Fat-shaming: você engordou e será punido por isso

Marco Magoga
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9 min readJan 23, 2018

Recentemente a divulgação de uma foto do ator Wentworth Miller, que ficou famoso pelo seu papel na série Prison Break, causou polêmica na internet. Não, não era uma nude. Na série, o ator interpretava um presidiário, e seu corpo sarado, cabeça raspada e seus olhos azuis logo elevaram Miller à categoria de galã em Hollywood. Só que na foto em questão o ator aparece mais gordo e com os cabelos cacheados mais compridos fazendo uma caminhada informal com um amigo.

Foi o suficiente pra Wentworth passar de galã para meme. Uma das montagens mais famosas feitas com a imagem do ator mostrava uma foto promocional da série Prison Break ao lado da foto dele caminhando, com os dizeres: “Quando você sai da prisão e descobre o monopólio do McDonalds”. A imagem, postada nas redes sociais do portal de notícias e mídia TheLadbible, conseguiu milhares de compartilhamentos e curtidas em poucas horas, até que o próprio ator usou suas redes sociais pra responder.

Print da imagem postada pelo site TheLadbible no Facebook fazendo piada com o ganho de peso do ator Wentworth Miller

Wentworth então postou em sua página pessoal um print da imagem seguida de um texto onde dizia que desde 2010 tinha se afastado um pouco da carreira artística por estar lidando com depressão e pensamentos suicidas. Com medo de compartilhar sua dor com outras pessoas, Miller encontrou conforto na comida e assim, ganhou peso. Ele afirmou que ao tomar conhecimento do meme, se sentiu ferido, mas que a foto representa que ele é um sobrevivente, e que a imagem abriu caminhos dentro dele para o perdão e cura de si mesmo e de outros. O ator ainda incentivou a pessoas que estejam sofrendo com a depressão que não se envergonhem e busquem ajuda.
O site TheLadbible pediu desculpas pela postagem, afirmando que depressão é um assunto sério e não deve ser motivo de piada. Mas o site não havia sido o único a divulgar a mudança corporal de Wentworth; O Daily Mail, importante veículo de notícias britânico, divulgou uma matéria onde se lia no título que o ator “nunca devia ter sido solto da cadeia com aquela pança”. Não bastasse o título, o corpo do texto chegou a dizer que o ator “substituiu a careca sexy, estômago chapado e maxilar definido por um cabelo desgrenhado, um rosto redondo e uma barriga saliente, mas não parecia se importar com isso”.
A Men‘s Health, a principal publicação sobre “saúde e estilo de vida masculino” (que ironicamente só traz homens sarados e de preferência brancos nas suas capas) se aproveitou da polêmica de Miller com os memes pra discutir — de maneira MUITO desonesta — se a prática do fat shaming seria realmente algo tão ruim assim, já que pode ser uma “ferramenta motivacional pra que as pessoas confrontem comportamentos destrutivos na área da saúde”. Da mesma forma, o Urban Dicionary, ferramenta colaborativa onde o significado de termos e expressões é construído coletivamente, traz como definição de fat-shaming o “comportamento que pessoas obesas que não querem assumir seus comportamentos apresentam pra fazer parecer que são discriminados como um grupo étnico. Se confrontados sobre seus hábitos de vida não-saudáveis, essas pessoas fingem que há um sistema construído socialmente que as oprime“.

Aham, realmente não existe um sistema social opressor. Olha a amplitude do conceito de beleza.

Mas bem, como poderíamos definir o fat-shaming? Há uma discussão — super válida — que muitos termos da militância vêm de definições em inglês e não apresentam tradução que os torne acessíveis a pessoas que não dominam a língua inglesa. Fat-shaming se encaixa nessa categoria, porque, de fato, não há um termo em português que traduza o conceito perfeitamente. Se fosse pra termos uma tradução literal, seria algo como “envergonhar o corpo gordo”. Fat-shaming vai além da ideia do “tirar sarro” ou fazer chacotas com a pessoa, porque pressupõe uma característica de culpabilização da pessoa.
Muito difícil? Vamos tentar dar alguns exemplos práticos, usando termos da “mesma família” do fat-shaming. No slut-shaming, se condena uma mulher por algum comportamento ou vestuário considerado “imoral”, usando algo que ela fez ou vestiu como medidor do seu caráter e credibilidade. Por exemplo, dizer que “A Claudia só usa essas roupas super curtas e depois fica reclamando que é assediada”; Cláudia foi julgada imoral por um estilo de roupa que usa, e teve sua credibilidade posta a prova por isso. Também há o body-shaming, onde uma ou mais características físicas de uma pessoa são destacadas de maneira negativa. Por exemplo, dizer que “A Patrícia tá malhando muito. Mulher muito musculosa perde a feminilidade”; Patrícia “perdeu” sua identidade feminina socialmente só porque não correspondeu a um ideal específico (e construído socialmente) de biotipo feminino.
Fat-shaming é a mesma coisa.

