Ex-gordos e a “Síndrome de Monica Geller”

Marco Magoga
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10 min readJan 17, 2018

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Faz um tempo que esse assunto está na pauta de “assuntos a serem abordados” pela coluna. Mas esse texto da Cida Neves que pipocou na minha timeline por esses tempos aliado a essa notícia sobre os efeitos metabólicos sofridos pelos concorrentes do Reality Show The Biggest Loser (que incentiva pessoas gordas a emagrecer através de dietas ultra restritivas e cargas absurdas de exercício, mas que provou não ter resultados duradouros na vida dos participantes) me motivou a abordar esse assunto agora.

O assunto “ex-gordos” sempre vai gerar muita controvérsia; pessoas que eram gordas e emagreceram devem postar montagens de “antes e depois”? Qual mensagem essas fotos (e os discursos que geralmente os acompanham) transmitem, ou visam transmitir pra quem as vê? E pra não ser julgado como “ditador de regra”, já que partimos do pressuposto que cada um posta [quase tudo] o que quiser na internet, e um pouco traumatizado em não envolver ninguém “famoso” nas problematizações, resolvi ilustrar esse texto com uma “teoria”, que eu chamei carinhosamente de “Síndrome de Monica Geller”.

Se você é da geração y ou z muito provavelmente já assistiu a série norte-americana Friends. A série, que foi ao ar no período de 1994 a 2004, teve mais de 200 episódios e foi considerada em 2015 por profissionais de Hollywood como a melhor série de todos os tempos. Atualmente está disponível na TV a cabo ou no catálogo da Netflix. Pois bem, uma das personagens da série é Monica Geller, vivida pela atriz Courteney Cox. Apesar de magra, descobrimos no decorrer da série que Monica Geller fora gorda na infância e adolescência. E essa vivência não só serve como alívio cômico para a personagem na série, como define uma série de coisas no seu futuro: relacionamentos, formas de pensar e práticas cotidianas.

Monica Geller, se fosse real e vivesse na era do Instagram, provavelmente nos brindaria com montagens de “antes e depois” e com textos “motivacionais” sobre força, foco e fé. Então, como forma de não expor pessoas, mas só apontar problemáticas de discurso, vou ilustrar esse texto com fatos e acontecimentos da vida da personagem da série, ok? Mas apesar do texto escrever sobre uma pessoa fictícia, ele aponta pra problemáticas e vivências reais. Já começo dizendo — e destacando — que:

NÃO É ERRADO:

– Emagrecer (ou engordar). Ou querer emagrecer (ou engordar);

– Fazer/viver de dieta (ou não fazer), desde que você tenha o acompanhamento adequado pra não fazer besteira e acabar prejudicando seu corpo e metabolismo;

– Postar suas vivências e pensamentos online, já que as redes sociais são suas e você responde pelo que posta em cada uma delas.

Mas então, como saber se na verdade eu não estou vivendo a “Síndrome de Monica Geller”? Fique atento aos sintomas:

  1. Dietas extremas e malucas visando resultados rápidos.
Mônica cumprimenta Chandler, se apresentando como “a irmã menor do Ross”. Chandler faz uma expressão sarcástica.

Um resumo da historinha: Mônica jovem se apaixona (na linguagem moderna, tem uma crush) por Chandler jovem. Monica jovem ouviu Chandler falando em um feriado de Ação de Graças que não ficaria com ela porque ela era gorda. Monica jovem então decide se vingar. No feriado de ação de graças do ano seguinte, Monica aparece com um corpo com praticamente metade do tamanho de um ano atrás. Chandler agora se interessa por Mônica. Ou seja, no período de apenas um ano Mônica perdeu uma quantidade absurda de peso sem intervenção cirúrgica só pra conquistar a atenção de um cara. Impossível ter havido uma dieta balanceada e um programa de exercícios coerente. Apesar da personagem dizer que “agora não tenho mais problemas de coração”, dificilmente toda essa perda de peso de maneira tão abrupta não acarretaria em algum outro problema de saúde. Os próprios estudos (ainda inconclusivos, porém bastante importantes para a discussão do assunto) com os ex-participantes do programa The Biggest Loser corroboram com a ideia de que dietas drásticas não somente alteram metabolismos, índices hormonais e fatores genéticos, como dificultam a manutenção da perda de peso.

Mônica um ano depois, exibindo sua nova forma física para Chandler.
  1. O “eu magro” tiranizando o “eu gordo”
Mônica num encontro com Chip Matthews, antigo crush do colegial.

