May the 4th be with you: Como deveríamos nos lembrar de Carrie Fisher

Marcos Roberto
Olho Gordo
Published in
7 min readMay 4, 2017

Quando Carrie Fisher faleceu, perdemos muito mais do que uma atriz conhecida por uma personagem icônica. Perdemos uma mulher astuta cuja capacidade de rebater críticas sobre sua aparência era ímpar, porém ignorada. E mesmo quase seis meses desde que a atriz sofreu uma parada cardíaca, pouco se fala do quanto de pressão ela teve que aturar durante toda sua vida e o quanto ela abertamente criticava isso.

Por causa de seu retorno aos novos filmes da série Star Wars, Carrie foi alvo de críticas sobre seu corpo, peso e por não ter “envelhecido bem”. A seus críticos, Carrie compartilhou uma visão libertadora sobre o próprio corpo:

“Juventude e beleza não são conquistas, eles são subprodutos temporários do tempo e do DNA. Não se incomode com nenhum deles. Meu corpo é um embrulho para o meu cérebro.”

Em poucas palavras, Carrie exalta a frivolidade do culto ao corpo. Parece loucura criticar uma coisa dessas sendo uma atriz de Hollywood, onde as pressões para manter determinada aparência são absolutamente comuns. Também não é de se estranhar que mesmo com tamanha persistência a atriz tinha problemas com imagem corporal. Mesmo quando se tem plena consciência sobre o corpo, nem sempre a autoestima está garantida. Acreditar que sua opinião sobre seu corpo é suficiente é um trabalho diário. E não é raro vermos que pessoas fora do padrão apresentem sequelas derivadas das pressões que sofrem.

Carrie, por exemplo, já admitiu não gostar de se ver no espelho e revelou ter dismorfia corporal, um transtorno mental causado por uma preocupação extrema com a aparência a ponto de fazer com que o indivíduo não se enxergue como realmente é. E este não era o único problema que ela enfrentava. Carrie sofria também com transtorno bipolar, outro problema do qual ela não se acanhava em comentar.

“Eu sou o que as pesquisas psicológicas chamam de louca de pedra. Uma mistura de bipolaridade possível de controlar graças ao uso de medicamentos pesados e um caso incurável de “eu não me importo”. Infelizmente, para uma mulher, os efeitos colaterais disto incluem menos oportunidades de trabalho, ligações desesperadas de seu agente e uma dificuldade tremenda de emagrecer para agradar um executivo de 35 anos cuja mais profunda fantasia e o pior pesadelo incluem eu em um biquíni dourado.”

Sabermos disso é importante porque muita gente tende a pensar que uma pessoa só é gorda porque come “demais” (e mesmo que comesse, qual o problema? Comer é satisfatório), quando na verdade há diversos fatores que podem estar relacionados com o ganho de peso.

No caso de Carrie, um dos fatores influenciadores eram as medicações que tomava, cujos efeitos incluíam a retenção de líquidos, fazendo com que ela inchasse. Mas a própria atriz compreendia que esse era um efeito mínimo para poder ter uma noite de sono melhor. Infelizmente, isso nunca a impediu de sofrer abuso e assédio por causa de sua aparência.

Esses tipos de pressão são tidos como comuns por muita gente. E de fato foi sempre assim na vida da atriz. Quando começou sua carreira em Star Wars, Carrie, na época com 19 anos, precisou emagrecer para garantir o papel da Princesa Leia. Sendo uma atriz iniciante, ter que acatar as exigências dos estúdios é comum no ramo, podendo custar o papel ou até mesmo a chance de ter uma carreira de quem não o faz.

Então, o que faria Carrie voltar a um papel e uma indústria que basicamente a maltrata? O simples fato de atrizes da idade de Carrie simplesmente não são chamadas para trabalhar em grandes produções. E ela deixou isso bem claro em uma entrevista a um programa de televisão quando perguntada se foi preciso ser convencida para voltar ao papel:

“Eu sou uma mulher em Hollywood com mais de 50 anos. Você não precisa convencer uma mulher a trabalhar com essa idade. Você vai entender isso um dia.”

Não é pela saúde.

Para conseguir emagrecer, foi necessário que a atriz passasse um período em um acampamento específico para emagrecimento e é importante discutirmos o quanto isso é problemático. Uma pesquisa realizada pelo Jornal Internacional da Obesidade acompanhou um grupo de sete mil homens e mulheres com média de 65 anos e verificou que o risco de morte era maior dentre aqueles que perderam cerca de 15% de peso contra quem perdeu 5% do peso. A mesma pesquisa conferiu que o risco era maior em mulheres do que em homens.