Quando se considera que Wentworth “não merece”mais ser considerado galã por causa do ganho de peso, quando se passa a considerar que o ator é desleixado por ter engordado alguns quilos, quando se considera automaticamente que ele era saudável na época em que tinha um abdômen trincado e agora ele é doente porque tem uma barriga saliente, isso é fat-shaming. E ao contrário do que pensa a Men’s Health, isso nunca vai ser incentivo pra ninguém “repensar seus hábitos”(supondo inclusive que só porque alguém é gordo tem hábitos de vida não saudáveis), porque só serve pra que a pessoa internalize a ideia de que ser gordo é ruim e feio.

Exemplo de Fat-shaming com a cantora Kelly Clarkson: a colunista Katie Hopkins escreve no seu Twitter: “Jesus, o que aconteceu com a Kelly Clarkson? Por acaso ela comeu todas as backing vocals dela? Ainda bem que minha televisão é wide-screen”.

Afinal, alguém iria se importar com a saúde do ator se ele estivesse deprimido porém com músculos definidos? Aliás, a depressão foi usada praticamente como uma “redenção midiática” pro aumento de peso do ator. Ah, ele tá gordo mas é porque tá deprimido. Se só tivesse engordado, sem qualquer outra condição associada, ninguém teria pedido desculpas pelo meme.
Ainda duvida que não é uma questão puramente estética? Vamos ver o exemplo de outro ator, então. Matthew Lewis, que interpretou o personagem Neville Longbottom em Harry Potter, foi notícia tempos atrás porque era uma criança com sobrepeso e fora dos padrões de beleza e se tornou um homem sarado e capaz “de atrair suspiros” dos fãs. E memes como esse surgiram. Alguém vai pedir desculpas ao Haley Joel Osment pela maldade do meme? Ah não, se não ele não tem “motivo” pra estar assim, a internet vai continuar rindo.

Meme criado comparando o ator norte americano Haley Joel Osment e o britânico Matthew Lewis. Um ganhou peso, outro ficou “sarado”, mas quem é o ideal de beleza padrão?

E isso nos leva a questão: TEMOS QUE DISCUTIR OS EFEITOS SOCIAIS NEGATIVOS DO FAT-SHAMING. Porque não é uma questão de “falta de senso de humor”, “a zoeira é sem limites”, ou “essa mania de politicamente correto”. A construção da imagem que temos de nós mesmos e de nosso corpo passa por aspectos perceptivos, afetivos, cognitivos e sociais. A grosso modo, o modo como eu me vejo é mais do que a maneira como eu me imagino, mas depende também de como a sociedade me vê. No caso de uma pessoa gorda, a representação de seu corpo vai ser construída a partir do que ela sente e vê misturada com as representações sociais que se tem de pessoas gordas. Então, mesmo que ela não consiga ver nada de errado com ela, ainda vai sofrer a influência de uma ideia construída socialmente de que pessoas gordas são feias, são desleixadas, são ruins.
Pesquisas feitas com JOVENS apontam que pessoas gordas e obesas tem dificuldade em expressar suas vivências corporais, mostrando indícios de inferioridade e preocupação com a beleza. Enquanto homens costumam querer corpos mais fortes e volumosos (mas com pouco percentual de gordura, importante ressaltar) do que possuem, mulheres almejam corpos mais magros e menos volumosos. Jovens entrevistados para a escrita desse artigo apontaram que o processo de perceberem-se gordos e obesos resultou em baixa auto-estima, fazendo com que se isolassem socialmente por perceberem o desprezo social que sofriam.
E essa idealização corporal é um terreno fértil para o desenvolvimento de distúrbios alimentares. Os tempos vão mudando cada vez mais, pois pesquisas indicam que tínhamos há vinte anos uma proporção de 20 mulheres para cada homem com anorexia nervosa, e hoje temos uma proporção de 10 mulheres para cada homem. Ao ler relatos de pessoas anoréxicas é MUITO COMUM (em homens, especialmente) encontrar pessoas que desenvolveram distúrbios como a anorexia e a bulimia após passarem por uma infância e adolescência com sobrepeso. A pressão social e o as chacotas sofridas por essas pessoas levaram-nas a acreditar que só seriam felizes e aceitas se fossem magras.

