O que é Gordofobia e quem são os Desajustados

Marco Magoga
ograndeclose
Published in
9 min readJan 23, 2018

Fúsi (Virgin Mountain em inglês, ou Desajustados em português) é um filme islandês dirigido por Dagur Kári lançado em 2015, e que estreou no Brasil no dia 24 de março de 2016, estando em cartaz em cinemas do circuito mais… alternativo. O filme conta a história de Fúsi (Gunnar Jónsson), um homem adulto gordo “obeso”, que vive uma vida pacata e que divide o dia entre o trabalho como carregador de babagens no aeroporto e as brincadeiras com maquetes da Segunda Guerra Mundial e carrinhos de controle remoto. Com mais de quarenta anos, Fúsi mora com a mãe, é virgem e sofre bullying dos colegas de trabalho, até que conhece Sjofn(Ilmur Kristjánsdóttir), uma florista desempregada que sofre de depressão aguda, e altera drasticamente sua rotina e existência.

Pôster oficial (Esquerda) e cenas do filme.

Laureado com diversos prêmios em diversos festivais mundo afora, o filme dividiu opiniões da crítica especializada: enquanto na França o personagem principal foi tachado de artificial e o roteiro de previsível, nos Estados Unidos achou-se que não havia complexidade e profundidade suficiente na película e no Brasil o filme foi elogiado por lidar bem com possíveis clichês do roteiro. Discordantes ou não, as críticas têm um ponto em comum: a grande maioria delas escolheu ignorar o fato de que o possível vórtice central de análise do filme é o entendimento de como a gordofobia age sobre pessoas gordas. E é por esse viés que vamos escolher escrever esse texto.

Acho importante ressaltar que se você é uma pessoa gorda e planeja assistir Desajustados, é bom estar preparado pra uma série de cenas que podem ser gatilhos emocionais. Sim, porque críticos de cinema podem achar o personagem irreal, mas garanto que toda pessoa gorda já passou por alguma situação parecida com as que viveu o protagonista do filme. Mas mesmo que provavelmente você não vá conseguir deixar de derrubar uma lágrima ou outra em alguns momentos (eu mesmo não consegui segurar), a película é uma boa oportunidade pra explicar àquele amigo magro quais os efeitos de uma vivência sob a opressão gordofóbica.

Mas afinal, o que é a tal da gordofobia?

Uma confusão: definir o que é gordofobia

Depois de um texto que foi super compartilhado nas últimas semanas, sobre um modelo masculino plus size que estaria supostamente QUEBRANDO PADRÕES da indústria da Moda, eu postei uma crítica no Twitter argumentando que: 1. O moço não é gordo. 2. O moço é branco, loiro e de olhos claros. Logo, não tem muito padrão de beleza sendo quebrado aí, não. E uma pessoa resolveu rebater minhas críticas, terminando sua argumentação com o tweet acima.

E essa crítica, do “ai vocês gordos vêem gordofobia em tudo” é muito recorrente, especialmente vinda de pessoas magras ou “ex-gordas“. E isso não se dá só por desonestidade intelectual, pelo fato de que a pessoa não admite que tem asco pelo corpo gordo, mas vem também de um entendimento errado (ou de uma falta de entendimento) sobre o que é, de fato, gordofobia.

A primeira ideia errada quando se fala sobre o assunto é que, de alguma forma, admitir a existência da gordofobia é não querer que as pessoas se exercitem, se alimentem de maneira balanceada ou emagreçam. E meus queridos, não é nadinha disso! Ninguém vai querer impor o corpo gordo como um “novo padrão de beleza”. Ninguém vai te obrigar a comer um balde de frango frito e um bolo de chocolate inteiro no meio da madrugada. Ninguém vai te obrigar a querer se relacionar romanticamente com pessoas gordas só porque você PRECISA fazer isso. Parece que nesse momento que vivemos no país onde há tanta polarização política, muitas pessoas tendem a achar que pessoas gordas militantes querem instaurar uma “Ditadura Gordista”, que vai obrigar toda pessoa a ser gorda. Apenas: não.

Não mesmo.

Gordofobia é a ideia de sentir repulsa a corpos gordos. Pessoas magras quando repudiam corpos gordos praticam gordofobia diretamente. Pessoas gordas que repudiam seus próprios corpos REPRODUZEM discurso gordofóbico. E quando se fala em repúdio ou aversão, não quer dizer apenas que a pessoa tem ódio do gordo, ou quer matar e exterminar todo gordo da face da Terra.

