ENTREVISTA | “Tem surgido poucos espaços para artistas indígenas no cenário artístico brasileiro

Roberto Aguiar
okacultural
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4 min readMay 28, 2024

| Por Roberto Aguiar

A questão indígena é um tema de grande relevância histórica-social em nosso país, onde os povos originários seguem em luta pela demarcação de seus territórios, em defesa de suas vidas e de suas ancestralidades. Para falar sobre o papel da cultura nesse processo, conversamos com a indígena Gleice Ferreira, que é de Jequié, cidade baiana conhecida como a terra do sol. Ela é escritora, professora, atriz, operadora de luz e poeta.

Gleice Ferreira integra o coletivo Mulherio das Letras Indígenas. Em 2023, junta com outras escritoras indígenas, foi premiada pelo Jabuti, principal prêmio da literatura brasileira. Também é parte do Coletivo Mulheres Maravilhosas e escreve desde os 13 anos, em forma de cartas e diário.

Gleice Ferreira nasceu na cidade de Jequié, localizada no sudoeste baiano

Oka Cultural Os povos indígenas têm realizado uma forte luta contra o Marco Temporal, em defesa de seus territórios e de suas vidas. Qual o papel da arte e da cultura nesse processo?
Gleice Ferreira —
O papel da cultura e da arte é tentar preservar e ampliar ao máximo o conhecimento de cada corpo território, algo nada fácil, pois insistem em nos invisibilizar. Mas somos plurais, temos direito à vida e aos espaços que nos são de direito. Difundir a cultura plural indígena por meio das redes sociais têm alcançado mais visibilidade à luta, à causa. Isto é positivo. Seguiremos dizendo: Reparação, já! Demarcação, já!

Quais as dificuldades que você encontra como uma artista mulher e indígena no processo de produção cultural?
São muitas as dificuldades que eu já enfrentei e sigo enfrentando todos os dias, principalmente pelo fato de ser mulher. O assédio é grande, chega a me desanimar. Cito algumas coisas que já ouvi: “posso te ajudar muito, mas…”, “vamos sair e eu te faço uma doação”. Isso é tudo muito nojento. As velhas perguntas de sempre: “você é índia de verdade?”, “tem índio na cidade?”, “quem tá te produzindo, quanto tempo de experiência?”, “quem tá por trás do projeto?”. Passamos por tudo isso porque é impossível nos verem nos espaços como diretoras, produtoras e produzindo muito bem, sem dever nada ao patriarcado que insiste em nos impor suas regras.

Você avalia que artistas indígenas têm obtido mais espaço no cenário artístico brasileiro?
Tem surgido poucos espaços para artistas indígenas no cenário artístico brasileiro. Estamos ainda muito presos no folclore ou no mito do fundador, colonizador. Quando artistas indígenas se apresentam em festivais muitas vezes é por um cachê irrisório e não normalizam a nossa presença nesses lugares de fala e representatividade. Aqui em Salvador tem uma banda, a Cabokaji, que resgata com a música a nossa ancestralidade indígena, temos a rapper Katú Mirim em São Paulo, a Kaê Guajajara e tantas outras pessoas. É uma galera que grita em bom tom e som as nossas dores e conquistas, cantam a nossa verdadeira história.

Gleice Ferreira escreve, desde os 13 anos de idade, em forma de cartas e diário

Um texto seu integra o livro ‘Mulherio das Letras Indígenas’, livro organizado por Eva Potiguara, vencedor do Prêmio Jabuti 2023 na categoria fomento à leitura. Qual a importância dessa premiação para você e para as demais escritoras indígenas?
É uma conquista que não tem como mensurar o tamanho, porque são mulheres indígenas de todo o Brasil, são vozes por anos silenciadas que estão colocando para o mundo as suas dores. Uma vez eu fui chamada de pequena por uma mulher escritora branca. Ela me disse que eu precisava caminhar muito para chegar onde ela está. Um outro escritor me disse que eu não escrevia. Quatro anos depois, eu estava escrevendo meu livro artesanal com o miolo manuscrito. Depois me juntei ao coletivo do Mulherio das Letras Indígenas e hoje sou uma co-autora premiada com o Jabuti. Não preciso provar nada para ninguém, mas eu escrevo.

Existe hoje um forte movimento de retomada da identidade indígena, que sofreu um apagamento histórico imposto pelo processo de colonização. Você é parte dessa retomada. Fale um pouco sobre isso.
Sou parte, há quase nove anos, desse processo de retomada identitária que é doloroso, cansativo e um tanto prazeroso. É como buscar o fio da meada como dizem, achar a ponta, se parte, embaraça, volta, para um pouco, desenrola. E, ainda se tem medo, parece ser vergonhoso ser indígena neste país. E o apagamento surge quando nos nomeiam pardos ainda na certidão de nascimento. O prazer vem quando eu descubro a história de minha avó materna; avó paterna, que viveu 105 anos em contexto de aldeia em Valença; em me reconhecer, meus traços ancestrais, meu legado, meus olhos, meu tom de pele, o sangue ancestral que me habita.

Recentemente, você realizou em Jequié, sua cidade natal, o evento ‘(Re) Conhece os Seus Originários’. Como foi o evento? Ele é parte desse processo de retomada da identidade indígena?
Sim, é uma websérie que resgata a identidade indígena da população de Jequié que foi e é apagada durante séculos. Ainda será lançada em julho a websérie. Estamos no processo de edição desse trabalho, que eu chamo de missão. Será lançada em primeira mão para convidados e estudantes das escolas públicas de Jequié e adjacências, pois é digno e necessário. Eu sou parte, pois pertenço a este lugar.

Quais outros projetos você está envolvida neste momento? Tem algum outro projeto em elaboração que você possa dividir com os leitores?
Tenho, mas ainda não é o momento de ser compartilhado. Mas afirmo que vem muita coisa boa por aí, sou flecha lançada no tempo sem retorno.

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Roberto Aguiar
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jornalista; morador de itapuã (salvador/bahia); torcedor do bahia; 'minha carne é de carnaval' - https://twitter.com/roberto_jornal