Militância gorda e a “Síndrome das Meninas Malvadas”

Marco Magoga
ograndeclose
Published in
9 min readJan 23, 2018

O Grande Close está de volta, tentando debater questões da militância gorda de maneira plural e didática. E o assunto escolhido para este retorno triunfal é: auto estima e suas relações com a militância gorda. O movimento body positive tem tomado de assalto várias discussões sobre militância gorda atualmente, daí a necessidade de falarmos mais sobre esse assunto.

Desde os anos 1960, com as reflexões da segunda onda do feminismo nos Estados Unidos sobre o papel político dos corpos, especialmente de corpos não-magros, começou-se um ensaio do que seria o movimento body positive décadas mais tarde. Os anos 1990 podem ser considerados um marco para o movimento, especialmente após a mobilização das escritoras e terapeutas Connie Sobczak e Elizabeth Scott, que acabaram por criar uma organização que visa “ensinar as pessoas a se reconectarem com sua sabedoria corporal interna para assim viverem uma vida mais balanceada, com auto-cuidado e um relacionamento consigo mesmas guiado pelo amor, perdão e humor” (tradução livre dos objetivos da Organização The Body Positive, retirada diretamente do site do projeto).

O body positive encoraja as pessoas a adotarem atitudes afirmativas sobre seus corpos, construindo a auto-estima através de uma auto-imagem positiva. Com isso, acredita-se que as pessoas mudarão a percepção de seus corpos, diminuindo assim a incidência de transtornos alimentares, depressão, ansiedade e outros problemas que podem estar associados a uma auto-imagem deficiente.

Com o passar dos anos, o body positive foi absorvido pela mídia mainstream (tão absorvido que há quem diga que perdeu o significado), com ensaios fotográficos com menos retoques ou usando modelos não tão magras, uso de hashtags com mensagens positivas e o conceito de que todos os corpos são bons da maneira como são. Isso se espalhou ainda mais e hoje vemos uma série de Youtubers fazendo tour pelo seu corpo e falando exaustivamente sobre o tema. Mas afinal, o que bodypositive tem a ver com militância gorda?

Lizzie Miller (dir.) em ensaio para a Revista Glamour (2009) e Ashley Graham na capa da swinsuit edition da Sports Illustrated (2016).

Eu já adianto que acredito que body positive e militância gorda são movimentos distintos, e que auto-estima não é pauta específica da militância gorda.

Apesar de reconhecer que muitas pessoas se aprofundaram mais no autoconhecimento de seus corpos através do body positive, o movimento em si fez muito pouca coisa pelas pessoas gordas (especialmente gordas maiores), e não o fez justamente porque é um movimento centrado na imagem e em sentimentos pessoais de validação, e não necessariamente uma pauta política que contenha as necessidades específicas de pessoas gordas.

Pra tentar ser didático na explicação dos motivos, vou recorrer a uma referência da cultura pop: o filme Meninas Malvadas (Mean Girls, 2004, dirigido por Mark Waters). O que tem acontecido na militância gorda atualmente eu carinhosamente apelidei de “síndrome das meninas malvadas”.

EDIT: eu estou usando o exemplo do filme MENINAS malvadas porque acredito que é um filme comercial e conhecido por muita gente, não porque estou me referindo só a comportamentos de militantes gordas MULHERES, ok? Pelo que vocês lerão a seguir, verão que tem muito militante homem sendo igualmente uma menina malvada. O texto vale para ambos os sexos.

  1. Auto-estima, oh que amiga
Regina George: “Eu realmente quero perder 3 pounds (1,5 kg)”

Nosso corpo não é só um organismo fisiológico, ele existe por meio de sensações, sentimentos, emoções, crenças, história… É o nosso meio de comunicação com o universo. Já a imagem corporal é a imagem que temos sobre o tamanho, estrutura, forma e contorno do corpo. Nem sempre a imagem corporal corresponde à realidade, e a satisfação ou insatisfação corporal depende de diversos fatores. A insatisfação com o corpo pode evoluir para o desenvolvimento de transtornos alimentares, depressão, ansiedade, recorrência a cirurgias plásticas e diminuição da qualidade de vida.

