Não curto gordos. Questão de gosto, sabe?

Marco Magoga
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6 min readJan 23, 2018

Não curto gordos. Nem afeminados. Nem velhos. E estão todos sujeitos a uma revisão de genital antes de interações mais profundas.

Ideias absurdas, mas infelizmente frases comuns em aplicativo de relacionamento/pegação ou na atitude de muitos homens gays. Um artigo publicado no começo desse ano pelos pesquisadores Olivia Foster-Gimbele Renee Engeln em um periódico da American Psychological Association(o conteúdo é pago e está disponível aqui), pesquisou o comportamento de homens gays e heterossexuais em dois diferentes estudos com relação a “experiências de viés anti-gordura” (mais ou menos o que a gente chama de gordofobia por aqui). No primeiro estudo, 215 homens gays com idades de 18 a 78 anos receberam questionários onde deveriam relatar suas possíveis experiências com gordofobia em aplicativos de relacionamento ou em interações da vida real. Um terço dos participantes (muitos deles sequer apresentavam sobrepeso) relataram ter sofrido situações de gordofobia na comunidade gay, especialmente ao serem rejeitados como parceiros românticos em virtude do peso ou da imagem corporal.

Tradução: “Eu não malho há dois dias, estou gordo”.

O segundo estudo comparou expectativas de universitários gays e héteros em relação a relacionamentos com pessoas gordas apresentando uma situação hipotética: uma pessoa gorda paquerando uma pessoa cujo corpo é considerado padrão de beleza numa situação social comum, como uma balada, e perguntando aos participantes qual sua reação perante essa situação. Os homens gays responderam, em porcentagens maiores do que os homens heterossexuais, que a pessoa gorda deveria ser ignorada, tratada de maneira rude ou até sofrer algum tipo de gozação caso se aproximasse de alguém considerado “atraente”. O estudo concluiu que não só os homens gays estão mais propensos a sofrer com a gordofobia, como também esperam que outras pessoas ajam dessa maneira com pessoas gordas, especialmente em abordagens românticas/sexuais.

Tradução: “Agora estou gordo, e nunca vou encontrar o amor”.

Questionar a fantasiosa ideia de que o meio gay é unido, politizado e sem preconceitos é como mexer num vespeiro… “Ah, mas isso é questão de gosto” é a resposta mais comum que se recebe quando se questiona porque pessoas gordas são tão preteridas, especialmente para relacionamentos afetivos. Há quem seja filosoficamente desonesto, mas tem muita gente que realmente acha que a formação de gostos e preferências se dá sob um ambiente de “neutralidade”. Se você é uma dessas pessoas, te digo que não é bem assim. Há uma trama social complexa que age sobre nossas subjetividades desde muito cedo e que ajuda a moldar nossos gostos e preferências. Diversos teóricos já se propuseram a pensar de que maneira isso se dá. Foucault falou de biopoder, Freud e a psicanálise analisam a formação social do conceito de ‘estranho‘ ou ‘anormal‘ (quem quiser se aprofundar nesse sentido, fica a dica de um texto super didático que aborda essas questões).

Tradução: “Nós falamos sobre homens, ficamos obcecados com nossos corpos e tiramos sarro das pessoas” [falando sobre os gays].

Mas nem precisamos ir tão longe. Que tal uma breve viagem aos personagens de filmes e séries que tanto amamos ver e nos entreter? Uma pesquisa feita através pelo voto popular pela LogoTV em 2013 contabilizou mais de trinta mil votos para que se escolhesse o personagem gay mais icônico de todos os tempos da televisão. O resultado é, no mínimo, curioso. Dos cinquenta personagens escolhidos PELO PÚBLICO, apenas sete deles não eram brancos, apenas um tinha acima de quarenta anos e apenas um (Cameron Tucker, da série Modern Family, interpretado por Eric Stonestreet e que ficou em 38º lugar na votação) era gordo. Os personagens que conseguiram o primeiro e segundo lugar foram o casal da série Glee Kurt Hummel (interpretado por Chris Colfer) e Blaine Anderson (interpretado por Darren Criss). Um casal jovem, branco, magro, com bom poder aquisitivo e excelente senso de moda.

