Os desvios na jornada do usuário

Eric Platas
OPANehtech
Published in
8 min readSep 30, 2022
Foto de um céu estrelado visto da cobertura de um prédio com rastros de luzes se cruzando em espiral.

Desenhar um produto não é fácil. Existem muitos aspectos a se considerar, como viabilidade, expectativas de negócio, opinião dos stakeholders, usabilidade, acessibilidade, roadmap, etc. Daria pra escrever uma série de artigos apenas elencando aspectos da construção de produtos, mas existe um aspecto que eu escolhi destacar agora por sua importância (e muitas vezes negligenciada), a famigerada jornada do usuário.

Recentemente tive uma experiência ruim em uma compra online que me fez refletir sobre a importância de mapear toda a jornada.

“Todo mundo que trabalha com produtos está criando experiências. A questão é se estamos criando experiências boas ou ruins.”

O que é a jornada do usuário?

A maioria dos designers já deve ter visto o famoso vídeo do Tim Brown demonstrando como a IDEO observou pessoas em mercados para desenvolver um carrinho de compras melhorado. Um clássico! Se você não viu, acesse esse link e confira o vídeo que resume o que é Design Thinking.

O que Tim Brown e companhia estavam fazendo nos mercados era mapear a jornada do usuário, identificando como um carrinho de compras entrega valor e quais dores os usuários têm ao usá-los. A lógica por trás disso é simples: aperfeiçoar o que gera valor e solucionar o que causa dor.

Como é possível ver no vídeo, o carrinho de compras foi projetado tendo em mente um caso de uso específico: ser empurrado e manobrar pelos corredores de um mercado, carregado de produtos. Esse caso de uso é conhecido como caminho feliz.

Porém existem diversos outros cenários, previstos e imprevistos, que o time da IDEO identificou nas lojas, como carregar crianças de colo ou guardar os carrinhos enfileirados. Esses cenários são chamados de fluxos de exceção, cenários de erro, edge cases, entre outros nomes.

O caminho feliz

Mão derrubando o primeiro dominó em uma fileira de dominós, iniciando uma reação em cadeia que derruba todos dominós em sequência.
Photo by Bradyn Trollip on Unsplash

A jornada do usuário é dividida em múltiplas tarefas que o usuário realiza. Ao realizar uma tarefa, os usuários podem seguir um ou mais caminhos, sendo que o caminho principal é o famoso “caminho feliz” (happy path para os poliglotas), também conhecido como fluxo principal ou caso de uso primário para os mais técnicos.

O caminho feliz descreve o caminho ideal que nós imaginamos que o usuário deve seguir para cumprir uma tarefa.

Por exemplo, para fazer uma compra pela internet, o cliente deve:

  1. Navegar pelas categorias;
  2. Adicionar produtos ao carrinho de compras;
  3. Fazer log-in;
  4. Definir o endereço de entrega;
  5. Selecionar a forma de pagamento;
  6. Revisar e concluir a compra.

Os desvios

Toda jornada de usuário tem pontos de ganhos, mas também tem dores. Problemas técnicos, tarefas repetitivas ou enfadonhas, restrições, exceções… Alguns desses pontos são conhecidos e esperados, outros são descobertos ao longo da jornada, geralmente pelos times de atendimento, sustentação, tecnologia ou outros stakeholders mais técnicos (jurídico, operações, financeiro, etc).

Foto de uma pista projetada para os pedestres andarem em um parque, com um atalho criado pelos pedestres, cortando caminho pelo meio do gramado.
Foto de uma pista projetada para os pedestres andarem em um parque, com um atalho criado pelos pedestres, cortando caminho pelo meio do gramado.

Nem sempre o usuário faz o que a gente espera. Voltando ao exemplo da compra online, o cliente pode seguir muitos caminhos diferentes do “caminho feliz”. Por exemplo:

  1. Buscar por produtos que não encontrou pelo menu;
  2. Encontrar produtos fora de estoque;
  3. Deixar os produtos salvos no carrinho de compras para comprar depois;
  4. Esquecer a senha de log-in;
  5. Querer comprar sem se autenticar;
  6. Descobrir que a loja não entrega no seu endereço;
  7. Procurar produtos que ofereçam frete grátis;
  8. Querer uma entrega mais rápida;
  9. Querer pagar com mais de um cartão de crédito;
  10. Ter o cartão de crédito recusado;
  11. Tentar incluir cupons de desconto;
  12. Perceber que o valor final da compra é maior do que esperava, etc.