Esse estudo mostrou que a insatisfação corporal entre jovens varia entre 5% a 87%, sendo presente em todo o mundo, e no geral a insatisfação está relacionada a escala de silhuetas (ou seja, insatisfação com o tamanho e forma corporal). Estudos apontam que cerca de 25% da população jovem apresenta comportamentos de risco para transtornos alimentares com o propósito de atenuar o peso corporal, e que esse esse tipo de comportamento negativo é mais comum entre mulheres. Também apontou-se que a busca por maior muscularização em jovens especialmente do sexo masculino pode estar relacionada a baixa auto-estima e a condutas de risco para transtornos alimentares.

Regina George (Rachel McAdams), a vilã-que-todos-amam-odiar do filme Meninas Malvadas também mostrava insatisfação corporal e sempre queria perder alguns quilos mesmo sendo magra, recorrendo inclusive a dietas malucas como ingestão de apenas suco de cranberry. Regina George é um bom exemplo para o que se pretende dizer nesse texto: problemas de auto-estima não são característica apenas de pessoas gordas. Tampouco todas as pessoas gordas terão necessariamente problemas de auto-estima e imagem corporal negativa.

Evidente que a ação de uma sociedade gordofóbica que classifica o corpo gordo como doente, sem valor e feio pode fazer com que pessoas gordas desenvolvam um conceito ruim sobre seus corpos, mas lutar apenas contra isso e tornar isso uma pauta central da militância não é eficaz porque:

1. Personaliza problemas e cria a noção de que ser gordo é apenas um sentimento;

2. Dá margem para qualquer pessoa que tenha uma imagem corporal distorcida (tipo a Regina George que JURA que precisa perder peso) se aproprie da discussão gorda e invisibilize questões como falta de acesso e direitos humanos básicos que pessoas realmente gordas enfrentam todos os dias;

3. Além disso, dá a impressão de que apenas melhorar a auto-estima de uma pessoa gorda vá amenizar o impacto da gordofobia na vida dela. Por mais que uma auto-estima positiva possa ser um fator positivo a nível pessoal, não funciona a nível de pauta coletiva justamente porque… é individual e cada um vai se desenvolver segundo suas próprias estratégias internas. E mesmo que a pessoa gorda se ache a pessoa mais linda do mundo, ainda vai entalar na catraca e não ter atendimento médico adequado. E ainda vai ser considerada doente.

2. Eu amo me odiar?

“Aparentemente há muitas coisas que podem estar erradas com seu corpo”

Em uma das cenas do filme, as plásticas (grupo formado pelas meninas populares da escola, todas magras e consideradas bonitas segundo o padrão ocidental atual de beleza) se reúnem em frente a um espelho e começam a falar coisas ruins sobre si mesmas. O diálogo é o seguinte (tradução livre):

- Caramba! Meus quadris estão enormes!

- Sai dessa, a barriga da minha perna é pior.

- Pelo menos vocês podem decote nadador. Eu tenho ombro de homem.

- O delineamento dos meus cabelos é tão esquisito.

- Meus poros são enormes.

- Os cantinhos da minha unha são uma porcaria.

Personagem-narrador: Eu achava que só tinha gorda e magra. Mas parece que pode haver várias coisas erradas com o corpo.

É uma cena de humor, mas que pode ser um paralelo para o que tem acontecido na militância gorda. A cada dia cresce o número de vídeos com tour pelo corpo (tipo de vídeo onde o youtuber fica geralmente de roupa íntima e mostra em detalhes seu corpo, com a ideia de filmar “corpos reais”, sem intervenção de luzes e photoshop). Eu questiono a validade desse tipo de vídeo, mas minha opinião aqui não importa muito.

A questão é que tem crescido cada vez mais nesses vídeos um discurso do tipo “partes que eu odeio em mim”. E é uma coisa exatamente igual à cena das plásticas procurando defeitos na frente do espelho. É no mínimo contraproducente um vídeo que teoricamente serve para “empoderar as pessoas a respeito dos seus corpos” tenha uma quantidade tão grande auto-ódio. Simplesmente não faz sentido nem se a gente considerasse body positive como parte da militância gorda.

