Hábitos que chacoalham

Quais pequenas mudanças, facilmente introduzidas em nossa rotina, podem detonar uma série de desdobramentos até melhorar a qualidade de nossa vida como um todo?

Eduardo Amuri
o lugar (blog aberto)
4 min readMar 31, 2017

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Temos bem menos autonomia do que acreditamos ter. Passamos uma parte imensa do nosso tempo respondendo de maneira automática à quantidade colossal de estímulos que recebemos. As vezes tenho a impressão de que eu responderia “Tudo bem, e você?”, mesmo se estivesse na mais profunda das depressões.

Em paralelo a essa dualidade entre grãos de racionalidade e montanhas de movimentos reativos, estão algumas ações que tomamos sem depender de gatilhos racionais: são nossos hábitos. Dificilmente alguém diria “Ah! Já sei! Vou escovar os dentes!” momentos antes de dormir. Escovamos mesmo quando a sacada não surge.

O desgaste emocional e racional relacionado aos nossos hábitos é quase zero. Por conta dessa peculiaridade, nossos hábitos podem ser ferramentas incrivelmente poderosas para estimular mudanças em nossas vidas.

A história da Alcoa

Recentemente, li um pouco sobre a gestão de Paul O’Neil na Alcoa, a maior produtora de alumínio do mundo. Quando ele assumiu, em 1987, a empresa enfrentava uma crise grave. No seu primeiro pronunciamento, na frente de dezenas de investidores milionários e descontentes com o desempenho da empresa, ao invés de falar sobre perspectivas de lucro, margens e índices econômicos, ele abordou a segurança no ambiente de trabalho.

O discurso é bonito, mas segurança não enche o bolso de ninguém. Ele prosseguiu indicando quais eram as saídas de emergência daquele salão de reunião. Não falou nada sobre porcentagens, soluções, nada. Todos acharam que era alguma piada de mau gosto. No fim da reunião, um dos participantes disse: “A diretoria pôs um hippie maluco no comando. Ele vai afundar a empresa”. Menos de um ano depois, os lucros da Alcoa atingiram uma alta recorde.

O’Neil sabia que não dá para mandar as pessoas mudarem. Nossa mente não funciona assim.

Trecho do livro O poder do hábito, de Charles Duhigg:

“O’Neill acreditava que o segredo para proteger os funcionários da Alcoa era entender por que os acidentes aconteciam em primeiro lugar. E para entender por que os acidentes aconteciam era preciso estudar como o processo de fabricação estava dando errado. Para entender como as coisas estavam dando errado, era preciso contratar pessoas que pudessem educar os funcionários sobre controle de qualidade e os processos de trabalho mais eficientes, para que fosse mais fácil fazer tudo do jeito certo, já que um trabalho correto também é um trabalho mais seguro.

Em outras palavras, para proteger os funcionários, a Alcoa precisava se tornar a melhor e mais eficiente empresa de alumínio da Terra.”

A regra era que todo acidente precisava ser comunicado em menos de 24 horas.

“Para contatar O’Neill dentro de 24 horas após um acidente, os presidentes de unidade precisavam ficar sabendo do acidente, por intermédio de seus vice-presidentes, assim que ele ocorresse. Por isso os vice-presidentes precisavam estar em contato constante com os supervisores. E os supervisores precisavam fazer com que os funcionários dessem avisos logo que detectassem um problema, e deixassem por perto uma lista de sugestões, para que, quando o vice-presidente pedisse um plano, já houvesse uma caixa de ideias cheia de possibilidades.

Para fazer tudo isso acontecer, cada unidade precisava criar um novo sistema de comunicação que facilitasse ao funcionário de cargo mais inferior levar uma ideia ao executivo do mais alto escalão, o mais rápido possível.

Quase tudo na rígida hierarquia da empresa precisou mudar para se adequar ao programa de segurança de O’Neill.”

É o que o autor chama de “keystone habits”. Esses hábitos dão início a um processo que, ao longo do tempo, chacoalha tudo.

Foto de Martins Zemlickis

Correr é mais do que correr: alguns hábitos configuram mundos

Não existe uma lista pré-definida e infalível dos hábitos que impulsionam esses desdobramentos. Alguns hábitos, entretanto, têm um potencial muito maior que outros. Correr é um deles.

Começa com um estímulo brando seguido de uma recompensa pequena. No começo, corremos para sentir o corpo soterrado de endorfina, pulsando. Em seguida, torna-se natural surgir o interesse pelo aspecto técnico. Atentamos para nossa respiração, cronometramos nosso tempo, analisamos a distância percorrida. Nos observamos. Começamos a buscar algum tipo de superação e o pacote de recompensa cresce. Agora, além do pacote de endorfina, buscamos uma espécie de sensação de missão cumprida.

Refinamos a auto-observação, começamos a perceber em qual período do dia estamos mais dispostos, quais fatores físicos e emocionais afetam nosso desempenho e qual o tamanho do monstro que vive na nossa cabeça e que sussurra de maneira sedutora desculpas criativas para pular o treino: “Só hoje não tem problema”.

É um universo tão grande e rico que de repente faz sentido se inscrever numa corrida de rua. A semana, que antes era uma semana comum, passa a ser a semana que vai ter corrida. Nada mais justo do que tentar ajeitar a alimentação para estar 100% no dia da corrida. Com a alimentação equilibrada, fica mais fácil treinar bem.

Nos dias em que você dorme mal, o treino é ruim. Então ajeitar o sono não parece algo tão descabido. O medo de naufragar sua vida social por conta de abortar uma ida ao bar começa a não fazer tanto sentido. Na verdade, fica cada vez mais evidente que a qualidade da nossa vida social e das nossas relações tem pouquíssima relação com a quantidade de compromissos que assumimos.

Aquela corridinha, que antes era só uma geradora de endorfina, mudou a maneira como você enxerga sua rotina, sua alimentação, seu descanso e sua vida social.

Não temos capacidade de prever todos os desdobramentos das nossas ações. Então, ao invés de atacar uma lista minuciosa e extensa, cheia de detalhes, é melhor focar em pequenas mudanças e utilizá-las como alavanca para que os grandes movimentos — as verdadeiras transformações — tenham espaço para acontecer.

Documentário do People of Change sobre o projeto Vida Corrida, criado por Marineide dos Santos Silva, em 1999, na região de Capão Redondo — SP

Quer colocar isso em prática? Participe→

olugar.org/participe

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Eduardo Amuri
o lugar (blog aberto)

Se interessa pela relação do homem com o dinheiro e tenta entender como o potencial financeiro pode ser utilizado para transformar vidas. www.amuri.com.br