Sobre crescer sendo gordo: eu, você e Kim Chi

Marco Magoga
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9 min readJan 23, 2018
Também te amamos, Kim! ❤

Obs: Esse texto teoricamente contém spoilers, mas fica tranquilo que não é nada que vá atrapalhar sua experiência com a série.

Recentemente estreou pela LogoTV mais uma temporada de um dos reality shows mais fabulosos (em todos os sentidos): RuPaul’s Drag Race. O show é estadunidense, mas arrebatou fãs pelo mundo todo, inclusive no Brasil. Drag queens são colocadas em desafios de costura, canto, atuação e passarela, e quem sobreviver até o final sem ser eliminada ganha o título de Drag Superstar.

Mais do que um reality show, o programa é uma plataforma para diversos assuntos relacionados à diversidade, e mostra também o lado humano de grandes performers, artistas da maquiagem e entretenimento, tornando as queens figuras relacionáveis com o espectador. Aqui no A Coisa Toda inclusive temos o podcast babadeiro sobre a série feito pelos meninos do The Library is Open. Num dos episódios que foi a ar recentemente, tivemos algumas cenas de uma conversa entre os artistas enquanto se montavam pra ir ao palco. E a fala de uma das participantes chamou a atenção do público e inspirou esse texto.

Integrantes da oitava temporada de RuPaul’s Drag Race

Enquanto se preparava pra viver na passarela do programa sua personagem drag Kim Chi, Sang-Young Shin, um sul-coreano de 27 anos residente em Chicago — Illinois, relatou às suas irmãs drag que na adolescência chegou a pesar 350 libras (cerca de 160 kg). O fato de ser gordo, somado às questões de ser um estrangeiro nos EUA e ter dificuldades com o idioma, levou Sang-Young a se sentir um outsider, e desenvolver muito pouco contato social e ter vergonha de frequentar coisas que gostava, como por exemplo, aulas de dança. O artista ainda contou como o fato de ser gordo o deixou introvertido, pois sentia na pele a exclusão das pessoas, e até hoje (mesmo tendo perdido muito peso), ainda tem dificuldades pra se sentir confiante em sua própria pele. Ele permanece virgem aos 27 anos, e espera que alguém um dia veja beleza nele. Kim Chi, sua personagem, se descreve como fusão entre uma modelo de alta costura e um personagem de Anime, que busca quebrar estereótipos de gênero e interpretar a cultura contemporânea transformando a si mesma num objeto de Arte.

À esquerda, Sang-Young Shin e Kim Chi “juntos”. À direita, o artista antes (acima) e depois (abaixo) de perder peso.

A revelação soou surpreendente (para as participantes do show e para os espectadores) justamente pelo fato de Kim Chi já ser uma artista muito conhecida pelo seu estilo visionário e fora da caixa, inclusive contando uma base de fãs e admiradores bem antes da sua participação no reality. Ninguém esperava que por trás de toda a vanguarda que Kim Chi sempre representou com maestria estivesse um artista com tantas inseguranças em relação à própria imagem. Mais do que isso, nos fez refletir como a personagem foi a maneira encontrada pelo artista de viver tudo o que ele próprio gostaria de ser durante toda sua vida. Mas Sang-Young Chin está muito longe de ser a exceção à regra, e nos desafia a pensar nas consequências emocionais de se colocar no mundo como uma criança e adolescente gordos.

Algumas montações de Kim Chi.