Este estudo colabora diretamente com uma outra pesquisa (já mostrada por aqui) que indica que pessoas gordas possuem chances melhores de se recuperarem de diversos problemas de saúde, incluindo ataques cardíacos. É normal o ganho de peso à medida em que se envelhece e cada vez mais pesquisas têm mostrado que isso significa uma forma natural de tornar homens e mulheres idosos mais resistentes a qualquer problema de saúde que eles possam vir a ter.

Além disso, perder peso forçadamente traz consigo alguns outros problemas. Já está mais do que provado que a grande maioria das pessoas recupera o peso perdido e esse efeito sanfona fragiliza o corpo e a saúde, segundo pesquisa do The New England Journal of Medicine. É válido ressaltar que engordar após um processo de emagrecimento não é culpa de quem emagrece. É apenas uma resposta clara do corpo que tende a ser ignorada pela grande maioria das pessoas porque nossa sociedade sempre prioriza estética em detrimento da saúde.

“Eles sempre pedem (para emagrecer). Eles querem contratar apenas uma parte de mim, não tudo. Eles querem contratar apenas três quartos de mim, então eu precisei me livrar de um quarto.”

Dois pesos, duas medidas.

Talvez alguém possa querer argumentar, como uma forma de naturalizar o que tenha acontecido com Carrie, que Mark Hamill também foi aconselhado a perder peso para o papel. Isso é verdade, porém tal argumentação ignora completamente as diferenças de como homens e mulheres lidam com o peso e sofrem pressão para manterem determinada aparência dentro ou fora da indústria do cinema. Mark Hamill raramente se viu criticado pelo peso que tem ou por ser velho, enquanto Carrie continuou sendo criticada mesmo quando o assunto não estava diretamente relacionado a ela.

No dia 21 de dezembro, apenas alguns dias antes de sofrer uma parada cardíaca, Carrie postou uma resposta a uma matéria do jornal The Independent que a criticava por não ter sido capaz de fazer a captura de movimentos para a versão computadorizada da Princesa Leia que apareceria em Rogue One.

“Seu corpo está em decadência e a morte está cada vez mais perto? As areias do tempo são tão cruéis que elas deveriam ser presas? Use computação gráfica, um pouco de perspectiva e lide com isso”.

A matéria culpa Carrie por ter envelhecido, não ter mantido um físico semelhante ao que tinha aos 19 (!!!) e não ter sido capaz de fazer um trabalho pelo qual ela não tinha sido nem ao menos considerada. É por isso que o recente vídeo de tributo a Carrie, divulgado durante o Star Wars Celebration, não deixa de soar hipócrita por parte da produção dos filmes.

J.J. Abrams, diretor da nova trilogia de filmes, comentou que o falecimento de Carrie era injusto. Infelizmente, é quase nula a probabilidade do diretor ou qualquer outro profissional envolvido nos filmes terem parado para pensar que eles são, em partes, responsáveis pelo destino de Carrie ao terem posto a aparência dela acima da preservação da atriz.

O melhor jeito de honrarem Carrie não é apenas com um vídeo de memórias, mas abolindo a necessidade de forçar atrizes a terem que emagrecer. Este é um jeito de mostrar que Carrie foi ouvida, porque não foram poucas as oportunidades das quais Carrie aproveitou para criticar a necessidade de emagrecer para o papel.

É por isso que falamos que a preocupação das pessoas com o peso nada tem a ver com saúde, mas com uma forma socialmente aceita de assédio moral. Porque desde sempre pessoas gordas são forçadas a emagrecer a qualquer custo (incluindo o da própria saúde) para fins meramente estéticos, enquanto nossos lamentos são tratados como desimportantes até que tenhamos dado um jeito no peso.

Carrie é um bom exemplo desta situação porque a atriz sempre foi transparente sobre seus problemas pessoais, incluindo uso de drogas e alcoolismo que, junto com a misoginia e a gordofobia que sofria, tornou sua saúde mais frágil. Se a produção dos filmes ignorou tudo isso e mesmo assim pediu para que ela emagrecesse, eles ignoraram a saúde dela e são responsáveis por debilita-la.

Quatro de maio é o dia em que fãs de Star Wars celebram a série de filmes. O Olho Gordo gostaria de aproveitar a oportunidade e pedir para olharmos para o que aconteceu com Carrie Fisher e entender o quão cruel podem ser as empresas e as pessoas no tratamento de mulheres, velhas, gordas e com transtornos mentais.

Também gostaríamos de aproveitar a oportunidade para nos inspirarmos na astúcia de Carrie em dar voz à sua indignação ao responder a críticas cruéis com acidez, precisão e deboche. Mais do que uma personagem icônica, Carrie deixou um legado de luta, rebeldia e resistência. E por essas coisas ela também deve ser lembrada.

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