Letícia

Você.

Jean Prestes
Onirika
2 min readJul 21, 2021

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Photo by Mason Kimbarovsky on Unsplash

Me vi. A vida inteira me vi. Me vi sendo adestrada, feito uma cachorrinha, pelos caminhos que me apontavam. Por aqui, por ali. Aceitei as pequenas recompensas supérfluas que me eram ofertadas, biscoitinhos para cada escolha corretamente sintonizada com o que era esperado de mim. Uma lady recatada. Uma persona que, de tão recorrente, me fez plástica. Uma boneca sem vida, cujo sorriso está tão matematicamente calculado que até algoritmos já devem ter aprendido a sorrir mais espontaneamente. A vida toda me vi, e só isso. Me vi sendo feita, artificialmente, pelos outros. Obedeci.

Talvez pela falta de escape externo, a energia se acumulou aqui, dentro de mim. Aqui ninguém sabe o que estou fazendo. Se estou com a roupa adequada, as pernas bem fechadas, o sorriso amostrado mas não demais. Aqui dentro não há regra, e disso ninguém sabe, só eu. Meu mundo interior inteiro é uma só massa de modelar caótica. Aqui, na bagunça da imprevisibilidade, me sinto segura. Ninguém quer nada de mim e tudo pode ser. Mas, ao mesmo tempo, nada é. É mais real do que meu jeito ensaiado de andar e as palavras bem escolhidas que ofereço às expectativas de quem conversa comigo. Mas, ainda assim, não é real. Não forma um desenho duradouro, uma emoção boa e perene, uma estátua ou outra construção. Tudo que forma, quando forma, logo desforma para formar outra coisa. Não há estabilidade.

Sinto um desejo estranho de ver a casca da minha pele despida. A armadura da minha persona destruída. Alguém que me faça sangrar e que pelo sangue meu mundo interior possa derramar para fora. Estou cansada dessa casca. Sinto um desejo de ver minha pele rasgada, mordida, batida, cuspida, mijada. Tudo de errado que possa curar o excesso de certo. E que no meio do olho do furacão da destruição de mim mesma, um beijo de amor aconteça. Uma língua acaricie a minha. Uma mão segure nas minhas costas — se ela ainda existir. Uma voz, calma, de um homem doce, me dizendo tranquilo:

— Vai ficar tudo bem.

Enquanto me mata.

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Jean Prestes
Onirika
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Produzo conteúdo para humanos, não para algoritmos.