Bom Design para quem?

Julia Pirri
Oré!
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7 min readAug 30, 2021

por Bruna Bresseler, Julia Pirri e Letícia Bito.

Durante a graduação em Design na UTFPR, alguns docentes e discentes usam a expressão “bom design” como sinônimo de qualidade e como meta nos projetos acadêmicos. Mas qual a origem deste conceito? Segundo Rafael Denis, em Uma introdução à história do Design, o debate sobre a existência de um “bom design” existe há décadas, tanto em outros países, quanto no Brasil.

O início se dá com o Estilo Internacional, a partir de 1920, na Europa. O movimento que se dizia internacional (aqui, já questionamos: internacional para quem? Quem define o que é internacional?), buscava uma padronização e formalidade que rejeitava as bases do passado, caso possuíssem regionalismos e nacionalismos. A busca era por funcionalidade. A padronização ia desde a arquitetura e objetos, até mesmo a tipografia. A sua divulgação era por meio de exposições, o que fez com que a ideia se espalhasse pelo mundo.

O movimento foi um precursor do debate sobre o Good Design, que surgiu alguns anos depois para premiar as produções que se encaixassem no próprio Estilo Internacional. Após a Segunda Guerra Mundial, o Museum of Modern Art (MoMA/EUA) foi um expoente quanto à promoção de exibições que disseminaram a filosofia de um design de bom gosto, funcional, bem feito, simples e “honesto”. Foi a partir da década de 50 que começaram a surgir as primeiras premiações e incentivos para o Bom Design. Alguns carregam o nome até hoje. O prêmio Good Design, por exemplo, criado em Chicago em 1950 pelo antigo curador do MoMA Edgar Kaufmann, Jr., junto a grandes nomes do design modernista como Charles e Ray Eames e Eero Saarinen, ainda acontece anualmente. Na região sul do Brasil, há o Prêmio Bom Design, criado nos anos 80 para dar visibilidade a projetos de graduados em Design.

No entanto, somente anos mais tarde começaram as críticas de que na verdade o movimento seria uma imposição do padrão de gosto elitista, se apropriando do discurso da eficiência ou bom gosto.

O Estilo Internacional tinha a ideia de reduzir as desigualdades padronizando tudo. Assim todas as pessoas consumiriam, produziriam, trabalhariam e pensariam igual. Também aconteciam muitas imposições, como a própria utilização dos grids. Com isso, é possível fazer alguns questionamentos: Essa imposição era da cultura de quem? E estava sendo imposta para quem? A desigualdade seria o fruto de diferenças culturais?

Uma ironia que aconteceu é que o Estilo Internacional, que criticava a desigualdade ocasionada pelo capitalismo, tornou-se preferido por várias multinacionais da época, como por exemplo a IBM. Então, ao invés de beneficiar a população como um todo, acabou beneficiando as corporações. A linguagem do estilo passava os valores de precisão, disciplina, ordem, neutralidade, entre outros que interessavam muito o mundo corporativo.

Atualmente, uma multinacional que se utiliza do “bom design” em seu discurso é a Apple, empresa de tecnologia da Califórnia, famosa pelo iPhone, iPad, iMac, entre outros. A filosofia da Apple é fortemente influenciada pelo trabalho de Dieter Rams, designer alemão que tornou a marca Braun de eletrodomésticos uma marca icônica, reconhecida em todo o mundo. Ele é o responsável pelos 10 princípios do “bom design”, segundo os quais o “bom design” deve ser “inovador, útil, estético, deve tornar um produto compreensível, deve ser discreto, honesto, durável, minucioso até o último detalhe, ecologicamente correto e o mínimo de design possível”. Alguns produtos Apple têm influência óbvia de produtos da Braun, como se pode ver a semelhança do iPod com o rádio de bolso Braun T3. Rams já declarou que a Apple é uma das poucas companhias que faz design de acordo com seus princípios. Mas e quanto às reclamações de obsolescência programada de iPhones em todo o mundo? Isto é “bom design”?

(Pode-se entrar na discussão do design neutro — que valores que o design passa na construção dos artefatos, e que consequências isso pode ter?)

O Estilo Internacional teve algumas adaptações em alguns lugares. Nos Estados Unidos, por exemplo, as ideias de coletividade do Funcionalismo foram rejeitadas. No Brasil, a febre funcionalista também chegou, principalmente no mobiliário e arquitetura, com uma rejeição das tradições, valores, costumes e regionalismos, impulsionados, também, pela recusa ao momento político e à elite. Entretanto, anos mais tarde, aconteceu um movimento de divisão entre nacional x internacional, artesanal x industrial. Uma retomada ao trabalho não industrial e também de costumes. Assim, acentua-se ainda mais o debate sobre o que é bom design.

