Temos Ficção Científica?

João Marciano Neto
Olhares de Marte
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4 min readJun 14, 2020

Uma rápida reflexão após O Último Ruivo

Imagem: série 3%

Um dos problemas frequentes do desconhecimento do brasileiro sobre a produção artística e cultural nacional é o fenômeno do falso pioneirismo toda vez que há um flerte com os gêneros ficcionais. Mesmo que isso seja notoriamente observável no cinema, a literatura é outro campo que sofre na empreitada de formar um repertório enraizado que se some ao que habitualmente importamos. Nosso exercício da ficção científica dada desde o século XIX, através de autores como Machado de Assis e Emílio Augusto Zaluar, e ainda tivemos um pico de produção durante as décadas de 1950 e 1980, contudo, relembrando nossa grande sina, essas obras sempre foram vistas como alternativas e até marginais — fazendo jus ao termo apropriado, sempre foram muito pulp. Logo, não me impressiona que muitas obras atuais ainda retenham, mesmo de forma involuntária, essa herança em suas estruturas narrativas.

Minha primeira experiência com a ficção científica brasileira contemporânea foi com Anacrônico, de Antony Magalhães, uma distopia neo-feudalista pós-apocalíptica bastante rica e bem situada geografica e socialmente. O livro me serviu de alerta para o que está sendo escrito agora ambientado aqui (dada a tendência ao estrangeirismo), como o movimento do sertãopunk, que surge da preocupação com a representação do nordeste em cenários futurísticos diante do vasto histórico de retratações preconceituosas e reducionistas da região e vem se revelando um dos expoentes responsáveis por reaquecer o meio. As discussões e as reapropriações da ficção científica como disputa por um mercado que é nosso que a nova onda tem fomentado não deixam de ser práticas pertinentes àquilo que é inerente ao gênero: criticar a época em que surge. Por mais que se tente defender o contrário, a ficção científica tem esta vocação desde seu nascimento.

Logo, quando Clayton De La Vie me convidou a ler O Último Ruivo, fui tomado por um misto de apreensão e expectativa. Usualmente evito comentar publicamente sobre trabalhos de colegas próximos, preferindo dar qualquer respaldo reservadamente, porém julgo que essa tenha sido a oportunidade para que várias de minhas opiniões amadurecessem sobre escrever ficção científica no e para o Brasil. Talvez O Último Ruivo seja um pouco explícito para meu gosto pessoal, mas não muda minha relação com sua proposta. Abraçando bem a estética de uma literatura pulp (até condizente com o cenário de autopublicação), a obra surge como fruto do encontro entre O Show de Truman e Arquitetura da Destruição e acidentalmente inaugura o biopunk no cenário nacional. Partindo da premissa de uma sociedade geneticamente controlada por um governo autoritário eugenista, o Brasil distópico de O Último Ruivo soa como a consolidação do extremismo que ascendeu no país e no mundo, onde a intolerância e perseguição não velada é abrandada discursivamente por eufemismos grosseiros.

Com um cenário palpável de distopia social e subversão sádica de discursos humanistas em prol do extermínio e do entretenimento, Clayton De La Vie oscila entre o empoderamento inclusivo e a impossibilidade de superação do estigma, deixando ambígua o posicionamento do narrador perante o protagonista enquanto avança na trama. O aparato da super vigilância ocasionada pela exposição excessiva da tecnologia e de sua dependência entra como deixa para a pauta latente do quanto permitimos que nossos preconceitos e ódios sejam construídos midiaticamente, e como a ruptura não é completa. Em certos pontos até o nível de simpatia que o narrador tenta induzir é estranha, o que em determinados momentos casa com as desconfianças que esse mundo requer.

De modo geral, O Último Ruivo reforça que, fatalmente, toda ficção especulativa sobre o Brasil tende a ser distópica justamente pela dificuldade de superar os inúmeros problemas que, como brilhantemente posto por Antony Magalhães, são verdadeiros anacronismos. Ainda que a ambientação paulista de O Último Ruivo tenha pouca interferência narrativa, a hipocrisia dos casarões e de um elitismo medíocre de autonegação identitária são transportadas didaticamente para o livro e é por essa essência que somos reapresentados à realidade local. Acredito muito no potencial das obras conscientes de que como os mitos sociais são desmanchados rapidamente nas recorrentes situações de tensão, ainda que falte um pouco mais de tato para abordá-las em comparação a nossa ficção realista. Ficção científica é uma modalidade política e reflexiva, mesmo quando é feita sem esse propósito, pois sua raison d’être é a especulação histórica e não existe especulação histórica passiva e nem imparcial. Deste modo, não considero as dicotomias em O Último Ruivo propriamente defeitos dado o contexto em que é publicada.

Como entusiasta, vou me dar ao luxo de acreditar que este atual laboratório literário pode ser capaz de tornar esses flertes em um segmento minimamente sólido no mercado nacional e formar uma geração de autores especializados, como tem ocorrido com o terror. Até lá, só nos resta aguardar um possível céu cor de televisão sintonizada num canal fora do ar.

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João Marciano Neto
Olhares de Marte

Crítico e ficcionista que escreve para esvaziar a mente agitada.