3. Minha gordura, meu defeito

“Chamar alguém de gordo não vai te tornar mais magro. Chamar alguém de estúpido não vai te tornar mais esperto”

Uma das ações da personagem principal do filme, Cady Heron (Lindsay Lohan) foi fazer sua inimiga engordar, como forma de prejudicar sua fama e reputação popular. O discurso final da personagem principal do filme quando descobre que falar mal de características físicas das pessoas não é legal também se parece muito com discursos militantes presentes por aí. Segue a fala:

Chamar alguém de gordo não te deixa mais magro.

Chamar alguém de burro, não te torna mais inteligente.

E arruinar a vida de Regina George não me tornou mais feliz.

Tudo que podemos fazer na vida, é resolver o problema na nossa frente.

Fofo, né? Não.

Por mais que pareça uma mensagem positiva, ainda tem um problema muito grave nas entrelinhas: considerar o corpo gordo como um problema a ser resolvido ou como defeito. E pasmem, tem muito militante gordo exatamente com esse discurso. A onda de body positive trouxe consigo um termo muito problemático: o de aceitação. Ah, você é gordo MAS precisa ACEITAR o seu corpo. Ele é lindo.

Eu não preciso aceitar o que eu não considero um problema nem um defeito. E é aí que os discursos são postos a prova, porque é contraproducente lutar pela despatologização do corpo gordo (no sentido de que ele seja automaticamente associado com doença) e pelo fim da culpabilização da pessoa gorda (você é gordo por culpa sua e se algum direito básico é negado por conta disso, é sua responsabilidade emagrecer) se você ainda considera que seu corpo é um defeito que precisa ser ACEITO.

Ninguém precisa se achar lindo pra ser militante. Ninguém precisa sequer se achar lindo porque isso é só um marcador social, não um valor de identidade. Mas se você acha que seu corpo gordo é ruim e por isso precisa ser ACEITO, só está fazendo a engrenagem da gordofobia girar mesmo com uma ideia maquiada (igual o discurso da Cady no filme).

Conclusões: não seja uma plástica

“Por que você está tão obcecada por mim?”

Apesar do texto tratar de ações e discursos que tem acontecido cotidianamente na militância gorda, eu não coloquei citei nenhum exemplo específico no texto justamente pra não personalizar uma questão que é coletiva. A opção por fazer um paralelo com um filme adolescente da sessão da tarde é um esforço de não apontar dedos pra pessoas, mas questionar ideias e posicionamentos que podem ser até um entrave para a militância gorda como um todo.

Todo mundo é livre pra buscar reforçar sua autoestima e construir uma imagem corporal positiva, mas esse não pode e não deve ser papel da militância gorda. Porque desvia o foco, torna ajuntamentos coletivos em grandes grupos de apoio e terapia, pessoas gordas passam a se sentir pressionadas por não se ACEITAREM e se amarem como é apregoado, e boa parte da força coletiva que podemos ter como grupo na luta por direitos e dignidade fica restrita a um concurso de auto estima.

Tem crescido o número de pessoas gordas falando sobre auto estima e chorando as mazelas do corpo gordo como um grande sofrimento a ser ultrapassado, e com isso quem nos lê e nos assiste passa a pensar que pessoas gordas só querem ser consideradas bonitas pela sociedade, quando o que a gente quer é simplesmente não perder nenhum direito básico em virtude do formato dos nossos corpos. E marcas se apropriam das nossas imagens pra fazerem anúncios de empoderamento que só visam vender mais produtos pra gente se sentir melhor com a gente mesmo. E inclusão de verdade não se faz através do consumo, porque consumo foi feito pra ser excludente.

Que a gente consiga superar as mazelas adolescentes e a “fase das plásticas” que a militância gorda tem enfrentado, e perceba que independente das nossas opiniões pessoais a nosso respeito, o que nos une é o desejo do corpo gordo normalizado e respeitado. Há coisas que a gente resolve na terapia, e pautas políticas não são uma delas.

“Amo vocês. Tchau.”

--

--

Marco Magoga
ograndeclose

é amante da Moda, casado com as Artes, em processo de divórcio com o senso comum.