Miss Universo Gordofóbico

Marcos Roberto
Olho Gordo
Published in
5 min readFeb 7, 2017

Problematizar o Miss Universo parece ser contra produtivo. O concurso que em toda a sua história elegeu como representante da beleza mundial (como se houvesse apenas uma beleza) uma maioria de mulheres brancas e de traços europeus não parece uma boa fonte para discussões sobre a diversidade da beleza da mulher. É justamente através do Miss Universo que podemos comentar sobre uma ideia muito complexa e pouco refletida: o conceito de gorda.

A representante do Canadá, Siera Bearchell, sofreu críticas por parte dos jornalistas que cobriam o evento e dos comentarias da TV Bandeirantes. O motivo? Ela seria supostamente gorda. É desnecessário nos aprofundarmos no quão desrespeitoso e desclassificado foram esses comentários. Se por um lado é desesperador ver que uma mulher magra sofre críticas ferrenhas sobre seu físico, por outro, ver a reação contrária de diversos veículos midiáticos, internet e da própria Siera traz um pouco de consolo por ver que as discussões sobre a gordofobia avançaram um pouco.

Essa situação nos faz por em perspectiva o quanto mulheres com corpos normais sofrem pressão para serem muito mais magras e revela a pouco abordada faceta maléfica da cultura da magreza. Pra uma cultura que clama se preocupar com a saúde, a incessante pressão sobre corpos gordos e magros torna a nossa saúde física e mental debilitada graças a distorção e a obsessão pela magreza.

O resultado disto se dá não só na corrida por métodos rápidos para emagrecer, na tentativa de cessar as críticas, como também na destruição da autoestima, que se manifesta na anorexia e na dismorfia.

“Definir quem sou por causa do meu corpo mostra o quão inadequada é a sociedade”

Um raio-x do preconceito

Ao analisarmos os comentários feitos pelos apresentadores da TV Bandeirantes, fica fácil expor diversos problemas gerados pela gordofobia.

“Ela deve estar lá para cumpri uma cota” — Cassio Reis

Nesta primeira frase, temos dois preconceitos. O primeiro deles não é tão relacionado ao físico de Siera, mas é um deboche às cotas em si. Colocado desta forma, cota se torna um sinônimo de pena, uma ajuda a alguém incapaz de alcançar sozinho algum objetivo. Cota é mais sério do que isso. Cotas são um instrumento de auxílio na reparação de dívidas histórias que a sociedade têm com determinados grupos sociais. No caso de Siera, a representante do Canadá ficou entre as nove selecionadas no concurso, estando a frente da candidata do Brasil. Siera chegou a esta posição sozinha, enfrentando críticas de mentes desatualizadas, mas elogiada pelos jurados de um concurso que tenta se pluralizar, embora dentro de um cercadinho padronizado. Dizer que sua participação no concurso se deve a uma espécie de cotas é diminuir seus méritos por ser uma mulher com físico normal.

“Ela não está no padrão de uma Miss Universo” — Raphael Mendonça e Renata Fan

Esta frase foi dita algumas vezes em diferentes contextos. Analisando a frase isoladamente, vemos que o padrão de Miss Universo — na opinião desses comentaristas — significa ser muito magra. Ver que dentre as selecionadas está uma variedade de mulheres de belezas diferentes e, mesmo assim, não entender que o conceito de beleza se pluraliza com o passar dos anos coloca em xeque a credencial do trio de comentaristas que foram escalados para acompanhar o evento. Mas em se tratando de TV aberta, a qualificação dos comentaristas escolhidos não deve ter sido o item de maior peso.

Ainda neste mesmo comentário, nada é mais embaraçoso do que ver Renata Fan acompanhar o raciocínio preconceituoso quando ela tem em seu currículo um título de Miss Brasil, em 1999. Atualmente, é possível dizer que Renata tem o mesmo físico de Siera. Isso poderia significar que a apresentadora não poderia mais ser Miss. Enquanto a linha de pensamento de Renata diz que sim, o trabalho de Siera diz que não.

“Gordo não pode usar top cropped” — Raphael Mendonça

Sabe aquela história de corpo do verão, que diz que precisamos ser magros para poder ir à praia? Este comentário é semelhante. Pessoas magras tendem a querer nos dizer o que vestir e onde ir baseado em um poder imaginário que possuem por fazerem parte do padrão. Nossas opções de vestuário já são limitadas graças ao fato de sermos ignorados pela indústria da moda. E quando alguma marca se lembra de nós, é por pura demagogia, ou para nos cobrar mais caro em uma mesma peça que uma pessoa magra leva pra casa por menos. Se para ter um corpo do verão basta ter um corpo, para usar um top cropped basta comprar um que nos caiba. Sem limites ou imposições.

A modelo Tess Holiday não deixa dúvidas que não há restrição sobre o que vestir.

Mas afinal, o que é ser gordo?

Esta parece ser uma pergunta muito simples de responder. Mas toda essa situação envolvendo Siera Bearchell nos prova o contrário. É preciso separar algumas coisas se quisermos deixar o conceito do que é ser gordo bem claro. Não é possível usar quantificações para definir o que é uma pessoa gorda.

Não conseguimos definir o que é ser gordo se usarmos o peso de alguém, já que diversas pessoas podem pesar 130 quilos ou mais e terem corpos totalmente diferentes. Da mesma forma, não podemos usar o tamanho das roupas, nem mesmo o índice de massa corpórea, já que este é um quantificador não confiável.

É mais fácil para concebermos o que é uma pessoa gorda quando pensamos que gordo é todo aquele que possui um corpo visivelmente maior do que o padrão estipulado pela sociedade devido ao acúmulo de gordura no corpo (inspirado nesta conversa).

Com esta definição, podemos ver que Siera não é gorda, mas sofreu preconceito porque a gordofobia se trata da aversão à ideia, possibilidade ou manifestação física de um corpo gordo. É por isso que o simples fato de uma mulher “fora dos padrões” como Siera atiça o preconceito contra gordos, seja ele na forma de opiniões mal formadas, falta de empatia ou puro deboche.

Mas esse tipo de preconceito não acontece apenas na tela da TV. Em nosso círculo de amizades não é raro ouvirmos pessoas magras fazerem comentários depreciativos sobre si mesmos dizendo que estão obesos porque engordaram um quilo. Exageros desse tipo mostram o quão enraizados está o preconceito que, mesmo sem intenção, propaga entre as pessoas sem ser notado.

Ter ciência que engordar é apenas a constatação de um fato sobre seu físico e não uma declaração sobre decadência ainda é uma percepção muito distante para essas pessoas. É por isso que muito antes de conversamos sobre a saúde de nossos corpos, precisamos antes conversar sobre a visão doentia sobre a magreza. Obsessão essa que faz com que empresas lucrem muito com a destruição da nossa autoestima, debilite nossas saúde com dietas restritivas que pouco consideram as necessidades individuais de cada corpo, estraçalhem nosso psicológico quando nos excluem ditam o que podemos ou não podemos fazer…

Uma pessoa gorda não tem problemas de saúde causadas pelo acúmulo de gordura em seu corpo, mas uma pessoa gorda adoece por viver em uma sociedade que tenta a todo o custo nos caracterizar como doença. Gordofobia não é tanto sobre a grandeza de nossos corpos quanto é sobre a pequenez de suas mentes.

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