Festival mantém acesa a chama da contracultura na Aldeia Hippie de Arembepe

Roberto Aguiar
okacultural
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6 min readJan 25, 2024

| Por Roberto Aguiar

Mais antiga e autêntica aldeia hippie do Brasil | Foto: @olhar.comamor

Uma herança da contracultura dos anos de 1960. Assim podemos definir a Aldeia Hippie de Arembepe, localizada no município de Camaçari, na área metropolitana de Salvador.

O movimento da contracultura, tendo o movimento hippie com um dos seus expoentes, fez parte do contexto de manifestações juvenis no pós-Segunda Guerra Mundial, ganhou características próprias em diversos lugares do mundo, mas tendo em comum o questionamento e a negação da cultura vigente nos anos de 1960, visando quebrar tabus e contrariar normas e padrões culturais.

Os jovens do movimento da contracultura adotavam um estilo de vida comunitário e/ou nômade e buscavam viver fora dos padrões e valores tradicionais da classe média. Tinham como guia uma filosofia de vida alternativa sustentada nos conceitos de paz, amor, liberdade e harmonia com a natureza.

Preocupavam-se com a ecologia, o equilíbrio energético do ecossistema, com a continuidade da vida humana no Planeta Terra. Por isso, buscavam aprofundar a relação com a Natureza e defendiam valores e padrões que superassem a eminente ameaça de destruição da vida.

O inicio
Com essas concepções de vida na mente e a mochila nas costas, os primeiros hippies começaram a chegar em Arembepe no final da década de 1960, dando início à formação da mais antiga e autêntica aldeia hippie do Brasil.

Não há um consenso de quando o primeiro hippie chegou ou quando a aldeia foi fundada, Beto Hoisel, no livro Naquele Tempo, em Arembepe, diz:

Quando e como começou a aldeia hippie, não se sabe. Possivelmente, fins dos anos sessenta algum chincheiro curtidor chegou e resolveu ficar. Fez casinha com palha de coqueiro, e ninguém reclamou. Arrumou — ou tinha — companheira e foi ficando. Encontrou outro maluco fazedor de colares e pulseiras em Itapuã ou no Mercado Modelo, onde vez em quando ia vender seu produto, e espalhou discretamente a descoberta. Foram aparecendo outros e outras, fazendo casinhas e ficando, sem ninguém reclamar. Tudo deserto, ninguém para encher o saco, natureza limpa, a praia, o rio, o pôr-do-sol e o nascer da lua, os coqueiros fornecendo material de construção e coco à vontade a fome a sede. Arembepe logo ali, para um apoio imediato. E principalmente, ninguém. Ninguém para reclamar dos trajes ou da falta deles, ninguém para fiscalizar os comportamentos assumidos. Silêncio e paz. Lugar ideal para o amor, ao som discreto das guitarras, flautas e bongôs. Liberdade. Li-ber-da-de! estava fundado o paraíso.

O certo é que os hippies encontraram um ótimo refúgio entre o rio e o mar, para viver uma vida simples, com o mínimo possível, resistindo à lógica da acumulação capitalista, responsável pela degradação ambiental. Um lugar para colocar em prática suas concepções de vida e de mundo. Tiveram um encontro amistoso com os pescadores da comunidade e desta boa relação nasceu o povoado com característica de vida alternativa. Povoado que foi ganhando notoriedade para além das fronteiras do Brasil.

Em 1969, a Aldeia Hippie de Arembepe recebeu Mick Jagger. O momento está registrado em fotografia. Ele com cerca de 25 anos de idade, tocando bongô, rodeado por crianças, na Casa do Sol Nascente. Em março do ano seguinte, foi a vez da cantora Janis Joplin visitar a comunidade, sete meses antes de morrer por overdose de heroína.

Mick Jagger na Aldeia Hippie de Arembepe, em 1969 | Foto: Divulgação

No auge do movimento de contracultura, também passaram pela Aldeia Hippie de Arembepe os internacionais Jack Nicholson e Roman Polanski. A turma da Bahia não podia ficar de fora: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Betânia, que na década de 1970 rodaram o Brasil com o show “Doces Bárbaros”, foram conhecer a comunidade alternativa. A turma dos Novos Baianos não ficou de fora, assim como a rainha do rock brasileiro, Rita Lee, também deu o ar de sua graça.

