Maternidade sem floreios

Natália Perezin
oprisma
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8 min readNov 18, 2019

“Mais precisamente, os defensores do amor materno ‘imutável quanto ao fundo’ são evidentemente os que postulam a existência de uma natureza humana que só se modifica na ‘superfície’. A cultura não passa de um epifenômeno. Aos seus olhos, a maternidade e o amor que a acompanha estariam inscritos desde toda a eternidade na natureza feminina. Desse ponto de vista, uma mulher é feita para ser mãe, e mais, uma boa mãe. Toda exceção à norma será necessariamente analisada em termos de exceções patológicas. A mãe indiferente é um desafio lançado à natureza, a a-normal por excelência.”

É dessa maneira que descreve Elisabeth Badinter — filósofa, autora e historiadora francesa -, na obra “Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno”, as pessoas que romantizam e glamourizam a maternidade, como se a exceção fosse anormal e patológica.

Várias ideias aprisionam mulheres. A construção feita sobre a maternidade é uma delas: mulheres que devem ser mães, mães que devem ser perfeitas — sem reclamar, chorar, se aborrecer ou se irritar. Em uma sociedade que possui uma configuração patriarcal, feita para diminuir as mulheres, é normal que muitas se sintam exclusivamente úteis para alcançarem a maternidade.

Marília Lamas, especialista em Sociologia Política e Cultura, explica que restringir a mulher à esfera doméstica e afastá-la dos espaços públicos, de poder, política e tomadas de decisão, faz parte do modus operandi do machismo. “Numa sociedade machista, a mãe ideal é uma pessoa que cuida, que abdica de tudo em prol de um filho, que aguenta todo tipo de sobrecarga, que aceita o outro como ele é, que faz sacrifícios”, escreve. O machismo, por meio das ideias de que a maternidade é algo divino e mágico, encontra um meio de aprisionar os corpos das mulheres. A maternidade romantizada traz a ideia de que a mulher, instintivamente e naturalmente, está ligada aos serviços domésticos, gosta de ser protegida e tem o desejo de ser mãe.

Além da pressão que existe para que as mães sejam perfeitas e produtivas, as que optam por não ter filhos também sofrem muito. “A mulher que põe suas ambições profissionais acima do desejo de se casar ou de ter filhos enfrenta, ainda hoje, um severo julgamento da sociedade e pode ter dificuldade em pôr em prática o estilo de vida que deseja. Na sociedade que apresenta maternidade como a maior das dádivas, a mulher que decide não ter filhos é vista com espanto pelas pessoas”, afirma Lamas. Essa imposição pode trazer grandes consequências para a vida das mulheres que sofrem com isso, como problemas de autoestima, autoconfiança e até fazer com que as que não sonham com a maternidade acabem se tornando mães para corresponder às expectativas da sociedade.

Nas redes sociais

Pelo fato das pessoas escolherem quais aspectos e detalhes da vida compartilhar nas redes sociais, muitas delas acabam falando apenas sobre as partes boas, como dias produtivos ou momentos de alegria. Algumas mães também fazem isso: mostram como acordam cedo, como os filhos são comportados, como a vida materna é sempre incrível e maravilhosa.

Gabriella Salgado tem 23 anos e há três anos e oito meses nasceu Diadorim, sua primeira filha. Quando soube que estava grávida, aos 20 anos, ficou tranquila mas não sabia o que esperar. Ela lembra que na primeira semana de vida da filha, sentiu um desespero grande, porque foi jogada a uma situação, segundo ela, completamente nova.

Algo que deixou Salgado incomodada foi a amamentação: para ela, foram momentos de dor intensa. Apesar da agonia, não encontrava alguém que falasse ou compartilhasse sobre esse tipo de dificuldade.

Hoje em dia, Salgado compartilha alguns acontecimentos da rotina no Instagram: além dos momentos felizes e conquistas da filha, também fala sobre frustrações da maternidade, com a intenção de desconstruir a glamourização de ser mãe. Vários de seus seguidores interagem com ela por meio dos comentários ou mensagens no privado. Ela começou a compartilhar um pouco mais sobre as chateações do dia a dia porque quis romper com a ideia do que sempre via nas redes sociais: família perfeita, mãe perfeita, filho perfeito. “Eu precisava pôr pra fora que as coisas não eram tão fáceis.” Muitos de seus seguidores no Instagram tinham a ideia de que a família dela era perfeita e, dessa forma, Salgado sentia expectativas a respeito de sua vida. “As pessoas ficavam ‘ah, sua família é tão linda’ e eu pensava ‘gente, não é assim o tempo todo, também me estresso, grito, boto de castigo. Minha filha também faz birra, se joga no chão’”, diz. Ela afirma que compartilha a rotina da forma que faz não para receber conselhos ou soluções, mas para mostrar que todas as chateações e frustrações são normais, que passa por isso também, assim como qualquer outra mãe.

Segundo ela, a maioria das mensagens que recebe é positiva, mas há algumas pessoas que criticam a maneira como ela mostra a maternidade. “Quando compartilho alguma coisa não tão boa da minha rotina, sou bombardeada de mensagens de pessoas falando ‘você tem que fazer isso, fazer aquilo’, ‘você está fazendo errado’ ou ‘é isso mesmo, o que você queria?’”, diz. A maioria das pessoas que mandam mensagens negativas, em contrapartida, não tem filhos.

Lamas acredita que ainda há muito a evoluir em relação à participação masculina na criação do filho. “Se a mulher avançou em direção à esfera pública, o mesmo não se pode dizer do homem em relação à esfera doméstica. A participação do homem nos serviços domésticos até aumentou nos últimos anos, mas não o suficiente”, afirma.