Pode-se argumentar que o problema da exclusão social de Sang-Young se deu mais por ser estrangeiro do que por ser necessariamente gordo. De fato, os EUA não são conhecidos exatamente por serem amigavéis com estrangeiros. Mas o que dizer então da pesquisa BRASILEIRA que mostrou um grande percentual de descontentamento corporal entre crianças e adolescentes em idade escolar, mesmo entre as crianças consideradas com “””””peso normal“”””” através de IMC (muitas aspas, porque a noção de peso ideal é altamente questionável)? Pode-se argumentar que o artista sul-coreano não buscou aulas de dança na adolescência mais por timidez pessoal do que por exclusão social. Mas como manter esse argumento se pesquisas já demonstraram como o meio da dança é extremamente crítico em relação à imagem corporal, levando bailarinas a buscarem perder peso mesmo já sendo muito magras? Um último argumento poderia ser levantado é o de que na verdade o que levou Sang-Young a se retrair foi sua criação dentro de valores rígidos da cultura oriental, e não o fato de ser gordo. De fato, valores culturais tradicionais nos moldam de maneiras diversas e subjetivas. Mas também há pesquisa com famílias brasileiras que apontam para vivências familiares complexas em famílias com crianças gordas e deformidades na auto-imagem e senso de pertencimento dessas crianças.

Não, Sang-Young “Kim Chi” Shin não se tornou um adulto com profundos problemas de auto-imagem e confiança por ser estrangeiro, vir de uma cultura oriental ou ser tímido. Ou pelo menos não foram só esses fatores que o levaram a ser quem é hoje. O nome do mal social que alterou tão drasticamente a auto-estima do artista foi a GORDOFOBIA. E assim como ele, há milhões de crianças e adolescentes gordos sendo massacrados em suas vivências diárias somente pela “transgressão” de serem pessoas gordas. Crianças e adolescentes gordos experimentam uma série de situações de vida que crianças e adolescentes magros nunca viverão. E essas vivências podem ser reinterpretadas na idade adulta e virarem empoderamento ou podem (como acontece em muitos casos) se tornar fardos que carregamos além do peso dos nossos corpos.

Não venha me atacar… porque eu vou te destruir (Kimzinha fazendo um trocadilho fofo ❤ )

Eu não gostaria de transformar esse texto numa sessão de terapia, mas vou fazer um breve relato pessoal pra que pessoas magras entendam melhor sobre o que estou falando (pessoas gordas não precisam de exemplos meus porque já vivem coisas semelhantes cotidianamente). Antes que eu mesmo tivesse a consciência de eu era uma criança gorda, o mundo ao meu redor se encarregou de me mostrar isso. Eu já fui colocado como “café-com-leite” (saca aquele participante da brincadeira que tá participando mas na real não está, porque as regras não valem pra ele? Café-com-leite é isso) em brincadeiras de pega-pega na pré escola. Um professor de educação física no ensino fundamental queria me obrigar a virar uma cambalhota (eu sempre fui alto, e muito pouco habilidoso em noções de flexibilidade e equilíbrio) e riu de mim porque eu não conseguia (hoje em dia não sei se era inabilidade física ou só medo de não conseguir mesmo). Sempre tinha alguém numa discussão com a cartada “ha-ha você é gordo“, e o pior, sempre funcionou como um argumento válido para os que assistiam. Meu pediatra (um dos mais conceituados da cidade onde moro, diga-se de passagem) me passava dietas super restritivas (e restritivas do tipo durante a manhã você deve comer uma fatia de pão diet e meio copo de leite desnatado. E só.) só pra “previnir que ser gordo não me trouxesse doenças futuras“. Isso pra uma criança de seis anos de idade.

Desde os 13 anos eu vou duas vezes ao ano ao cardiologista e me submeto a uma bateria de exames só pra ouvir que “está tudo ótimo, mas você precisa parar de ficar só jogando videogame sem fazer nada e perder peso!“. Eu nunca gostei de videogame. Eu sempre me exercitei. Mas se eu sou gordo é ok assumir que eu sou preguiçoso e sedentário. Na sexta série fizeram uma lista dos meninos mais bonitos da escola. Os gordos tinham uma classificação a parte, porque ninguém presumia que gordos podiam ser bonitos (olha Marco, você é o mais bonito ENTRE OS GORDOS! YEEEY!). Eu fui o “grande amigo“, o “super inteligente” da sala, o “engraçado“, o “sensível“. Mas ainda eram os meninos magros ou “sarados” que gozavam do prestígio social (mesmo que fossem rudes, machistas, tivessem um humor questionável e não soubessem construir um parágrafo coeso nem que suas vidas dependessem disso).