Dois nomes brasileiros que evidenciam esse conflito são Aloísio Magalhães e Alexandre Wollner. No documentário “Alexandre Wollner e a formação do Design Moderno no Brasil”, produzido pela Cosac & Naify em 2005, fica claro o atrito, quando Wollner, ao se referir à relação que tinha com Magalhães, fala:

Alexandre: Aluísio foi criado no centro dessa cultura regional brasileira, que é Pernambuco. Entendeu? Ele viveu toda essa cultura. E eu fui criado em São Paulo, não tem a cultura regional, é a cultura internacional aqui. É alemão, francês, italiano, inglês. Então eu não aprendi, não tenho uma ligação, não adianta eu fazer um esforço. Não adianta querer por uma pena em uma marquinha.

Entrevistador: Mas teve um momento que vocês ficaram muito próximos.

Alexandre: Porque ele teve contato comigo.

Além da fala de Wollner ser muito problemática, retratando a síndrome de vira-lata e uma mentalidade forte de colonizado, percebe-se a forte influência do Estilo Internacional e da rejeição a regionalismos e tradicionalismos, na vida e no trabalho dele. Junta-se a isso, ainda, uma ignorância sobre o que seria cultura e sobre identidade nacional.

Conclui-se então que o debate é mais amplo. A questão do “bom design” não se trata somente de algo ser bom ou ruim, bonito ou feio, interessante ou desinteressante. Parece que há quase um século, a discussão é sobre o que se encaixa em um molde ditado por quem detém poder e influência — no caso, Europa e Estados Unidos. O que mais se aproxima desta caixa estabelecida é visto como correto, e o que se distancia, é visto como errado.

Um exemplo dessa situação é percebido nos relatos disponíveis no livro Design + Artesanato, de Adélia Borges. A influência do estilo internacional era tão grande na ESDI, primeira escola de desenho industrial do Brasil, que os estudantes eram proibidos de utilizar cores, senão branco, preto e cinza, além da repulsa da cultura local, para que o trabalho fosse considerado correto.

Monica Mohapatra, designer indiana residente em Nova Iorque, aponta em seu texto “Good Design… for whom?” a utilização da forma mais atual do “bom design”, o design thinking, no projeto de cadeias e centros de justiça nos Estados Unidos. Segundo a autora, a metodologia é aplicada para pensar o encarcerado como um cliente, resultando em formas mais agradáveis esteticamente para essas estruturas, além de integrá-las à vizinhança sem impactar nos valores das propriedades e no tráfego local. Para Mohapatra, ao abordar o problema carcerário desta forma, sem pensar na abolição das prisões, estes designers não tratam o problema de forma holística, como questão estrutural. O design thinking, então, apesar de inicialmente concebido baseado em práticas participativas e que se centram nos seres humanos, hoje se aproxima mais de um “mecanismo evolucionário do capitalismo”, neste caso, transformando as cadeias em um negócio lucrativo.

Somos tão influenciados, que utilizamos, defendemos e propagamos as lógicas do “bom design” e do design thinking sem ao menos perceber que, assim fazendo, abrimos mão das tradições e valores do nosso próprio país e cultura. E esse processo é invisível, o que o torna mais perigoso ainda. Pode-se afirmar então, que o termo “Bom Design” é carregado de poder, hegemonia e elitismo e que sua acepção acrítica exclui uma infinidade de aspectos culturais e práticas projetuais outras, para além daqueles do Norte Global.

Referências:

ALEXANDRE Wollner e a formação do Design Moderno no Brasil. Andre Stolarski/ Gustavo Moura. Brasil: Cosac & Naify, 2005. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=s7LOZLMRRO0. Acesso em: 26/08/2021

BORGES, Adelia. Design + Artesanato. Design + Artesanato: o caminho brasileiro. N.p., Editora Terceiro Nome, 2019.

BRAUN. The History of Braun’s Design & Innovation. Disponível em: https://us.braun.com/en-us/design/design-and-innovation.

CARDOSO, Rafael. Uma introdução à história do design. São Paulo: Edgar Blücher, 2004.

CULT OF MAC. Dieter Rams has a new challenge for Apple. Disponível em: https://www.cultofmac.com/581644/dieter-rams-documentary/.

GIZMODO. 1960s Braun Products Hold the Secrets to Apple’s Future. Disponível em: https://gizmodo.com/1960s-braun-products-hold-the-secrets-to-apples-future-343641.

MOHAPATRA, Monica. Good Design… For Whom? Disponível em: https://thenewinquiry.com/good-design-for-whom/

O GLOBO. Apple vai pagar até US$ 500 milhões para indenizar clientes por lentidão em iPhones. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/apple-vai-pagar-ate-us-500-milhoes-para-indenizar-clientes-por-lentidao-em-iphones-24282922.

Prodesign>PR. Prêmio Bom Design. Disponível em: http://prodesignpr.com.br/acao/bom-design/

SANTOS, Marinês Ribeiro dos. Existe design brasileiro? Considerações sobre o conceito de identidade nacional. In: QUELUZ, Marilda Lopes P. (org). Design & Identidade. Curitiba: Editora Peregrina, 2008.

The Good Design Awards. Celebrating 75 Years of Iconic Design. Good Design® online submissions are open. Disponível em: https://www.good-designawards.com/about.html

VITSŒ. The power of good design: Dieter Rams’s ideology, engrained within Vitsœ. Disponível em: https://www.vitsoe.com/gb/about/good-design.

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