O vazio é preliminar a qualquer coisa

Só depois vem o silêncio.

Jean Prestes
Onirika
4 min readFeb 15, 2021

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E então, a presença. A presença para si, em primeiro. Só depois a presença de um outro. O nascer na consciência de uma forma. Pixels coloridos excitantes da visão. A forma, a pele, as cores, os contrastes. O mistério que o olhar transmite. A expressão neutra e perdida, denunciada por lábios entreabertos. O pensamento tentando entender o que não se entende, numa fração de segundo. O vazio é preliminar a tudo. Sem vazio e silêncio, não há amor.

Quando a conexão acontece num nível sutil, subjetivo, invisível, tudo fica tão imaginário a ponto de qualquer palavra se tornar profundamente artificial. Oi, tudo bem? Te vi e tive vontade de falar contigo, para não deixar escapar o momento, tipo naquela cena de Waking Life em que eles se trombam e logo depois o protagonista fala sobre um momento de lucidez onírica. Sonhar sabendo que se está num sonho. Se pudéssemos viver assim — e talvez possamos — perguntaria com mais frequência qual é a sensação de se estar na vida, para não chamar de sonho. Como é para você, ser, na minha perspectiva, um personagem no meu mundo? Cotidianamente me aparecem milhares de estímulos, milhares de formas, sons, vidas. Mas, com você tive vontade de interagir. Quem é você? Como você funciona? Será compromissada com a transparência ou ainda busca performar uma beleza idealizada e dual? Por que fez fluir novos hormônios em mim? (Essa eu teria que perguntar para Deus). O que em mim você veio mostrar?

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O silêncio é preliminar a tudo, menos ao vazio. E quando vem a palavra, há que se saber usá-la. Porque “início” é preliminar a “primeiro”. A maneira como a língua se esconde atrás dos dentes em “ní” e é banhada pelo sopro do “cio” combina mais com as fagulhas iniciais do que as inúmeras vibrações da sílabas em “primeiro”, mais adequadas para tremores que aumentem um calor que já existe. E antes de sentir o gole gelado da sua saliva, me apraz mais as sensações visuais e outras mais sutis da sua presença. A maneira como o corpo se move no salão da consciência, para lá e para cá. Pernas firmes, braços soltos. Mente dispersa. Pensamentos inexistentes. A espontaneidade como motor. Não há beijo sem espontaneidade. Sem espontaneidade não há sequer encontro. No máximo, palavras ditas por convenções sociais, uma compaixão que evita o constrangimento da indiferença ao que é falso e ensaiado.

Exigir espontaneidade é, em verdade, o máximo da não-exigência que se pode haver. Exigir espontaneidade é exigir que nada seja colocado sobre o natural. Quando acaba a espontaneidade é que se inicia o cruel espetáculo das exigências. E esse não é um momento sobre espetáculos, pois não é um momento sobre o que eu não quero e o que eu não gosto. Esse é o momento que constrói o fogo só de olhar, fogo só de existir, e isso é raro. Eu não sei de onde surge o fogo, mas isso não é sobre saber. É sobre desistir. Cair no instante e descobrir o que o instante quer. O instante, despido de expectativa que por natureza é, sempre surpreende. E, por mais que não se saiba a origem do fogo, ele sempre vem de uma surpresa. O que será que será quando a gente deixar? Pode ser mais vazio, pois o vazio é preliminar a tudo. Pode ser um leve esbarrar. Da minha anca na sua. Pode ser que a gente se derrube, e seja engraçado e leve, como a vida. Pode ser que, por algum desconhecido motivo, a gente se afaste. Ou, mais difícil ainda, um só afaste o outro que não queria ser afastado. Mas o não-querer é não-espontâneo e é preciso aprender a se dançar sozinho. Pois quando a minha mão sobe pelo meu pescoço e me excita, são dois que dançam: mão e pescoço. E quando nossos corpos dançam juntos, são três, são quatro, são uma orgia inteira. De células, de nervos, de tempestades elétricas. E tempestades são incontroláveis, e você bem sabe disso.

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Uso demasiados “E”s nas minhas escritas, e não quero mudar. Isso é soma. E se as frases se somam umas às outras, não quero ocultar aquilo que é o principal responsável por essa união. “E”. Um acento agudo e se torna ação única do ser. “É”. É o ser sendo. E tudo pode acabar num dormir. Ou num descansar consciente, enquanto minhas costas e minha bunda sentem o contato dos teus seios e dos teus pelos. Porque a espontaneidade pode ser clichê e terminar numa conchinha invertida. E no amanhecer, quando você acordar, só então eu vou querer dormir. Porque eu amo dormir sozinho.

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Jean Prestes
Onirika

Produzo conteúdo para humanos, não para algoritmos.