Mas quando você se apega a um estereótipo de que “todo gordo é doente“, de que “todo gordo é preguiçoso“, “gordura representa falta de motivação e esforço“, “todo gordo é incompetente, desajeitado” você está sim sendo gordofóbico. Quando você lança um olhar de reprovação (mesmo que sutil, porque a gente PERCEBE, viu?) pro prato de uma pessoa gorda, quando você diz uma pessoa gorda é “linda de rosto“, quando você marca aquele amigo naquele post de “”””humor”””” que mostra uma pessoa gorda com os dizeres “Fulano, tô com saudades” e até quando você nega que uma pessoa gorda seja gorda, argumentando que gordura é apenas um estado que pode e deve ser mudado, não uma condição válida de existência e identificação.

Aham, gordofobia.

Tradução: A sociedade transformou a gordura como um sinônimo de feiúra. Mas ser gordo só quer dizer ser gordo.

E porque pessoas gordas só REPRODUZEM gordofobia? Porque além de um discurso, a gordofobia causa também sofrimento a essas pessoas. E isso implica, em muitos casos, além do ódio a si mesmo e do seu corpo, em medidas extremas como dietas malucas, ingestão de remédios, distúrbios alimentares, depressão. Não importa se uma pessoa gorda ainda reproduz discurso de ódio, se já entendeu os mecanismos de opressão e está no caminho do empoderamento ou se já conseguiu amar a si mesma plenamente, uma coisa TODOS nós gordos temos em comum: TODOS nós sofremos em algum momento com a gordofobia. E por isso com pessoas gordas que reproduzem gordofobia a gente tem uma paciência extra em ser didático e acolhedor, porque a gente sabe o sofrimento que essa pessoa está vivendo também.

E há diferença entre pressão estética e gordofobia. Veja bem, por mais que haja uma pressão por um corpo padrão (por exemplo, um cara sarado e uma mulher que usa tamanho 34), não é todo corpo que foge a esse padrão que vá necessariamente sofrer gordofobia (por exemplo, um cara com um pouco de barriga e uma mulher que usa 44). Essas pessoas sofrem sim com pressão estética pra se conformarem ao padrão, mas gordofobia é sofrida por pessoas realmente gordas (que não encontram roupas, que não cabem nos assentos do ônibus ou entalam na catraca, que são de fato excluídas totalmente de diversas situações sociais somente em virtude de sua aparência física). Vamos lutar sim pelo fim dos padrões, mas vamos usar os termos com cautela pra não haver um desgaste e uma banalização da discussão.

Um exemplo: à esquerda, o modelo plus size Zach Miko. À direita, Gunnar Jónsson, protagonista do filme Fúsi. Quem sofre pressão estética e quem sofre gordofobia?

Os “ex-gordos” são um caso à parte (merecem ainda um texto próprio, mas vamos mencioná-los rapidamente aqui). Por experiência, muitas pessoas gordas que hoje em dia não são mais gordas reproduzem discurso gordofóbico EM LARGA ESCALA. E por quê? Porque se apegaram a ideia de que felicidade só é possível através da magreza, que gordura é sinônimo de doença, que beleza acompanha somente o corpo magro. Ah, mas eu não posso emagrecer? PODE. Ah mas eu me sinto melhor hoje, eu não posso falar e incentivar as pessoas a passarem pelo que passei? Se você tiver um pouco de empatia, NÃO.

Enquanto a sociedade considerar que “ah como você está mais magro!” é elogio, enquanto magreza for sinônimo de elegância, enquanto persistir a ideia de que “só é gordo quem quer”, dizer pra uma pessoa gorda sobre sua experiência de emagrecimento provavelmente só vai aumentar o mal-estar dela. E se você precisa disso pra se sentir melhor com você mesmo, só significa que você ainda não entendeu o que é e como age a gordofobia.

Mas gordofobia é mimimi militante ou é discurso teórico?

Assim como qualquer conceito político, muito do que é comumente tachado como “mimimi” não é “mimimi” com um pouco de estudo mais aprofundado e vontade de aprender. Gordofobia é um desses conceitos. Por estar muito ligado em contextos feministas, de esquerda e de militância de minorias, geralmente a discussão sobre gordofobia vem de pessoas e páginas atreladas a esses contextos. Eu por exemplo só fui saber o que era gordofobia enquanto conceito quando comecei a acompanhar páginas sobre feminismo.

