Análise a ‘Ozark’ — 4ª Temporada, parte II

★★★★★ — Mantendo-se fiel ao seu tom e sem medo de arriscar, Ozark oferece um final polémico mas que retrata a impotência do cidadão comum perante entidades mais poderosas.

Guilherme Martins de Freitas
oitobits
7 min readMay 12, 2022

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***o seguinte texto contém spoilers***

As nossas escolhas são pelo benefícios da família ou meramente por proveito próprio? Estas questões são transversais aos episódios de Ozark e voltam a ser colocadas em maior evidência na parte final da série, cuja estreia teve lugar no passado dia 29 de abril. Entre um Marty (Jason Bateman) cada vez mais desesperado para poder deixar a vida criminosa para trás e uma Wendy (Laura Linney) consumida pela cegueira da cobiça, há uma luta incessante pelo poder no seio da família Byrde. No entanto, recordando o sucedido nos capítulos transatos, os protagonistas estavam longe de ter a vida facilitada, encontrando-se cada vez mais entalados num beco sem saída. Ou será que não?

Antes de responder à pergunta inicial, é importante para a estória como um todo. Embora muitos desejassem vê-los devidamente castigados, terminada a narrativa apercebemo-nos que só podia haver um vencedor (ou vencedores) e esses foram, claro está, os Byrde. Por este motivo se compreende a receção polarizadora do público habituado a finais satisfatórios para os seus padrões e não desafiados a encarar a realidade num dos poucos locais onde se podem refugiar dela. Admito que vê-los sair incólumes causou-me algum desconforto inicialmente. Porém, após digerir as cenas finais e matutar bem sobre o assunto, tenho de elogiar a coragem dos criadores ao manterem-se consistentes à fórmula e valores de Ozark — um dos pontos com maior acréscimo de qualidade ao longo da trama. Ora, este desfecho só poderia ser o único possível para uma família que anda de mãos dadas com a morte, mas que soube fintá-la nos momentos mais cruciais — e há um evidente nesta quarta temporada.

Exploremos, no entanto, o primeiro sinistro desta parte, o de Javi (Alfonso Herrera). Como mencionei na minha análise anterior, o recém nomeado líder do Cartel Navarro colocava-se como um dos maiores adversários para os Byrde, independentemente dos acordos estabelecidos com o FBI. Marty e Wendy nunca caíram no goto do sobrinho de Omar (Felix Solis), verificando-se numa verdadeira ameaça para a sua integridade. Foi mesmo a fechar o episódio de abertura que Ozark tornou a revelar a sua audácia ao matar Javi — às mãos de Ruth (Julia Garner) — e despistar a audiência com mais uma mudança abrupta no caminho do enredo. Mas, observando bem esse caminho, nota-se nutrido de sentido. O seu desaparecimento foi mais um prego no caixão dos rivais dos protagonistas, um ataúde profundo no qual couberam quase todos aqueles que se cruzaram com os Byrde e ousaram pôr à prova a sua sobrevivência. Eliminar o maior antagonista da parte transata salientou a bravura em arriscar por parte da equipa de argumentistas e produtores e elevou o mito intocável de Marty e Wendy.

Se atendermos ao elenco desde o primeiríssimo episódio de Ozark observamos uma panóplia de atores e atrizes que raramente duraram mais de temporada e meia. Se formos mais precisos, talvez descobríssemos que 95% dessas personagens acabaram defuntas algures num tempo narrativo logo após terem tido, provavelmente, uma certa influência no percurso dos Byrde. Creio estar aqui a chave da maior discordância entre fãs quanto ao fim abrupto da série.

Veja-se Ruth. Uma das mais carismáticas heroínas de Ozark teve, para aflição de muitos, o mesmo fim de Javi — poeticamente, às mãos de Camila (Verónica Falcon), a mãe do assassinado, e uma peça importante para a perpetuidade do poder dos Byrde. Seria impensável deixá-la a sofrer, sem qualquer propósito, após o final da estória. Não obstante ter-se tornado a acionista maioritária e proprietária do Missouri Belle — casino sobre água que servia de meio de lavagem de dinheiro para o cartel mexicano — Ruth estava emocional e mentalmente mais ausente que presente. A morte do seu primo Wyatt (Charlie Tahan) fora a gota de água numa longa lista de fatalidades dos Langmore que deixaram a jovem sem amparo. Apenas espero que alguém cuide bem do último sobrevivente, Three (Carson Holmes)…