Agora Mônica já é adulta e independente. Mas ao encontrar um colega de ensino médio (Chip, que na época era popular e namorava sua melhor amiga magra), Mônica fica tentada com um pedido do rapaz pra saírem num encontro romântico. Ao pedir permissão pra amiga Rachel, Mônica justifica-se dizendo que “Eu devo isso [ter um encontro com esse homem] à Mônica gorda. Eu nunca deixo ela comer”. Se a sua vida passa a ser pautada pela guerra entre um “eu gordo” e um “eu magro”, saiba que isso não é uma ideia “natural”. Estudos argumentam que a associação da obesidade com uma “epidemia pós moderna” veio somente como uma tentativa de causar pânico, sem uma base patológica clara. Da “epidemia” vieram os termos“guerra contra a obesidade”, como se a gordura fosse um inimigo a combater. O indivíduo passa a empenhar uma luta consigo mesmo, uma luta pra perder peso, uma batalha com uma pessoa “diferente” que existe dentro dela mesma. “Pensar como gordo” é conter em si mesmo uma parte de personalidade “doente”, com uma fome psicológica, com um mundo diferente por causa da comida. E essa “pessoa” precisa ser combatida a todo custo. A identidade é grandemente afetada nesse processo. Agora a pessoa magra se aproxima da “pessoa normal”, “comum”, capaz de usar roupas “normais”, ser convidada pra sair pelo rapaz mais popular da escola, ser considerada bonita.

  1. A magreza é igual à obtenção de sucesso na vida

Em um episódio, Monica encontra um antigo amigo gordo do colegial que também emagreceu (interpretado por Brad Pitt), e ela pede que seu irmão ligue a todos que estudaram com eles no colegial pra informar como ambos estão magros. Em episódios com flashbacks, a atriz usa um fatsuit (e isso ainda merece texto próprio) pra retratar uma jovem gorda obcecada por comida, desajeitada, indesejável. Num episódio que imagina como seria sua vida caso ela não tivesse emagrecido, Mônica chega aos trinta anos de idade ainda virgem. O emagrecimento de Monica Geller é um troféu de sucesso. A personagem, na série, só se tornou sexualmente atraente, plenamente realizada e amada após seu emagrecimento. Ainda que tivesse várias neuras e inseguranças, seu personagem permanecia relevante porque ela era magra e bonita. E é muito comum o tratamento do emagrecimento como um troféu de sucesso na vida.

Em estudo com adolescentes que sofrem com distúrbios como anorexia e bulimia, argumentou-se que no discurso de vida saudável, a magreza se torna como um elemento fundamental para a obtenção da felicidade. Auto-identidade é formada no tecido social como dependente da beleza estética e da juventude, que transparecem através da magreza. Assim, saúde e estética se fundem, e desde a juventude a noção de identidade e pertencimento grupal perpassa pelo eixo condutor da magreza. Pesquisacom nutricionistas obesas discute que o Brasil é um dos países com maiores consumos de anorexígenos, ou seja, drogas para emagrecimento. Dietas milagrosas entram e saem de moda na mesma velocidade que uma nova edição de uma revista ou livro sobre “boa forma” é lançado no mercado. Essa estigmatização social da pessoa gorda afeta sua trajetória social, e discute-se que a perda da autoestima dela decorrente contribua para o desenvolvimento de comportamentos obsessivos (inclusive comer demais). Na série Friends, todas as neuras da personagem Mônica (como sua necessidade de controle ou manias de limpeza) ganham um ar cômico e são ignoradas na série porque, vejam só, ela já não é mais gorda.

  1. Mesmo magra, as inseguranças ficam.
Tradução: Eu tenho uma necessidade incontrolável de agradar todo mundo!

Ao descobrir que Chandler terminou com uma namorada na adolescência porque a garota havia engordado, Mônica volta a se questionar se o amor do seu marido persistiria caso ela voltasse a engordar. A magreza é um troféu de sucesso, mas não é um título permanente. A qualquer deslize, o corpo gordo pode voltar a ser um incômodo. Quando se trata a gordura como um problema, costuma-se acreditar que ao emagrecer todo o problema é resolvido, o que muitas vezes não acontece na prática. Há pesquisas que descrevem o surgimento de quadros psiquiátricos após o processo de emagrecimento dos indivíduos. Há aumento nos quadros de estresse, nos sintomas depressivos e alterações emocionais, mesmo sendo observado o aumento da autoestima.

Muitos pacientes que passaram por experiências de grande emagrecimento revelam se sentir próximos da “normalidade”, mas nunca realmente normais. Suas identidades não são mais de sujeitos gordos, mas também não chegam a ser de sujeitos magros, e em pessoas que tiveram infâncias e adolescências gordas ainda há maiores dificuldades de adaptação e auto-identificação, o que aumenta os níveis de ansiedade. Se Mônica passa a ter sua beleza elogiada e se sente sexualmente atraente quando se vê magra, como ficaria essa autopercepção caso o corpo voltasse a ser gordo?