Sendo assim, como muita gente é super resistente a discursos militantes, quando ouve sobre gordofobia já revira os olhos e diz que é “mimimi” (sim, porque as pessoas têm medo do que não conhecem). Mas na real não importa muito em quem você votou na última eleição pra falar sobre gordofobia, porque qualquer corpo gordo está sujeito a opressão, seja qual for a visão política da pessoa que está nesse corpo.

E como explicar sinteticamente um contexto histórico da gordofobia (já que esse é um tema que merece um texto próprio e mais detalhado também)? Bem, vamos focar só no mundo pós revolução industrial, pode ser? O avanço tecnológico da indústria, o fortalecimento do capitalismo e as novas demandas do mercado mudaram profundamente as relações humanas e de trabalho. Essas revoluções sociais operaram profundas mudanças no poder político e no saber.

Foi necessária uma nova geração de trabalhadores para as fábricas e indústrias. Trabalhadores que tenham sua capacidade física aumentada ao extremo, para que o tempo e o espaço seja usado de forma a potencializar os lucros dos donos de fábricas. Assim, toma força novos conceitos acadêmicos na área da saúde. Mais do que questionar o declínio da qualidade de vida de trabalhadores que passaram a ficar muitas e muitas horas trabalhando nas indústrias, é a gordura a escolhida como a vilã. Essa visão higienista sobre pessoas gordas é o início do estigma do “gordo preguiçoso“.

O corpo disciplinado (e magro) é um corpo capaz, hábil, pronto pra obediência. Como bem apontou o filósofo Michel Foucault, a fábrica, a escola e o hospital atuam em conjunto de forma a exercer o poder sobre os corpos, chamado de biopoder. O biopoder manipula os indíviduos tanto a nível individual como no âmbito coletivo. Os indivíduos são medicalizados e higienizados pela área da saúde, classificados como anormais ou incapazes pela assistência social e vigiados e punidos por diversos dispositivos da cidade. Cria-se uma sociedade de normalização, onde o normal é justamente… ser magro.

E não pense que é só o capitalismo que estigmatizou pessoas gordas. Ninguém é “inocente” nessa história. É muito comum até hoje pessoas de esquerda retratarem os capitalistas exploradores como pessoas gordas (muitas vezes como porcos). Essa associação de gordura com avareza e falta de caráter é uma das coisas que a esquerda ainda não parou o suficiente pra problematizar.

Exemplos de ilustrações de capitalistas como pessoas gordas ou “porcos”. Pra esquerda ser gordo também é mau.

Voltando ao filme, o título em português Desajustados é uma ótima interpretação da mensagem do filme. Além da mulher depressiva que é vista socialmente como “doente e incapaz”, o homem gordo é ridicularizado no espaço de trabalho SÓ por ser gordo (mesmo tendo um bom desempenho profissional), não tem acesso a uma vida romântica estável (e sofre chacotas por ser virgem, e aí além do ideal de corpo há o ideal de masculinidade) e é sistematicamente excluído do convívio social durante a sua vida, pra depois ser culpabilizado por não cumprir as expectativas sociais de homem adulto.

E é assim que funciona a gordofobia: impede o acesso da pessoa gorda ao que é considerado socialmente como “normal”, ao mesmo tempo em que culpabiliza essa mesma pessoa gorda por não atingir as expectativas sociais que se tem de uma pessoa adulta… “normal”.

E como combater a gordofobia?

Eu espero que esse texto tenha ajudado um pouco no entendimento do que é a gordofobia, tanto pra pessoas magras como pra pessoas gordas. O que a militância gorda deseja, de uma maneira geral, é apenas que todos tenham direitos e acessos iguais, independente do corpo de cada pessoa. Isso se dá no combate à normalização, que é um processo político antigo e que já se sedimentou como senso comum.

Não é o “normal” ser magro, assim como não é anormal ser gordo. Todos podem emagrecer, desde que não encarem isso como única possibilidade de felicidade e realização (assim como engordar não é sinônimo de fracasso). Todo corpo pode e deve ter acesso a mobiliário, vestuário e espaços adequados. Todos podem e devem ter direito a afirmarem-se como pessoas gordas sem ser discriminadas ou recriminadas moralmente por isso. Todos podem e devem ser o que são, sem precisar “compensar” nenhum comportamento por ser gordo ou ser magro.

Não somos desajustados por sermos gordos. O desajuste é a própria gordofobia.

Tradução: Eu sou bonita, então digo que sou bonita. Sou muitas coisas de uma vez só.

--

--

Marco Magoga
ograndeclose

é amante da Moda, casado com as Artes, em processo de divórcio com o senso comum.