Análise a ‘Ozark’ — 4ª temporada, parte I

★★★★★ — Mais complexa, emocionante e sangrenta, a aura negra de Ozark atinge novos níveis de imprevisibilidade na primeira metade da última temporada.

Guilherme Martins de Freitas
oitobits
6 min readFeb 6, 2022

--

O perigo e a incerteza parecem não dar tréguas à família Byrde. Embora tenham finalmente conseguido obter maior controlo nas suas operações criminais, a execução da advogada Helen Pierce (Janet McTeer) e do atribulado Ben (Tom Pelphrey) no desfecho da temporada anterior, veio abrir novos precedentes de desconforto para os protagonistas. A linha entre a sobrevivência e a fome de poder torna-se cada vez mais ténue e serve de pano de fundo para um jogo de xadrez encetado, agora, em quatro frentes. Quiçá a fazer jus ao número de temporadas apresentado, a presente é, quase de certeza, uma das mais emocionantes desenvolvidas pela produção original da Netflix.

Por várias vezes foram estabelecidos paralelismos com Breaking Bad. Uma comparação natural dada a ascendência de qualidade da narrativa, assim como o envolvimento de cidadãos comuns na marginalidade. No entanto, desengane-se quem continua a denotar um pouco de Walter White em Marty Byrde (Jason Bateman). Embora tivesse sido o obreiro da ida para os lagos Ozark, no Missouri, o ex-consultor financeiro continua a estabelecer um ponto de equilíbrio em situações de ebulição iminente. Ainda que assim não o demonstre, é quem se mantém mais próximo aos seus valores iniciais, não obstante o quão corrompidos estejam. Um exímio gestor de crises, a cautela e frieza são pontos distintos do calculismo de Wendy (Laura Linney), outrora uma mulher imaculada, agora uma calculista impiedosa que não olha a meios para atingir os seus objetivos. É precisamente nela onde se denota a maior parcela dos trejeitos anti-heroína, onde reside um pouco da gama Walter White, onde se identifica a personagem com maior robustez da série.

Se os Byrde caíram em boas graças com o letal e sangrento cartel mexicano para o qual lavam dinheiro, encabeçado por Omar Navarro (Felix Solis), é devido a Wendy. Ao utilizar a sua capacidade de persuasão dos tempos em que exercia funções de relações públicas em campanhas políticas, consegue encontrar maneiras de manter os seus auto-proclamados “chefes” agradados com o dinheiro gerado. Simultaneamente, vai bajulando o seu ego e enchendo os bolsos da família fruto das receitas criadas pelo franchise de casinos, o que abriu caminho à criação de clínicas de reabilitação, muito à custa de uma história inventada para encobrir o desaparecimento do referido irmão Ben. A cegueira causada por esta notoriedade compromete a inocuidade dos negócios, ao ponto de voltar a virar-se contra um membro da família.

Agora, Wendy procura prejudicar o filho rebelde, Jonah (Skylar Gaertner), também ele mergulhado na criminalidade e aliado da maior rival dos Byrde — a impulsiva Darlene Snell (Lisa Emery), a segunda fação deste certame, também ela envolvida em tráfico de droga. Apesar do seu peso na trama, por inúmeras vezes exibe comportamentos inexplicáveis e acaba por ser utilizada como um elemento de conveniência para o desenlace da estória, principalmente na primeira metade desta temporada. Contudo, compreendo a sua manutenção tão tardia em Ozark, não obstante ter-se tornado ligeiramente obnóxia no meio de tanta potencialidade.

Retomando a abordagem de Jonah, a revolta que expressa nestes episódios foi cozinhada a uma temperatura ideal nas temporadas transatas, onde a sua extrema e estranha solidão serve de base para uma evolução no ponto e digna de uma estrela Michelin, tal o cuidado guarnecido ao seu propósito na narrativa. Verificamos como os seus traumas passados o obrigaram a desenrascar-se, ao ponto de revelar uma surpreendente astúcia e inteligência — até para os seus pais. Ora, não tivesse criado um software para auxiliar Darlene a lavar dinheiro das suas operações. Enquanto desempenha essas tarefas, forma uma amizade improvável com outra das mais icónicas figuras de Ozark, Ruth Langmore (Julia Garner), possivelmente o motor da temporada, pelo fardo de solitude que transporta em si.