Esses cenários alternativos costumam aparecer como quebras de funil de conversão, mas muitas vezes não fica claro o que realmente está acontecendo quando o usuário não segue o caminho feliz.

Uma tortuosa jornada de compra

Falando em compra pela internet… há alguns meses eu comprei um par de mesas de cabeceira em uma grande loja de móveis e decoração. Fiquei muito feliz ao ver que a loja dava a opção de entrega rápida por apenas mais 2 reais, então não foi uma escolha muito difícil de se fazer.

O produto chegou dentro do prazo e eu passei o dia todo ansioso, esperando terminar o expediente para poder montar meus brinquedos novos. No fim do dia eu e minha esposa abrimos as caixas com o entusiasmo de dois youtubers fazendo um unboxing e demoramos um tempo para perceber que algo estava errado.

Primeiro minha esposa observou que a mesinha parecia menor do que nas fotos do site. Depois começamos a achar peças que não deveriam estar ali e outras com formatos diferentes do modelo que escolhemos. Só quando resolvemos conferir o manual ficou claro que o modelo era diferente do que havíamos comprado. Embalamos tudo de novo com a frustração de uma criança que comeu todos os legumes, mas não ganhou sobremesa.

Entramos em contato com a loja para pedir a troca e ficou claro que a loja não olhou para o processo de troca com o mesmo cuidado que teve com o fluxo de compra. Primeiro, tivemos que pedir a troca de cada mesa separadamente, apesar de termos comprado tudo junto. Cada pedido de troca foi analisado por pessoas diferentes, sendo que uma pessoa reconheceu o erro e outra disse que precisava de mais evidências do que apenas as fotos das peças que não batiam com o modelo comprado (as mesmas fotos nos dois pedidos de troca).

Após confirmar o erro, a empresa mandou uma equipe buscar os móveis errados e deixou um recibo da retirada. Após retirarem os produtos errados, deram mais uma semana para entregar os corretos. Nesse processo, a entrega que devia demorar de dois a quatro dias demorou mais de um mês.

Isso tudo me faz pensar se existe um mapa da jornada do usuário colado na parede dessa grande loja de móveis descrevendo os casos de uso de erro durante a entrega dos produtos.

Personagem de série de TV demonstrando conexões absurdas de uma teoria da conspiração

Sendo racional, acredito que não, mas não descarto a possibilidade de alguém ter se dado ao trabalho de identificar os pontos de dores do usuário apenas para serem despriorizados no roadmap do produto.

Distanciamento da realidade do usuário

Sei que o caso que descrevi acima é uma exceção, mas acredito que eu não seja o único cliente a enfrentar esse problema. Esta é apenas uma evidência de um problema maior: o distanciamento entre os times de produtos e os consumidores desses produtos.

“As pessoas ignoram o design que ignora as pessoas.”

— Frank Chimero

As empresas têm focado muito nas jornadas de aquisição de produtos, mas não percebem que a percepção de valor se dá a partir do primeiro contato do cliente com o produto.

Em seu livro “A hora da verdade”, Jan Carlzon debate sobre a importância de garantir que tudo corra bem no primeiro contato de um cliente com seu produto. Ele chama de momentos da verdade ou MOTs (Momentos of True) os contatos que os consumidores têm com um produto/serviço e que determinam sua opinião sobre o mesmo.

Para ele existem 3 momentos na experiência de consumo:

Imagem ilustrando a sequência de ações conhecidas como momentos da verdade: Estímulo; 1º momento da verdade (prateleira); 2º momento da verdade (experiência de uso).
  1. Estímulo: o que desperta o interesse por determinado produto. Pode ser uma propaganda, a recomendação de algum conhecido ou apenas um passeio pelo shopping;
  2. Primeiro momento da verdade: o primeiro contato do consumidor com seu produto. Pode ser na prateleira do mercado, na loja de aplicativos do seu celular ou uma landing page;
  3. Segundo momento da verdade: quando o usuário testa ou usa seu produto e tem a experiência de consumo.