Por muito que custe, o falecimento de Ruth é justificado — não tivesse sido quem mais dores de cabeça deu aos Byrde, aliando-se e desconciliando-se por diversas vezes. O mito expande-se para culminar na premissa de que os poderosos controlam o seu jogo com as regras por si definidas e, invariavelmente, acabam por ganhá-lo, custe o que custar. Volto a pegar no anteriormente referido momento em que escapam das garras da morte de forma flagrante. A primeira cena da quarta temporada testemunhou os Byrde a sofrerem um arrepiante acidente de carro. Após várias cambalhotas, a destruição do veículo conduzido por Marty deixou o público curioso com o remate desse momento. Foi preciso esperar literalmente até ao último episódio para finalmente termos as respostas às nossas inquietações, onde — pois, claro — nos foi desvendado que saíram sem qualquer arranhão (pese embora Marty, Jonah e Charlotte tenham passado por um susto momentâneo com Wendy).

Admito que o enquadramento pareça estranho, despropositado, um mero fait divers sem qualquer relevância. Contudo, parece-me ter um significado mais profundo. Esse acidente foi a catarse da imortalidade dos Byrde. A subtileza desta pista passou despercebida tal foi o aparato da ocasião. Embora muitos possam alegar ser pouco óbvia, na minha opinião, é uma mensagem clara sobre a sua invencibilidade e resistência. A conclusão esteve à frente dos nossos olhos este tempo todo. Porque razão teriam escolhido o momento do capotamento como abertura de temporada? Um toque arrojado mas bastante inteligente se analisado holisticamente. Apesar da imensa demora em solucionar-se, foi um dos momentos mais fulcrais para a concretização do objetivo principal de Ozark, goste-se ou não, valorize-se ou não.

Voltando ao que referi no preâmbulo da análise, a invulnerabilidade dos Byrde acaba por zelar automaticamente pela segurança da família. Por mais justificações dadas, é impossível crer que alguns comportamentos hediondos tenham sido executados priorizando o bem-estar de todos. Todavia, são esses atos que acabam por juntá-los. A perversidade de Ozark consegue criar um laço entre egoísmo e poder com união sanguínea. Enquanto Marty se acomoda e revela, por vezes, uma faceta mais humilde, Wendy prossegue o seu percurso contrastante, estabelecendo-se na faceta da maldade pura que os criadores usaram como suporte para o desenlace da trama. Tenho de admitir que nunca alguém me fez odiar tanto uma personagem como Laura Linney me fez odiar Wendy Byrde — e já consumi bastantes séries de género semelhante. Assume-se como um dos grandes pilares da série e muito possivelmente dos melhores trabalhos de representação alguma vez feitos em pequeno ecrã.

Portanto, percebe-se como a sua influência nada altruísta e malvada é preponderante para manter a família perto de si. No fundo, a corrupção estava destinada a consumir os Byrde, dos mais velhos aos mais novos, sem hipótese de retorno. Abrigam-se num escudo no qual o óbito faz ricochete. Exemplo disso é a última cena de todas — finalmente, hora de revelá-la. O quase sempre correto Jonah (Skylar Gaertner), que passou a maior parte da temporada de costas voltadas com os pais, entrega-se no instante final à subserviência dos progenitores. Atinge o detetive privado Mel Sattern (Adam Rothemberg) fatalmente quando este, noutra tentativa inglória e ingénua de levar os Byrde à justiça, os confronta com a verdade sobre Ben, o irmão de Wendy. Novamente o mito prevalecer e a maldição a abraçar os seus adversários.

Embora reconheça que nem tudo foi perfeito neste final de Ozark, tenho de valorizar como pequenos detalhes pensados com minúcia conferem um significado amplamente simbólico que espelha o lado mais negativo da sociedade contemporânea. Nao tiveram medo de arriscar e mantiveram-se coerentes com o tom proposto desde o capítulo inicial. Mesmo que não tenha agradado a generalidade do público, há que salientar como poderam oferecer não só um desfecho longe da idealização moral, mas muito realista, como também protagonistas que vão ficar cravados nos labirintos das nossas cabeças. Uma pena a Netflix já não apostar em produções deste género.

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