Em pesquisa com mulheres que optaram por passar por cirurgias bariátricas como forma de emagrecerem, notou-se que os principais motivos que levavam à opção por essas cirurgias não eram o de “saúde”, como convenciona-se pensar, mas pelo prejuízo social sofrido por não terem o corpo que é valorizado socialmente como belo e atraente. Se reinserir no mercado de trabalho e alcançar status/inclusão social estão no mesmo patamar ou até num patamar além dos benefícios pra saúde pra essas mulheres na hora de optar pela cirurgia. Se alguém prefere se arriscar numa mesa de cirurgia (ou, como a Mônica, passar por dietas e exercícios malucos com resultados a curto prazo) pra ter um corpo magro, é óbvio que não é de saúde que estamos falando. E o corpo gordo com suas inseguranças e rejeição sempre será um fantasma que ronda.

Mas então, como não ser Mônica?

Eu preciso ressaltar novamente que esse texto não é um incentivo a você emagrecer ou engordar, é uma problematização dos motivos que te levam a fazer isso. Não embarque no discurso de que a gordura é uma vilã a ser combatida e que você deve se posicionar sempre em posição de guerra contra a balança, porque a gordura vai te trazer algum problema em algum momento da vida. Lembre-se: seu corpo não é errado, seja lá qual for a forma dele. Você não é automaticamente doente por ser gordo, nem vai ser automaticamente saudável por ser magro. Emagrecimento não é garantia de felicidade, assim como engordar não é um destino trágico e cruel.

Nossa sociedade é gordofóbica, o que significa que a pessoa gorda vai ser 1.Rejeitada por ser gorda e 2. Culpabilizada por ser gorda. Alguém não querer te namorar por você ser gordo — ou terminar com você porque você engordou — não é uma prova de que você deve emagrecer, só é uma prova de que a pessoa é uma babaca. Vai ser mais fácil encontrar roupa, provavelmente mais pessoas vão te achar atraente (a sociedade como um todo é bombardeada desde cedo com a relação magreza/beleza) e provavelmente vai ser mais fácil arranjar emprego se você for magro, mas magreza não é um passe mágico pra uma terra de pertencimento e felicidade. Manter-se magro pode ser uma pressão tão aterrorizante quanto tornar-se magro quando a magreza é colocada como único meio possível de vida.

Ok, eu emagreci, e agora? Primeiro, se você emagreceu tendo consciência do sistema gordofóbico em que a sociedade está erguida, você vai ter o bom senso de ver que as montagens de “antes e depois” são uma forma de 1. perpetuar o processo de exclusão de pessoas gordas, rotulando-as como incapazes e preguiçosas 2. aumentar a pressão sobre você mesmo, já que a gordura é um monstro que deve ser evitado a qualquer custo de voltar a te atormentar. Antes de logar no seu Instagram e fotografar você dentro daquela calça jeans larga e antiga junto com os dizeres #foco #força #fé e #batatadoce, pense como essa “meritocracia da magreza” (eu consegui porque tenho força de vontade) não pode se voltar contra você mesmo. Numa sociedade baseada na juventude eterna e em corpos com baixíssimo percentuais de gordura, vai chegar uma hora que nem todo o seu esforço vai ser suficiente pra alcançar esse padrão.

E pessoas, parem de elogiar quem emagreceu se vocês não vão falar que alguém ficou “mais bonito e elegante” quando essa pessoa aparecer mais gorda. Existem mil coisas que você pode elogiar numa pessoa sem ter que falar sobre o peso dela. Fora que é ofensivo até pra quem recebe o elogio, né? Parece que você tá admitindo que achava a pessoa feia e relaxada antes. Bom senso pode até não ter pra vender, mas também não gasta se você usar o que você já tem, viu?

E se você não tem o tal do corpo que veste 36, pare de achar que você não consegue ser feliz com um que veste, sei lá, 56. Não tenha vergonha de mostrar seu corpo como ele é, e de se permitir ser feliz com ele (depois que a gente entende o sistema social da gordofobia, fica mais fácil tanto ser feliz com o tamanho 56 quanto não ficar deslumbrado e obcecado com o tamanho 36).

Mas o maior conselho que eu posso te dar pra não se tornar uma Monica Geller é: se afaste de companhias tóxicas. Não encare como uma piada inocente quando seus ~~amigos~~ te colocam apelidos por ser gordo, quando te lembram a todo momento sobre como você era uma pior versão de si mesmo só por causa do seu corpo. Fuja de relacionamentos amorosos que estão baseados na forma como você se parece. Esqueça as expectativas da família, dos amigos, dos crushes, da sociedade. As únicas expectativas que você deve preencher são as suas.

Ah, e dance! Mesmo que achem ridículo. Nada mais intimidador pra quem vive preso do que uma pessoa que ousa ser livre.

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Marco Magoga
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é amante da Moda, casado com as Artes, em processo de divórcio com o senso comum.