Manter o espírito da contracultura
Atualmente moram cerca de 50 famílias na aldeia. Aquelas terras — que já foram parte de uma fazenda e disputadas na justiça, com ganho de causa à comunidade — são protegidas e integram a Área de Preservação Ambiental (APA) do Rio Capivara. O artesanato e o turismo comunitário são as principais fontes de subsistências dos moradores.

Apesar do movimento hippie não mais existir, práticas ligadas ao discurso de origem da comunidade ainda persistem. Até 2012, o lugar não contava com luz elétrica nem água encanada. Os moradores da aldeia pouco se importam com a modernidade. A relação harmônica com a natureza, a preservação do meio ambiente e uma relação fraterna e colaborativa entre os moradores seguem sendo as concepções de vida.

Aldeia Hippie de Arempebe em foto que integra o acervo de Rivelino Martins

Para manter vivo este espirito da contracultura, os moradores realizam há 30 anos o Festival Internacional de Cultura Alternativa (FICA). A edição 2024 inicia hoje (25) e segue até domingo (28). “O festival sempre acontece na primeira lua cheia do ano. Tem o objetivo de preservar o espírito do amor ao próximo, o cuidado e a preservação da natureza”, ressalta o poeta Douglas Almeida, que integra a comissão organizadora do evento.

Douglas faz questão de ressaltar que o festival é um evento colaborativo, construído coletivamente por várias mãos: “A realização é da Associação de Moradores da Aldeia Hippie, junto com todos os moradores e artistas. Tudo feito pela própria comunidade. Hoje, recebemos uma ajuda da Prefeitura de Camaçari quanto a parte do som, o restante da estrutura é garantido de forma colaborativa”.

Os artistas que irão se apresentar nos quatro dias do FICA não receberão cachê. “Irão se apresentar por amor ao lugar”, frisa Douglas. O café da manhã e o almoço também serão coletivos. O evento contará com uma cozinha solidária, que está recebendo a contribuição dos comerciantes locais. As crianças contarão com uma programação específica, com oficinas e contação de histórias.

É desafiador construir um evento assim, com uma programação grande e colaborativa. É satisfatório porque é construído de forma coletiva, oposto do individualismo que reina na sociedade capitalista. Por isso, é fundamental recuperar e manter vivo o espirito da solidariedade, da arte, da ecologia, da contracultura. Será uma grande reunião dos não-alinhados culturais”, finaliza Douglas.

Jazz Band Kizumba é uma das atrações do 30º FICA | Foto: Divulgação

Programação
A programação da 30ª edição do FICA será realizada no Barracão (exposições), no Coreto (música e poesia) e na Escolinha da Aldeia (oficinas).

Dia 25 (quinta-feira)
– Noite: abertura oficial com Banda Tribo do Sol (reggae), Douglas de Almeida (poesia), Osmar Tolstói (cordel) e Djauá (voz e violão). O palco é livre para outros artistas.

Dia 26 (sexta-feira)
– Manhã: exposição de artesanato (artistas locais) e exposição livros do acervo Biblioteca Betty Coelho;
– Tarde: oficinas para crianças; contação de histórias com Jeane Sánchez; e poesia com Douglas de Almeida;
– Noite: Magno Estevam; Recital de poemas (Walter Cézar, Jeane Sánchez, Edilson Dias); A Dupla Relicário (Carla Vivian e Júnior Mackgyver); Ana e Naldo (MPB); Manequinha e Black (músicos artesãos); e Alvos do Sistema (rock).

Dia 27 (sábado)
– Manhã: exposição de artesanato; exposição de livros; oficinas de xilogravura (Luiz Natividade); poesia; e contação de histórias;
– Tarde: cortejo com Boi Tricotado, Poetas ao Ar Livre e Circo da Lua;
– Noite: Kebra Nagast (reggae raiz); Performance (poesia e literatura de cordel); Mariah; e Jazz Band Kizumba (Afro Jazz);

Dia 28 (domingo)
– Manhã: apresentação dos trabalhos produzidos nas oficinas;
– Tarde: Banda Irmãos Lopes & Cia. O palco é livre para outros artistas.

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Roberto Aguiar
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jornalista; morador de itapuã (salvador/bahia); torcedor do bahia; 'minha carne é de carnaval' - https://twitter.com/roberto_jornal