A par de Wendy (e de Jonah, nesta temporada), é quem exibe a maior curva ascendente em termos de crescimento. Fala-se muito sobre o peso da agressividade em Ozark — mas não se analisa o quão esse excesso é necessário para moldar um desfecho cada vez mais imprevisível. Enquanto os Byrde parecem fintar o caudal letal, Ruth, vítima da maldição dos Langmore, não é capaz de evitar mais uma baixa na sua extensa lista. Seja como aliada dos protagonistas ou, no caso desta primeira metade, como oponente, a jovem rapariga volta a ficar sem um dos seus portos de abrigo, o seu primo Wyatt (Charlie Tahan), morto de forma passiva pelo grande antagonista da temporada — Javi Elizondro (Alfonso Herrera).

Sobrinho de Omar e com grandes interesses nos procedimentos do cartel Navarro, Javi é uma adição fulcral para a série. Desconfiado e extremamente ambicioso, mantém os Byrde sob rédea curta e revela-se um obstáculo para a família retornar à sua vida pacata. O seu imenso orgulho torna-se uma valência e, paralelamente, uma barreira para garantir a tão pretendida estabilidade dos seus negócios. Essa mesma soberba realça o quão consistente e estruturada Ozark se tornou. Ao contrário das temporadas iniciais, as personagens já não são atiradas sem nexo para o meio do enredo. Todas têm um papel preponderante a desempenhar, por mais tempo que o público demore a entender essa significância. Esse foi o caso com a entrada de Javi. Como foi mencionado acima, impacta o sentido da narrativa ao alterar o seu rumo, levando-nos a crer que a máxima da sobrevivência vai extrapolar para níveis ainda não vistos e embaraçar os planos de liberdade dos Byrde.

Nesse sentido, os protagonistas vão encontrar mais dois inimigos implacáveis, outros bons exemplos da intempestividade de Ozark. Depois de ter estabelecido um acordo de cavalheiros com Marty e Wendy, a agente do FBI Maya Miller (Jessica Frances Dukes) revela uma faceta impiedosa que pode ter grandes implicações no desfecho da trama. Age em total independência dos seus superiores para capturar Omar e, à revelia dos Byrde, quebra um pacto de imunidade crucial para a segurança da família. Há paralelismos na atitude de Maya com as motivações do investigador privado Mel Sattem (Adam Rothenberg). Uma recém inclusão no elenco, foi originalmente contratado pelo marido de Helen para obter uma assinatura que concluísse o processo de divórcio de ambos. Incapaz de a localizar (porque será?), Mel inicia uma investigação autónoma focada no comportamento suspeito dos ex-sócios da advogada. Por vezes parece não conseguir encaixar-se devidamente na narrativa. No entanto, as similaridades evidenciadas com a agente do FBI, tais como a persistência e a perspicácia, parecem ser suficientes para formar uma aliança que, de uma vez por todas, destrone a incolumidade dos Byrde.

Seja qual for o desfecho de Ozark, o salto qualitativo da segunda para a terceira, e agora da terceira para a quarta deixam água na boca para o grande final na segunda metade da temporada, a estrear numa data por confirmar. É verdade que não podemos deixar despercebida a existência de algumas pontas soltas perdidas pelos campos e afundadas nos lagos ao longo destes quase quarenta episódios. Porém, também não podemos ignorar a subtileza na criação das personagens e o modo como adensam o esqueleto da diegese, todas com um destino entrelaçado apesar de algumas raramente se cruzarem em cena. Espero não me arrepender de avaliar a série com nota máxima tão prematuramente — mas que sirva de incentivo para convencer os mais céticos a assistir à produção menos Netflix do atual catálogo da Netflix.

--

--