Cena do filme Little Miss Sunshine (2006, dirigido por Jonathan Dayton e Valerie Faris)

O nome acadêmico para esse sentimento vivido por muitos na atualidade (e por muitas pessoas gordas) é “descontentamento normativo“. E como se dá isso na prática? Pessoas gordas são empurradas a relacionamentos abusivos porque crescem aprendendo que não são dignas de serem amadas e desejadas por quem são. Pessoas gordas são levadas a acreditar que dietas restritivas e malucas, cargas de exercícios extenuantes e além dos limites do próprio corpo e a ingestão desenfreada de drogas e remédios pra emagrecer vão torná-las mais saudáveis e desejadas socialmente. Pessoas gordas crescem se privando de inúmeras atividades sociais porque se pegam imaginando que vão sofrer chacotas e exclusão.

Pessoas gordas não vivem seu pleno potencial artístico, emocional, físico e intelectual porque crescem aprendendo que gordura é sinal de limitação. Pessoas gordas crescem acreditando que um gordo perder peso é sinal de sucesso. E isso começa muito cedo. Na família, por quem deveria ajudar a criar senso de segurança e uma auto-imagem positiva. Na escola, por quem deveria formar e ajudar construir personalidades e intelectos sadios. Entre seus próprios pares, que deveriam ser criados numa cultura de aceitação, convivência e apreciação da diferença. Na sociedade do consumo, quando tem seu acesso impedido a roupas e itens “da moda” e quando não podem escolher o que desejam vestir ou quem desejam ser.

Eu acho que foram exemplos suficientes pra pessoas magras entenderem que crianças e adolescentes gordos passam por situações exclusivamente por serem gordos. Quem tiver um pouco de honestidaade intelectual e empatia vai repensar suas atitudes. O resto vai continuar dizendo que gordofobia é vitimismo e “mimimi“. Pra esses o único conselho possível é:

Beije a minha bunda gorda!

Agora um recado pra você, pessoa gorda. Especialmente se você for adolescente e ainda não tiver conseguido entender todo esse sistema de opressão (a militância me curou de muitas coisas, mas eu perdi anos preciosos que não gostaria que nenhum de vocês perdesse). Não é culpa sua, porque você não fez nada de errado. O simples fato de seu corpo gordo existir não faz nenhum mal ao mundo. Você não precisa “compensar” o fato de você ser gordo se esforçando além da conta pra ser o mais inteligente ou o mais engraçado. Tudo bem ser só você mesmo. Nunca deixe ninguém mensurar sua beleza com uma régua que não é sua. Você é lindx (e uma coisa: ninguém precisa ser lindo pra ser importante, porque a beleza no mundo moderno é só um lance que inventaram pra fazer a gente se sentir feio e gastar dinheiro com coisas que supostamente farão a gente ser melhor).

Ser gordo não te faz automaticamente ser doente, porque “maior disposição a desenvolver tal coisa” não é diagnóstico de doença. E saúde plena é aquela que traz qualidade de vida (viver de dietas super restritivas e com rotina de exercícios inadequadas também fazem tanto mal quanto uma dieta rica em gorduras e pobre em nutrientes. Ser magro mas viver em sofrimento com o próprio corpo e com a própria imagem não é saúde tampouco). Você merece ser amado e apreciado por quem você é. Você tem o direito de ser desejado pelo seu corpo, e de fazer o que quiser com ele, inclusive sentir prazer.

Pais e mães, não condicionem as demonstrações de amor a seus filhos pelo peso e aparência que eles têm. E pra quem não tem filhos, intervenha quando vir crianças do seu convívio sofrendo situações de constrangimento em virtude do seu peso e aparência física. Professores, tenham mais consciência da importância do seu papel formador e busquem um mundo onde pessoas gordas possam se desenvolver plenamente. Pessoas gordas, busquem conhecimento social e libertação de dogmas opressores. Sang-Young Shin, você é lindo, estando na pele da Kim Chi ou na sua própria.

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Marco Magoga
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é amante da Moda, casado com as Artes, em processo de divórcio com o senso comum.