Representatividade Gorda: minha gordura não é fracasso

Marco Magoga
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5 min readJan 23, 2018
Beth Ditto desfila para Marc Jacobs (Primavera-Verão/2016)

Precisamos conversar. Primeiramente, revelo que esse texto teve um gatilho ativador. O ponto de partida pra essa discussão foi a divulgação de uma pesquisa publicada pelo Journal of Public Policy & Marketing (está disponível aqui, caso o leitor esteja disposto a pagar alguns dólares pela edição do periódico), liderada pelos professores de Marketing estadunidenses Lily Lin e Brent McFerran. O estudo foi amplificado por alguns sites brasileiros e questiona se o uso de modelos plus size (tratando-as como “mulheres com corpos realistas”) era influenciador de maneira benéfica ou não para a adoção de um “estilo de vida saudável” às mulheres.

Os resultados apontaram (traduzindo livremente do inglês) que a sugestão de aceitação de corpos maiores resultam em maior consumo de comidas não-saudáveis e menor engajamento em um estilo de vida saudável por parte da população. Os autores ainda argumentaram que quanto mais corpos maiores forem considerados normais socialmente, menos os indivíduos tenderão a se engajar em “comportamento saudáveis”. Sendo assim, a conclusão dos pesquisadores é a de que o marketing que usa corpos gordos deve ser repensado pois implicaria em problemas de saúde pública.

Uma rápida pesquisa com os termos “modelo” e “gorda” no Twitter revela como corpos que fogem ao padrão de magreza são vistos.

Um dos testes da pesquisa consistia em mostrar lojas com manequins magros e lojas com manequins gordos para diferentes mulheres e pedir para que anotassem seu nível de concordância com a frase “eu acho obesidade ou sobrepeso algo normal“; mulheres que viam manequins maiores deram respostas mais positivas ao sobrepeso. Outro teste se deu oferecendo potes de chocolates com fotos de modelos plus size na frente, mas com diferentes escritos, tais como: “para mulheres normais“, “para mulheres plus size” e “para mulheres“; as mulheres que receberam os potes com rótulos “para mulheres normais” consumiram mais chocolate que as outras — o que os pesquisadores consideram como indício do tratamento de modelos plus size como corpos normais induz as pessoas a comerem mais comidas tidas como “não-saudáveis”.

Não vamos nem entrar no mérito do quanto uma pesquisa dessas é questionável eticamente falando ou quanto os testes formulados são de natureza duvidosa (porque são). Nem vamos fazer o paralelo de que se modelos gordas incentivam as pessoas a serem gordas, modelos excessivamente magras incentivariam da mesma forma distúrbios alimentares como a bulimia e a anorexia. A questão é muito mais profunda. O simples fato de um periódico acadêmico publicar um texto desses na área de marketing demonstra a visão midiática que se tem sobre os corpos gordos.

Não satisfeito com o exemplo anterior? Tente pesquisar os termos “gordo” e “nojo” no mesmo site Twitter, uma rede social onde a grande maioria dos usuários é jovem, e constate qual a representação social da pessoa gorda.

A mídia tem considerável papel na construção das nossas representações sobre nossos corpos. E geralmente a preocupação com a GORDURA de um corpo vem sob a capa de uma preocupação com a SAÚDE. O conhecimento acadêmico está longe de ser algo que existe à parte do sistema de poder vigente. Exemplos na história não faltam de como negros já foram considerados intelectualmente inferiores, ou como gays já foram considerados doentes mentais, além de outras atrocidades, todas pautadas num pressuposto conhecimento acadêmico. O acesso ao conhecimento, longe de ser universal, laico e gratuito, ainda serve às estruturas de dominação vigentes socialmente. E assim, é comum a mídia fazer uso de um discurso acadêmico e/ou médico para justificar a classificação de corpos aceitáveis ou não, de acordo com o tempo histórico em que vivemos.

Propaganda do emagrecedor Sanavita. Sensibilidade e delicadeza estavam em falta.

Mas nem sempre os gordos sofreram exílio social. Durante a época medieval até o período Renascentista, a gordura era um ideal burguês. Corpos roliços e dietas ricas em gordura eram sinal de riqueza, de abundância de recursos. Seios fartos, barrigas salientes, coxas roliças. Se houvesse uma “Vogue Idade Média”, mulheres gordas provavelmente seriam capa todo mês. A preocupação com a magreza é um ideal também burguês que surgiu após o período pós-guerra, já no século XX. Com roupas que exibiam mais o corpo e com a libertação dos corpetes e cintas, mulheres passaram a ser instruídas (especialmente por revistas voltadas ao mundo feminino) de que deveriam ser sedutoras praticando ginástica e aderindo a novas dietas.

O discurso médico, cada vez mais higienista, classificou como vilões o açúcar e as gorduras. Com a ajuda publicitária da mídia, ser gordo era cada vez mais sinal de desleixo. A magreza passou a ser sinônimo de sucesso, de felicidade, de pré-requisito para obter êxito no trabalho, no amor e para manter a saúde. A gordura é mais do que uma característica física, é um fracasso moral. O que foi outrora sinônimo de riqueza, agora é sinônimo de doença e feiura

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Ideais de beleza em diferentes eras: After the Bath — Renoir (1888) e Gisele Bundchen em editorial da Vogue Paris(Outubro/2015).

E quando conhecemos a História, vemos a importância do uso de corpos gordos de maneira positiva na mídia. Já falamos aqui sobre os perigos de basearmos nosso auto-conceito exclusivamente em campanhas publicitárias, mas não podemos negar a importância das pessoas gordas invadirem os espaços midiáticos e questionarem os padrões de corpos impostos. É aí que entra a questão da representatividade. Imagens de gordas e gordos felizes, donos de si, bem sucedidos em seus ramos de atividade, que fazem uso de sua sensualidade e não escondem aquilo que é considerado “falha”: suas dobras, celulites, estrias, sua gordura. Crianças e jovens são bombardeados com imagens corporais e modelos simbólicos o tempo todo, mas em quantos personagens eles podem de fato se identificar? Quantas imagens de gordos empoderados você está acostumado a ver na mídia tradicional?

Aos poucos a gente toma nosso lugar: Toccara Jones para Vogue Italia (Junho/2008), Ju Romano para Elle Brasil (Maio 2015), Fluvia Lacerda para revista Trip (Maio/2015).

Portanto, Lily, Brent, e qualquer outro que considere (através de discurso academicista ou só via senso comum mesmo) que gente gorda é uma ameaça à saúde pública, saibam que vai ter gordx estampando editorial, arrasando em passarela e sendo muito feliz enquanto modelo de inspiração, porque magreza não é sinônimo de saúde e tampouco gordura é sinônimo de doença (isso fingindo que vocês realmente se preocupam com nossa saúde). A única doença que deve ser evitada é a gordofobia, a exclusão social, a rejeição de quem não existe do jeito que a mídia considera bonito. Cada pessoa tem o DIREITO de ser feliz com seu corpo, e de se ver representada de maneira positiva na mídia. Se minha gordura te incomoda, minha voz vai te incomodar ainda mais.

Sai da frente que a gente tá passando.

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Marco Magoga
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é amante da Moda, casado com as Artes, em processo de divórcio com o senso comum.