Análise a ‘Mank’

★★★★☆
Mank era a alcunha — e diminutivo — de Herman J. Mankiewicz, um génio problemático, um escritor cujo brilhantismo era alimentado pelo sucessivo álcool ingerido, bem pela visão mordaz da indústria cinematográfica e sensacionalismo mediático. Para muitos, o nome poderá não ser familiar. Para mim também não o era, até descobrir que a Netflix iria estrear um filme biográfico sobre um dos argumentistas de Citizen Kane, por muitos considerado a melhor obra cinéfila de todos os tempos.
Baseado num argumento escrito pelo seu pai, Jack, Mank é o novo trabalho de David Fincher. Trata-se de mais uma clara filiação sua à Netflix, plataforma onde está disponível para visualização, após ter produzido a série Mindhunter, cujo futuro parece estar cada vez mais incerto. Não obstante esse facto, o já aclamado realizador americano foge um pouco da linha das suas obras para prestar uma homenagem à época d’ouro de Hollywood e revisitar os bastidores da pré-produção da obra realizada e interpretada por Orson Welles, dando vida a um projecto que durante vinte anos nunca chegou a ver a luz do dia.
Filmado totalmente a preto e branco, Fincher procura envolver-nos numa América de duas faces. A primeira, atingida pela Grande Depressão, onde o entretenimento e ludicidade da Sétima Arte contornavam os efeitos da crise, mas cruzavam-se com a preocupação em manter o comunismo afastado do país. A outra, durante os primeiros anos da Segunda Grande Guerra, coincidindo com o auge de Mank, uma pessoa mais céptica e cínica, que o levaram a tomar inspiração para desenvolver o trabalho com o qual obteve maior reconhecimento. A narrativa decorre, assim, em torno de flashbacks durante a década de 30, alternando com o período onde Mankiewicz compôs o argumento de Citizen Kane.

A utilização desta técnica parece ser tudo menos inocente tendo em conta as semelhanças com a estrutura do filme de Orson Welles — um enredo não linear. Assenta que nem uma luva para ilustrar a progressão do protagonista, facilitando a compreensão do público sobre os motivos que influenciaram Mank (Gary Oldman) na elaboração do seu roteiro. Durante cerca de dez anos, o escritor alimenta-se da arrogância, convenção e politiquismo americano para lançar um olhar crítico e cáustico ao que a riqueza e excesso de poder fazem até ao mais inocente dos indivíduos — originando o argumento de Citizen Kane. Numa forma mais convencional provavelmente Fincher não conseguiria agarrar a audiência da maneira pretendida a priori, tendo em conta o volume de informação a depreender durante as mais de duas horas de sessão.
Esta dualidade periódica salienta igualmente o desenvolvimento das restantes personagens secundárias, como a actriz Marion Davies (Amanda Seyfried), o magnata William Randolph Hearst (Charles Dance) ou a sua secretária Rita Alexander (Lily Collins), também elas chaves para moldarem Mank como uma espécie “génio-céptico-alcoólico” em busca de uma redenção — embora não aos olhos dos outros. Um dos pontos interessantes da narrativa assenta na forma como o argumentista procura redimir-se de si próprio, provar o seu brilhantismo a si próprio, mostrar não ter perdido as suas capacidades a si próprio.

Não posso afirmar com certezas se a ilustração de Mank dignifica a sua imagem e a representação da pessoa que foi — confesso ainda não conhecer grande parte da sua obra, nem como se relacionava no meio da indústria. Porém, malgrado algumas obscenidades e atitudes reprováveis incluídas no filme, fica a sensação de ter realmente alcançado essa paz interior que tanto desejava no início da estória. Fica a ressalva dos elogios da crítica sobre a precisão histórica e de algumas personagens.
Para terminar, é impossível não mencionar as performances individuais de Gary Oldman ou Amanda Seyfried (provavelmente candidatos à nomeação de um Óscar na atípica celebração em Abril de 2021), assim como a banda sonora, fotografia e guarda-roupa. O objectivo de David Fincher não passaria por emular Citizen Kane, nem outras célebres produções da década de 30 e 40. Porém, este olhar sobre os bastidores da obra leva-nos, inevitavelmente, a sentir transportados para a era dourada de Hollywood, bem como levar-nos a crer estarmos a assistir não um filme de época, mas sim um filme realizado na década em questão. Divertido, bem escrito e interpretado, Mank pode ser apreciado por todos, desde quem procure entretenimento aos ávidos adeptos da Sétima Arte. Julgo estarmos perante um clássico… sobre um clássico.