O mau exemplo de Cameron Post, Boy Erased e as terapias de conversão da sexualidade

Bruno Ferreira Botelho Lopes
oh, great! it’s bruno
5 min readJan 7, 2019

Ou: como a cultura pop pode impulsionar engajamento real e efetivo sobre importantes questões em nossa sociedade.

A cultura sempre foi um dos grandes caminhos para visibilizar e sensibilizar sobre importantes debates que travamos em nossa sociedade. Neste sentido, o cinema se destaca pela capacidade de nos conectar de forma instantânea às perspectivas de outros indivíduos, sendo mais acessível ao grande público que as obras literárias, por exemplo. Argumento frágil para deslegitimar os livros? Concordo. Mas foi assim que eu me convenci a não colocar “The miseducation of Cameron Post” na minha sacola de compras da livraria Índigo, no agora tão distante Toronto Eaton Center. Afinal de contas, em breve eu poderia conferir a adaptação cinematográfica da obra nos cinemas brasileiros — sem colocar em risco os parcos dólares que eu ainda carregava nos bolsos.

“O mau exemplo de Cameron Post”, como foi chamado no Brasil, conta a história fictícia de uma jovem que é flagrada em uma relação homossexual durante a festa de fim de ano do colégio e, por isso, é enviada para um “campo de reversão da homossexualidade” — uma espécie de escola cristã chamada para correção da sexualidade. No campo, Cameron conhece outros jovens que, assim como ela, foram enviados até ali pela desinformação e preconceito de suas famílias e juntos desenvolverão laços de empatia e amizade enquanto tentam convencê-los de que sua existência é um engano divino.

O filme é eficiente e trata da temática com delicadeza e uma leve ironia, principalmente por adotar o ponto de vista de Cameron. A obra também se destaca pela importante representatividade feminina, ainda muito cara às adaptações cinematográficas queer, e ao trazer um personagem e ator nativo-americano em sua narrativa — colocando luz à população “two spirit” uma das nuances da transgeneridade nas comunidades indígenas tradicionais. O filme foi bem avaliado pela crítica e também ganhou o grande prêmio do Júri do Festival de Sundance, nos Estados Unidos.

Outra recente adaptação cinematográfica que trata dos campos de conversão é o filme Boy Erased, baseado no livro “Uma verdade anulada” e que chega aos cinemas nacionais em 31 de janeiro de 2019. Desta vez, não se trata de uma obra ficcional, mas da transposição para as telas das memórias do ativista Garrard Conley, que frequentou um desses campos durante sua juventude. O filme conta com a atuação de Lucas Hedge, Nicole Kidman e Russell Crowe e foi indicado a dois prêmios Globo de Ouro.

A visibilidade dessa temática no cenário atual não é sem motivos: uma pesquisa recente da Universidade da Califórnia (UCLA) calcula que cerca de 700 mil cidadãos americanos já foram submetidos às terapias conhecidas popularmente como “cura gay” e que, atualmente, 20 mil cidadãos se encontram nesses campos de conversão.

A prática é realizada nos Estados Unidos há mais de um século e têm seu fundamento na crença de que ser lésbica, gay, bissexual ou uma pessoa transgênero não normal. As terapias de conversão são realizadas por profissionais licenciados ou por instituições religiosas e têm como objetivo reverter a orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero de pessoas LGBT, o que ataca diretamente a saúde mental desses indivíduos e aumenta a probabilidade delas cometerem suicídio. Por esse motivo, diversos colegiados da classe médica — como o American Medical Association, o American Psychological Association e o American Academy of Pediatrics — já se posicionaram publicamente contra esses campos que, entretanto, permanecem legalizados e em pleno funcionamento em trinta e seis estados americanos.

O lançamento dessas obras no circuito comercial garantiu um novo fôlego à campanha pelo banimento das terapias de conversão. Nas semanas que se seguiram ao lançamento do filme “Boy Erased”, por exemplo, as organizações da sociedade civil americana que contam com um canal de atendimento à jovens LGBT — como o Trevor Project e o Trans Lifeline — registraram um fluxo de ligações quatro vezes maior que a média para aquele período. Além disso, centenas de novas assinaturas foram recebidas pelo Trevor Project na campanha “50 bills, 50 states” durante a exibição dos filme nos cinemas. A campanha é a maior do mundo nesse sentido e busca apresentar projetos de leis para banir as terapias de conversão sexual para menores em todos os 50 estados americanos.

Grande parte desses resultados vieram pela participação ativa dos profissionais envolvidos nos filmes, dando um ótimo exemplo de como as produções audiovisuais podem gerar engajamento real e efetivo sobre questões sociais em nossa comunidade, sobretudo quando articuladas com organizações civis. Nessa esfera, é digno de nota o trabalho realizado em conjunto pelo elenco de Boy Erased e a Human Rights Campaign, que você pode conferir aqui , a série de pôsteres produzidos para promover organizações não-governamentais de prevenção ao suicídio da juventude LGBTI durante o lançamento de Boy Erased e a campanha de conscientização de dezesseis semanas que acompanhou o lançamento de “O mau exemplo de Cameron Post” e importantes instituições pró-LGBTI como a GLAAD, a NCLR e o projeto Born Perfect.

Pôsteres produzidos em parceria com organizações não-governamentais pró-LGBTI

No Brasil, as terapias de conversão sexual são proibidas desde 1999 pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), tendo sido este o primeiro país a proibir essas práticas em todo o seu território. A proibição veio em consonância com a retirada da homossexualidade do Código Internacional de Doenças pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1992. Apesar disso, alguns grupos de profissionais da Psicologia têm tentado reverter a proibição, através da queda da resolução do CFP 01/99 e de propostas legislativas, como o PL 4931/2016.

Em 2018, o Conselho Federal de Psicologia emitiu uma nova resolução que expande a interpretação da anterior, garantindo que a proibição de terapias de conversão sexual proteja também a comunidade transgênera (travestis, transexuais, homens trans e demais pessoas trans) de ter sua identidade de gênero perseguida ou questionada por essas práticas. Segundo o Trans Lifeline, pessoas trans têm o dobro de chances de serem expostas às terapias de conversão sexual que seus pares gays, lésbicas e bissexuais cisgêneros.

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Esse é um texto original de Bruno Ferreira Botelho Lopes.

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