Uma pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 2016 e 2017 e com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, mostra que as mulheres têm participação em tarefas domiciliares substancialmente maior que a dos homens, tanto nos afazeres domésticos como na categoria cuidados, que inclui ações como cuidados pessoais e monitorar e fazer companhia dentro do domicílio: 94% das mulheres dedicam seu tempo aos afazeres domésticos contra 79% dos homens. Nos cuidados, o percentual é de 40% para elas e 28% para eles.

A única tarefa que os homens têm mais participação é a que envolve pequenos reparos ou manutenção do domicílio, do automóvel, eletrodomésticos e outros equipamentos — 68% para eles e 37% para elas. Atividades como preparar ou servir alimentos, arrumar mesa ou lavar louça são feitas por 97% das mulheres, enquanto pelos homens, apenas 60%.

Fonte: http://www.ipea.gov.br/
Fonte: http://www.ipea.gov.br/
Fonte: http://www.ipea.gov.br/

No contexto familiar, o pai é visto como o protetor, provedor, divertido e destituído de responsabilidades domésticas. Muitas vezes, o cuidado direto dos filhos não é visto como um dever paterno. “A mulher que estuda e trabalha fora ainda precisa chegar em casa e dar conta dos afazeres domésticos e dos cuidados com os filhos, já que essas tarefas continuam sendo vistas como femininas”, aponta Lamas. Com a contínua percepção que a sociedade tem das mulheres a respeito da feminilidade e dos afazeres domésticos, cria-se uma sobrecarga para elas, que são cobradas pela sociedade para se dedicarem aos filhos como se não trabalhassem, mas são igualmente pressionadas para trabalhar como se não tivessem filhos.

Um exemplo da diferença atribuída às mães e aos pais é no mercado de trabalho: em entrevistas de emprego, muitos empregadores perguntam às mulheres se pretendem engravidar ou com quem deixarão os filhos caso eles fiquem doentes. Isso não acontece com os homens. A licença maternidade, também, ilustra esse problema: as mulheres têm o direito de se ausentar por, no mínimo, 120 dias e pode chegar a 180, enquanto o período de afastamento de um pai é de 5 a 20 dias. “Essa vantagem da mãe traduz, na verdade, a anulação da responsabilidade do pai sobre a criança, o que reforça o modelo do casal patriarcal”, diz Lamas. Além disso, muitas são demitidas após a licença maternidade: uma recente pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), realizada com 247 mil mães, aponta que 48% delas foram demitidas até dois anos depois que a licença terminou.

“Chegou após o parto, viu a criança e logo foi embora”

Além de existirem mães que pouco contam com as ajudas domésticas e cuidados dos homens, muitas criam seus filhos sozinhas. Esse é o caso de Patrícia Gabriela Augusto, que tem um filho de oito anos. “Complicado e maçante”, é como descreve ser mãe solo. Ela e o pai da criança terminaram o relacionamento antes mesmo de descobrir que estava grávida. Ele ajuda apenas com a parte financeira, mas não tem nenhum tipo de contato com a criança. Augusto conta com a ajuda da mãe mas, segundo ela, no final, quem tem o papel de educar, ensinar e mostrar o caminho certo é apenas ela. “Eu tenho uma sobrecarga porque sou mãe e também sou pai. Às vezes me sinto exausta porque preciso de um tempo para mim, me divertir, dar risada, não somente trabalhar, estudar e tomar conta do filho. Talvez se o pai fosse presente, eu conseguiria fazer muito mais coisas”, diz. Apesar da dificuldade, ela conta que o feminismo a ajudou a se sentir mais forte e independente, além aprender a lidar melhor com a situação.

Como desconstruir?

O machismo pode ser justificado pela crença na força e influência da biologia, que, para muitas pessoas, comprova que mulher tem o “instinto materno” ou necessita ser protegida. A maior influência no comportamento de homens e mulheres não é a natureza, mas a cultura. A forma como a mulher é vista e entendida pela sociedade é meramente uma construção social — enraizada, mas não impossível de ser desconstruída. A frase mais emblemática de Simone de Beauvoir resume esse pensamento: não se nasce mulher: torna-se. Tampouco se nasce mãe, tampouco se nasce feminina.

As famílias têm papel importante no processo de desconstrução.

“Se na infância começam a se desenhar esses padrões discriminatórios entre os gêneros, também é na infância, casa e escola que pode começar a mudança. Se as crianças tiverem em casa exemplos de homens que participam das tarefas domésticas e de mulheres que se sentem livres para fazer suas escolhas; se elas entendem que podem optar pelas cores, desenhos e brinquedos que desejarem, independentemente do seu gênero, muito provavelmente essas crianças crescerão com a noção de que nenhum gênero é superior ao outro. Por isso a luta por igualdade envolve diretamente a educação das crianças.” — Marília Lamas

Um debate sincero sobre a romantização da maternidade pode fazer com que muitas mães percebam que está tudo bem não abdicar de tudo; está tudo bem cobrar a contribuição paterna na criação dos filhos; está tudo bem sentir cansaço e irritação. E aquelas que não são mães podem compreender que a maternidade é uma escolha, não o destino.

Para saber mais:

“Um Amor Conquistado — O Mito do Amor Materno”, de Elisabeth Badinter

“O Conflito — a Mulher e a Mãe”, de Elisabeth Badinter

“As Alegrias da Maternidade”, de Buchi Emecheta

Texto: Natália Perezin

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