Um ponto em que Jan foca bastante é no segundo MOT, da experiência. Ele dedica um capítulo inteiro a descrever a importância de uma empresa ser versátil para lidar com desvios no “caminho feliz” do cliente para proporcionar experiências surpreendentes.

Jan conta um exemplo de uma companhia aérea Sueca que ele presidiu, que tinha como diferencial prestar um serviço mais personalizado para executivos. Em uma ocasião, um executivo estava atrasado para seu voo, mas esqueceu o cartão de embarque em seu hotel. Ao informar o caso à atendente da companhia, esta rapidamente acionou o hotel e pediu que deixassem o cartão de embarque deste executivo na recepção, pois ela já havia enviado um motorista para buscá-lo. O executivo conseguiu pegar seu voo a tempo e teve uma experiência além de suas expectativas.

Essa solução só foi possível pela união de três fatores chave: o conhecimento, capacidade de decisão e o tempo hábil. O presidente da empresa não tinha como ficar a par de toda a situação e tomar uma decisão a tempo de resolver o problema. Nesse caso, o problema foi contornado dando alçadas de decisão para as pessoas com o conhecimento e a habilidade de resolver os problemas.

Jan Carlzon defende uma nova organização das empresas, onde os gestores dividam responsabilidades de decisões com seus liderados, a fim de criar mais soluções, com mais criatividade, agilidade e inteligência.

Trazendo para nossa realidade, é papel do time de UX observar e mapear todos os cenários em pesquisas com os usuários para medir e respaldar o impacto deles na experiência do usuário. Ignorar esses cenários significa que você não poderá defender o usuário durante a definição do roadmap do produto, arriscando deixar esses cenários esquecidos no backlog.

Obs.: Mais tarde o Google bagunçou um pouco as coisas e propôs um momento zero da verdade (ZMOT), para descrever as pesquisas que as pessoas fazem na internet antes mesmo de ir para uma loja.

Dê um passo atrás para ver o todo

Par de binóculos posicionados à beira de um mirante alto. Ao fundo uma paisagem de um grande vale com florestas e rios.
Photo by Gary Yost on Unsplash

É muito fácil entender porquê os gestores tendem a priorizar fluxos felizes em suas análises. É muito fácil identificar o valor dessas entregas, mas como já discutimos antes, existem muitos caminhos alternativos que podem entregar valor.

Talvez o maior desafio seja precificar o valor de uma experiência que não seja uma aquisição, retenção ou pagamento. Indicadores como qualidade de venda, fidelidade de marca e satisfação podem ter uma percepção muito subjetiva de valor, porém as empresas mais inovadoras possuem ferramentas para medir e analisar esses aspectos, como NPS, CSAT, Benchmark, entre outras.

Além disso, uma boa abordagem para precificar fluxos de exceção é medir o custo operacional que eles geram. No caso da minha compra frustrada, o custo de logística foi maior do que deveria ter sido, caso trocassem as duas mesas de uma vez só. No setor bancário onde atuo, existem muitos outros exemplos, como cartões emitidos que não são ativados, contratos cancelados após a assinatura, processos por contestação de venda, faturas emitidas que não chegam ao endereço do cliente… Todos estes custos podem ser medidos e precificados para justificar o valor de iniciativas além da venda ou aquisição de clientes.

Conclusão

Não sei se o problema nessa minha experiência de compra frustrada foi uma decisão da empresa em “economizar” dinheiro de uma forma não muito inteligente ou a falta de autonomia das equipes de logística de otimizar o processo de logística reversa.

O que fica evidente neste caso é que os responsáveis por essa empresa não estão olhando a jornada completa do usuário, seja por distanciamento do cliente ou por falta de visão sobre o valor de criar uma boa jornada.

O fato inegável é que se distanciar do usuário final e ignorar fluxos na jornada do usuário tem um custo e nós, os profissionais de UX devemos nos responsabilizar pela experiência dos nossos usuários.

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Eric Platas
OPANehtech

Sou designer de produtos no Banco PAN, formado em publicidade, com mais de 10 anos de experiência em Design, UX, CRO, Marketing Digital e por aí vai…