O casal gay escolhido como mais icônico pelo público: da série Glee, Blaine Anderson (interpretado por Darren Criss) e Kurt Hummel (interpretado por Chris Colfer). Ao lado, o único gordo da lista, Cameron Tucker, da série Modern Family (interpretado por Eric Stonestreet).

Ao escrever esse texto, lembrei de dois episódios da icônica série Will and Grace, que falava sobre o mundo gay abertamente e de maneira cômica na TV no começo dos anos 2000, quando a internet ainda não era nossa principal ferramenta de conhecimento e formação. Nos episódios 13 e 14 da quinta temporada, Will e Jack (os personagens masculinos principais da série interpretados por Eric McCormack e Sean Hayes: gays, brancos, inteligentes, viciados em academia e com forte senso de moda) ajudam Barry (Dan Futterman), um rapaz de acabou de se assumir homossexual a se adaptar à realidade do mundo gay. A transformação envolveu aulas de cultura pop e uma mudança no visual. Ao questionar se aquilo tudo não era muito superficial, Barry pergunta se o mundo gay é apenas sobre ter um rosto bonito e um corpo escultural. Jack responde que não, é apenas sobre corpo mesmo, já que o rosto dá pra cobrir com um capuz de couro.

Piadas a parte, essa é exatamente a premissa de programas como Queer Eye for the Straight Guy (que traz um time de homens gays cultos, bonitos e com gosto refinado ajudando homens hétero a serem “versões melhoradas” deles mesmos), ou a intenção de personagens como o casal gay do filme American Beauty (1999), interpretados por Sam Robards e Scott Bakula: homens — geralmente brancos — com corpos torneados e bem sucedidos em seus empregos que servem como um exemplo a ser seguido por homens gays ou héteros. Sempre estão disponíveis e terão um bom conselho sobre gastronomia, moda, exercícios, jardinagem ou decoração.

Jack e Will ajudam Barry a se tornar aceitável para o meio gay (Will and Grace, S05Ep13e14). Ao centro, componentes do programa Queer Eye for the Straight Guy e abaixo, figura de casal gay do filme American Beauty (1999, dirigido por Sam Mendes).

Nada disso é por acaso. Nenhuma dessas imagens é construída de maneira “neutra”. Qual o propósito de sedimentar em nossas mentes que homens gays são bonitos, preocupados com o corpo, com forte senso de moda e ultra-antenados à novidades da cultura pop? Poderíamos argumentar que séculos de preconceito e segregação criaram na comunidade gay uma necessidade de “mostrar-se valoroso socialmente”. O gay, então, se torna um “super homem” pra poder reafirmar seu valor entre a comunidade que não o considera homem suficiente. Mas a questão é ainda mais complexa. Numa sociedade capitalista que se pauta pelo consumo, pouco importa com quem você se relaciona, desde que você continue consumindo o que estão tentando te vender.

Há tempos foi descoberto o poder do pink money, ou seja, o grande poder de consumo do indivíduo gay. É interessante, portanto, que se mantenha a imagem do homem gay como fútil, consumista e ultra preocupado com a aparência. Isso movimenta bilhões na indústria de cosméticos, na moda, na indústria fitness… Até a desculpa de que “gays gastam mais porque não tem filhos” (quem disse?), serve como maneira de manter homens gays gastando dinheiro em áreas que dificilmente o homem-hétero-comum-pai-de-família estaria disposto a gastar.

Tradução: “Sou magro como hétero, mas sou gordo como gay”.

Todo mundo tem direito a ser como bem entende, gastar seu dinheiro no que bem entende, e se relacionar como bem entende. Mas é importante ao menos que cada um se dê conta da falácia que é justificar os “não curto gordos” escritos em bios de aplicativos de relacionamento ou aquele cara gordo que você se recusa a ficar na balada — por mais legal que esse cara seja — com argumentos como “é questão de gosto” ou “simplesmente não me atrai“. Não é questão de gosto, é apenas parte de uma situação social complexa que você pode ESCOLHER manter ou mudar. A militância gorda vai continuar lutando pelo empoderamento de cada um e pelo entendimento de que a gordofobia é um sistema de opressão. E aos rapazes de abdômens trincados e peitos torneados que lutam contra o preconceito mas que rejeitam relacionar-se com pessoas “fora do padrão”, o único conselho é: viado, melhore!

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Marco Magoga
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é amante da Moda, casado com as Artes, em processo de divórcio com o senso comum.