover esse desafio porque eu tive várias respostas maravilhosas, além de imagens incríveis! Mas o interessante foi ler algumas pessoas comentando que nunca tinham parado pra pensar no porque elas só desenhavam corpos magros e/ou pequenos. Era isso que eu queria! Despertar as pessoas pra esse outro olhar, sabe? Mostrar que há inúmeras possibilidades de se pintar uma pessoa e que isso é político, faz parte de uma reflexão pessoal que vai desencadear na desconstrução da imagem dos corpos sempre magros, sempre brancos, sempre mais do mesmo. Ou seja: produzir arte contra hegemônica! Por isso que convocar essas pessoas que produzem arte a refletir sobre a corporeidade que retratam é uma forma de combater a gordofobia. A arte visual é aliada imprescindível nessa luta, pois é a partir daí que poderemos ter numa mídia mais diversificada de fato.

Eu não sou “entendida das artes”, eu só gosto de me ver retratada (porque isso é raro!), gosto de ver pessoas diversas sendo fotografadas ou pintadas, sabe? Gosto de ver pessoas reais, e não a ideia torcida do que é ser mulher (imageticamente falando). Tenho algumas referências pra vida como Zanele Muholi, artivista sul-africana que fotografa com sensibilidade única lésbicas negras, pessoas trans negras. Adoro o trabalho dela! Também tenho muito apreço pelos trabalhos de Chris Campbell, Hermann Mejía, Lucien Freud, Susan De Waard-ruiter, David Moko Jumbie (❤), que pude conhecer ao longo desses anos de blog em que vasculhei a internet atrás de referências positivas de pessoas gordas.

[O Grande Close]: Eu particularmente te acho super estilosa. Qual sua relação com Moda e como você vê a moda pra pessoas gordas atualmente?

Não tenho relação com a moda, eu não sei nem definir meu “estilo”. Acontece que eu vivo de exceção! Tudo que eu tenho de roupa vem da “moda senhora” ou “moda evangélica”, mas são aqueles achados que você nem espera encontrar, então eu misturo com cores fortes (amarelo e roxo são minhas preferidas!). O que rola é que não tem muita opção, a menos se você tiver dinheiro. A moda gorda ainda é muito cara e inacessível pra maioria das pessoas. Algumas lojas podem se considerar exceção com seus bota foras, mas é isso…

É difícil de achar roupa que compreenda o estilo de cada pessoa gorda, no geral, a área da moda acha que só podemos nos vestir com estampas esquisitas, roupa preta e larga, ou algo bem cafona. Atualmente existem lojas que não representam essas ideias, como a Chica Bolacha por exemplo, mas eu não me sinto atraída por aquelas peças, não faz “meu estilo”, sabe?! Acho tudo lindo, e fico feliz em ver as pessoas produzindo roupas diversas… Mas é isso, precisamos de várias iniciativas dessas, comportando outros estilos de roupas, com tecidos diferentes, peças sem estampa ou com grafites, por exemplo, que é o caso da arte da Grafiteira Nenê Surreal de Diadema –SP , que tem peças grandes e todas estampadas que eu adoro! Um estilo urbano e confortável , que dá pra usar no dia e na noite. Eu amo o trabalho dela! Já tive a honra de desfilar com uma de suas peças junto com as minas do Africa Plus Size Fashion Week, ano passado, inclusive outra iniciativa PRETA — vale ressaltar — de transformação da moda para as gordas. A gente precisa se vestir bem porque é uma forma de nos expressarmos, mas se o mercado da moda não se atenta pra essa demanda permanente, a gente sai vestida com peças que não dizem quase nada sobre quem somos. Isso é péssimo. As pessoas magras tem infinitas possibilidades de existir, porque pessoas gordas não?!

[O Grande Close]: Essa pergunta eu fiz pra Bee Reis e vou fazer igualzinha pra você:

Na coluna eu tenho recebido muitas respostas inbox e comentários e tal, tanto de pessoas muito mais velhas dizendo “nossa, nunca tinha pensado nisso, e me fez refletir”, como de pessoas muito novinhas, que ainda acham normal a patologização dos gordos, e aos poucos vão abrindo a cabeça. Então eu queria que você desse um recado pras pessoas que estão lendo essa entrevista, são gordas e independente da idade estão repensando seu posicionamento no mundo.

Seja bem-vinda! Não se assuste; algumas coisas podem parecer estranhas num primeiro olhar, mas não se preocupe, continue frequentando esse espaço, clique em todos os links sugeridos, assista aos vídeos indicados, converse com as pessoas de sua casa, com suas amigas e amigos, busque saber cada vez mais sobre o que te interessa, sobre o que te desperta. Entenda que um corpo gordo é belo e pleno assim como todas as outras formas de ser. Sinta-se à vontade, busque dialogar e ouvir as pessoas. Pense a respeito do que ler aqui e em outros espaços. Pense a respeito de si mesma. Se olhe no espelho, se aprecie também, isso é importante. Siga em frente, construa suas reflexões e compartilhe com quem puder. Um beijo pra vocês! ❤

Foto de Alile Dara Onawale.

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Marco Magoga
ograndeclose

é amante da Moda, casado com as Artes, em processo de divórcio com o senso comum.