Análise a ‘Fresh’

★★★ — A narrativa inconsistente não é suficiente para ofuscar a estética fotográfica e a química dos protagonistas, mas impede que a originalidade da premissa atinja toda a sua potencialidade.

Guilherme Martins de Freitas
oitobits
4 min readMar 20, 2022

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Realizado pela debutante em longas-metragens, Mimi Cave, Fresh, um original Hulu, chegou à plataforma da Disney+ no início do mês, fruto da parceria entre ambas empresas no mercado de conteúdos streaming. O filme revelava possuir uma premissa intrigante, muito motivado pelo frisson causado durante a sua estreia no Festival Sundance de Cinema e posterior disponibilização do trailer para o público em geral, no qual retratava um breve romance vivido entre a jovem Noa (Daisy Edgar-Jones) com o charmoso Steve (Sebastian Stan). Após uma série de encontros bem sucedidos, a rapariga parece-se convencer que encontrou, finalmente, um indivíduo que mereça receber o seu amor — pese embora a sua relutância em entregar-se a alguém precipitadamente. Contudo, tal como noutras obras do género, a velha máxima “Nem tudo o que parece, é”, assume-se como impulsionador da trama, uma fábrica de desafios consecutivos para os quais a protagonista é empurrada, arrastando consigo outras personagens para as trevas.

À primeira vista, assemelhava-se a um conto Hitchcockiano, uma abordagem moderna aos thrillers psicológicos do aclamado cineasta britânico. Também não considerava descabida as comparações feitas com o trabalho recente de Jordan Peele, outro novo mestre da mistura do humor subtil com suspense horroroso. Portanto, as críticas primárias e reações ao trailer elevaram as expectativas e potencial de Fresh para patamares exacerbados — restava apenas verificar se esta hipérbole generalizada se confirmava. É por esta razão que prefiro gerir e racionar as minhas expectativas em qualquer assunto da vida, seja de qual natureza for. Pode ser reflexo de uma racionalidade extrema, porém, acredito que esta postura me ajuda a tomar uma posição mais consciente dos estímulos oriundos da minha envolvência. Parti com esta ideia quando me propus a ver Fresh e é graças a esta ideia que consigo dosear o crédito pela originalidade dos argumentistas com algumas críticas ao desequilíbrio e à inconsistência de certas instâncias da narrativa.

Não há uma interpretação inteiramente correta do filme. Há quem possa argumentar tratar-se de uma crítica dos relacionamentos modernos, sejam eles online ou impulsivos (diga-se em abono da verdade, Noa e Steve conheceram-se na secção de frutas de um supermercado). Há quem veja Fresh de uma perspectiva mais grotesca, uma análise aos fetiches de uma elite protegida e alimentada pela absurdidade do crime do submundo. Há quem simplesmente opte por comentá-lo através da lente do entretenimento puro. Todas são válidas e, por isso mesmo, deve ser enaltecido o toque fresco — entenda-se a referência — incutido numa narrativa claramente inspirada por antecessores que podiam dificultar a afirmação neste espaço. As temáticas expostas beneficiam o interesse no campo de ação devido à pouca oferta de filmes onde o canibalismo incube-se do tema central, com uma boa dose de suspense à mistura. Contudo, enquanto o couvert servido tem um empratamento digno de Estrela Michelin, o prato principal e sobremesa de Fresh deixam um pouco a desejar, tendo em conta o seu estonteante início.

É neste momento que se colocam a nu as tais supramencionadas inconsistências. Não posso julgar uma eventual inexperiência da argumentista e realizadora — se chegaram ao escalão das plataformas streaming, por mérito e qualidade terá sido. Contudo, as escolhas na direção do enredo acabaram por prejudicar uma narrativa que, até ao meio do filme, parecia justificar o potencial desmedido que fora atribuído inicialmente. Existe maior preocupação na estética e substância do género ao invés de equilibrá-la com uma mensagem de teor mais social, sem descurar o desenvolvimento dos protagonistas. Embora fiquemos a conhecer um pouco de Noa e Steve, fica uma sensação de lacunas de informação nas suas histórias passadas — a não ser que haja intenção de criar uma prequela, o que me parece altamente improvável. Desse modo, o conteúdo mais animalesco, de horror, de suspense acentuado, embora mexa bem com os nervos da audiência, não permite acrescentar uma camada mais natural às personagens e à própria trama. Para além disso, somos presenteados com elementos desnecessários, sem qualquer tipo de contribuição para o desfecho de Fresh cuja atenção dada em demasia prejudica a solidez da estória.

Apesar de Fresh dar uma ligeira impressão de não ter ultrapassado o estado de esboço no seu guião, há que reconhecer a virtude nas atuações, nos cenários e na fotografia. São, para mim, os pontos fortes de um filme que merecia uma revisão e respetiva reescrita para poder fazer jus a grandíssimos thrillers que o cinema tanto regalou o seu vasto público. Logra, de facto, agarrar a audiência ao ecrã com uma apurada técnica de suspense, ainda que seja ineficaz em brindá-la com um desenlace digno de um filme deste género. Vale pela forma como entretém e pela química entre Daisy Edgar-Jones e Sebastian Stan.

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