Análise a ‘Severance’ — 1ª temporada

★★★★★ — Aliciante e misteriosa, Severance produz um visualmente hipnotizante comentário crítico sobre a labuta laboral com ramificações mais profundas na essência do ser e da identidade própria.

Guilherme Martins de Freitas
oitobits
5 min readApr 11, 2022

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Da Apple TV chega-nos, muito possivelmente, uma das mais aliciantes e disruptivas séries desenvolvidas na era pandémica, onde termos relacionados com saúde mental e work-life balance tornaram-se predominantes no léxico dos trabalhadores. Severance — que, traduzido para português, significa “separação” — aborda, de forma bastante subtil, questões exatamente relacionadas com o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, embora extrapoladas a um sentido altamente distópico. Claramente inspirada no surrealismo futurista de conceitos como os de Black Mirror, The Truman Show ou The Stanley Parable, a narrativa imaginada por Dan Erickson acompanha as peripécias de quatro trabalhadores sujeitos a uma operação que separa memórias individuais das memórias laborais. Criam-se assim duas personalidades distintas: as do mundo exterior — denominadas por outies — e as do mundo labiríntico da sua empregadora Lumon — denominadas por innies.

Embora os comentários aos tratamentos questionáveis que o mundo corporativo exerce aos seus colaboradores pareça óbvio de início, o decurso dos episódios transporta-nos para camadas mais densas onde imperam o existencialismo e simbologia. Mergulhamos numa espécie de culto levada a cabo pela empresa de biotecnologia, cujas intenções extravasam a simples divisão entre vida pessoal e laboral, parecendo obedecer a uma lista de dogmas desenvolvidas pela linhagem Eagan, a família fundadora da empresa. Fruto principalmente da consciência do protagonista Mark Scout — ou Mark S, o seu innie — interpretado por Adam Scott, os membros do departamento de macrodata, Dylan G (Zach Cherry), Helly R (Britt Lower) e Irving B (John Turturro), unem-se na tentativa de desvendar os bizarros segredos escondidos pela Lumon e pelos seus superiores conscientes — a intrigante Miss Cobel (Patricia Arquette) e o omnipresente Mr. Milchick (Tramell Tillman).

É interessante notar o modo como, ao longo dos nove episódios que compõem a primeira temporada, se cria uma distinção real e bem agudizada entre os innies e os outies. Afinal de contas, também são seres vivos, são indivíduos que merecem ter a sua própria identidade — embora se denote uma dissonância de comportamentos e valores comparados com os seus duplos. Severance procura ir aos meandros das profundezas de um enredo que engana quem analisa os eventos que vão sucedendo à superfície. Humaniza as consciências e salienta as dignidades dos innies, lançando algumas farpas e fazendo alusões metafóricas à filosofia nefasta que os trabalhadores são uma extensão devotamente perpétua à entidade contratante.

Contudo, por melhor que Lumon Industries tente guardar os seus subterfúgios nas masmorras dos escritórios e influenciar a opinião pública quanto ao sucesso da operação de separação, a velha e esperançosa máxima “a união faz a força” prevalece, até certo ponto, no grupo de innies. Este campo da consciência e personalidade própria dos indivíduos separados joga muito a favor da capacidade de Severance aumentar constantemente o ritmo cardíaco dos seus fãs. A mestre combinação entre a equipa de guionistas, a realização encabeçada pelo conceituado Ben Stiller, e a banda sonora orquestrada por Theodore Shapiro definem um tom único à série, onde amplificar o mistério é palavra de ordem. Ao ler as análises de críticos especializados e comentários do público geral, é fácil encontrar um consenso sobre como a paulatina, embora excêntrica, evolução da trama impõe uma vontade insaciável de investir tempo em estabelecer elos com as personagens e melindrar as nossas mentes para poder solucionar teorias antes da estreia do episódio propriamente dito.

Uma das virtudes que possibilita essa experiência está assente num caso quase excecional para os dias de hoje — a estreia semanal de cada capítulo, especialmente em plataformas de streaming. Contrariando as atuais tendências de mercado, Severance utiliza uma estratégia mais tradicional a seu favor. Quer criadores, quer produtores assumem-se bastante cientes das características particulares da narrativa onde o thriller é constante e utilizam beneficamente o intervalo de sete dias para intensificar o interesse e a especulação na história. Apesar da Apple TV não revelar os dados de visualização dos seus conteúdos, o Chefe de Programação, Matt Cherniss, estima que Severance se tenha tornado no programa mais visto neste formato no dia 11 de março. Embora padeça de confirmação oficial e de ter perfeita noção que as séries ganham muito em popularidade quando lançadas de uma assentada, esta declaração leva-me a crer estarmos perante um trabalho singular na televisão contemporânea, conseguindo obter hype de forma gradual e ponderada, para se poder afirmar num contexto onde o consumo exacerbado e imediato tomou a dianteira das preferências dos subscritores.

Apesar destes elogios, também é importante acautelar a recém-formada legião de fãs cujas expectativas se equiparam aos maiores arranha-céus do planeta. Várias foram já as séries que se revelarem incapazes de darem seguimento à grande qualidade impressa na temporada de estreia, caindo a pique nas seguintes — talvez devido a essas esperanças desmesuradas. Exemplos como Mr. Robot ou Westworld — curiosamente, outras duas produções com tons bastante semelhantes às da obra em análise são notórios, especialmente devido à complexidade da narrativa. A presente série enquadra-se bem neste arquétipo, principalmente devido aos inúmeros eventos secundários e pontas soltas deixadas por atar na conclusão do último episódio. Se não forem bem domesticados no relançar da segunda temporada entretanto já confirmada, Severance corre o risco de se emaranhar nas teias da sua própria ambição. Porém, o cuidado e a minúcia com que a narrativa é desenhada e visualmente representada leva-me a acreditar na continuidade da consistência.

Claro, 2022 ainda vai no início do seu segundo quarto e muitas aclamadas produções vão retornar às plataformas/televisão no decurso do ano. Porém, dificilmente nos próximos meses vão estrear séries tão relevantes quanto viciantes como Severance. A coesão harmónica entre elenco — onde um conjunto de nomes menos célebres consegue agigantar-se perante velhos conhecidos — imagem, trilha sonora, subtileza e simbologia fazem do original Apple TV uma produção merecedora de todo e qualquer elogio. Com uma crescente legião pelo globo, está no caminho certo para, quiçá, dentro de uma mão cheia de anos, poder considerar-se como um culto clássico. A ironia, segundo Eagan.

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