A lendária fala do filme Mean Gils (2004): Eu não te odeio porque você é gorda, você é gorda porque eu te odeio.

A maioria de pessoas entrevistadas em pesquisas acadêmicas como esta apontam como ideal o corpo magro e malhado, inclusive porque a mídia se esforça pra associar felicidade à padrões de beleza. E a questão não é necessariamente “ser saudável”, é questão de sentir-se aceito socialmente. E mais um meme pipocou na internet brasileira nesses dias: pessoas começaram a postar planos para engordar seus(uas) namorados(as), porque dessa forma “ninguém ia querer ficar com eles”. Mais um reforço de que a pessoa gorda não é digna de ser amada, disfarçada de ~~~~~~humor~~~~~~~.

Há na internet MUITOS blogs pró-anorexia e bulimia, defendendo medidas drásticas de perda de peso. A maioria desses blogs são comandados por adolescentes. Muitos desses adolescentes ressaltam como já foram rejeitados ou motivo de chacota por serem gordos um dia. E se você faz alguma forma de fat-shaming, VOCÊ ESTÁ CONTRIBUINDO PRA QUE ISSO ACONTEÇA.

Imagens retiradas de sites pró-anorexia. Na imagem em inglês, se lê: “pare de se recompensar com comida, você não é um cachorro”.

Se a militância gorda ainda não conseguiu atingir essas pessoas (muitas muito jovens), é porque antes delas chegarem até um texto sobre gordofobia, elas tiveram que ler muita piadinha gordofóbica compartilhada por quem acha que a “zoeira não tem limites”. Tiveram que ouvir muita coisa que pessoas falam sem nem se dar conta de como suas falas e atitudes atingem outras pessoas e afetam a construção de suas identidades.
Então, vamos partir pra questões práticas. Primeiro, atitudes práticas que pessoas magras podem tomar para acabar com o fat-shaming e suas consequências. Você pode evitar conversas como “você viu como a pessoa x engordou?”. Ou parar com aquela piadinha “espero que meu ex fique gordo e careca”. Ou parar de sugerir dietas e programas pra pessoas gordas que não pediram sua sugestão. Ou de sugerir o que pessoas gordas podem ou não vestir (já passou pela sua cabeça que nem todo mundo quer “disfarçar a barriga”?). Pare de parabenizar uma pessoa porque ela emagreceu, elogiando sua força de vontade e ressaltando como ela está mais bonita. Pare de dizer como pessoas gordas são “bonitas de rosto”.
Pode também parar de dizer que é bom ser gordo porque “homem gosta de ter onde pegar” (o corpo de ninguém existe só para o prazer e gosto pessoal do outro). Ou então fazer uma listinha de motivos de “porque é bom namorar uma pessoa gorda” (novamente, a nossa existência não precisa ser validada por outra pessoa pra ser boa). Não importa se suas intenções são boas, o que importa é o que você está causando pra pessoas que estão ouvindo o que você diz, então PARE.

E pra você, pessoa gorda, que tem sofrido ou sofreu os efeitos do fat-shaming, a forma de seu corpo não tem nada a ver com sua força de vontade ou com seu caráter. Fuja de relacionamentos tóxicos, fuja de pessoas vão te fazer sentir mal com você mesmo. Se afaste de quem vai te fazer sentir culpado por coisas que elas não tem absolutamente nada a ver. Saia de perto de quem coloca imposições pra te amar e te aceitar. Se aproxime de pessoas que entendem o que você sente, ou se não entendem, pelo menos se esforçam e estão abertas pra isso. Não desvie o olhar do espelho, não encare como verdadeiras as piadinhas sobre seu peso e aparência, não importa de onde ou de quem elas venham. Compartilhar meme fazendo gracinha com ator que engordou ou exaltando ator que emagreceu é um tijolinho colocado no muro do fat-shaming. E esse muro é o que separa pessoas gordas de uma existência plena. Pelo fim do fat-shaming, mesmo que seja em forma de “zoeira sem limites”.

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Marco Magoga
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é amante da Moda, casado com as Artes, em processo de divórcio com o senso comum.