Os bons debates foram substituídos por definições, mapeamentos e acusações

O raciocínio é simples: por ser “de humanas”, eu seria mais limitado, mais ocioso e, principalmente, não teria independência reflexiva, já que seguiria orientações do governo e do “PT”

Michel Gherman
Oriente à esquerda
4 min readMar 27, 2016

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Nos últimos tempos, tenho encontrado referências surpreendentes nos debates presenciais e virtuais nos quais me envolvo. Não raro, sofro acusações graves e, as vezes, incompreensíveis. A coisa se agravou depois do acirramento da crise política no país, quando gente que me (per)seguia em fóruns sobre o conflito israelense-palestino e em debates sobre o oriente médio passou a reproduzir esse mesmo comportamento quando eu, eventualmente, publicava textos sobre a situação no Brasil.

Na selva em que se transformou o Facebook, eram usados contra mim expressões como: “mimimi de humanas”, “essa galera de humanas” ou, até mesmo, “vagabundo de humanas”. Demorou um pouco para que eu entendesse (afinal, sou de humanas!) que esses discursos tentavam deslegitimar minha formação de historiador. Por ser “de humanas”, eu seria mais limitado, mais ocioso e, principalmente, não teria independência reflexiva, já que seguiria orientações do governo e do “PT”.

Nos últimos dias, a situação piorou muito. Os xingamentos aumentaram e comecei a ser “acusado” repetidamente de ser “socialista e ateu”. Muitos de meus “amigos” passaram a usar esses termos para se dirigir a mim ou, mesmo, para me definir. Descobri, por informação de conhecidos, que também era taxado assim por gente de que não pertencia ao meu círculo de amigos no Facebook: um fulano qualquer dizia que não deviam me escutar, pois eu era “socialista e ateu”; outro dizia que, por eu ser “socialista e ateu”, não devia ser levado a sério...

A quantidade de gente usando os mesmos conceitos era tão grande que desconfiei tratar-se de um ataque orquestrado ou, então, de um modelo usado por alguém, mas que era apropriado, quase automaticamente, por leitores ávidos por definições rápidas. Como não tenho lá muita importância, a ponto de orquestrarem um ataque contra mim, a segunda hipótese parecia mais adequada: estão achando que sou “socialista e ateu” porque sou de humanas, e quem é de humanas é “socialista e ateu”.

Já vou avisando que alguns de meus melhores amigos são socialistas e ateus (opa!), mas eu não sou nem uma coisa, nem outra.

Em relação ao socialismo, tenho até simpatias por algumas reflexões e usos teóricos — assim como as tenho pelo budismo e pelo idealismo alemão, mas não sou “acusado” nem de budista nem de idealista. Acusar alguém de “socialista” é tão vago como acusar alguém de “ocidental” ou de “judeu”. Um socialista pode ser marxista-leninista, utópico ou fabianista (como Delfim Neto diz que era). Ou seja, o termo “socialista” serve, nesse caso, mais para estigmatizar do que para dizer o que quer que seja. Seria alguma coisa do tipo: “não escuto o que você fala, porque você é socialista”; ou, ainda, “não namore com ele, ele é socialista”. Sem querer ser sartriano (quem mandou não estudar humanas? Vai procurar no Google), “socialista” é um termo importante porque quer dizer nada, ou tudo, dependendo da intenção do acusador.

A segunda insinuação é ainda mais interessante. Em primeiro lugar, porque, definitivamente, não sou ateu. Tenho práticas religiosas até bastante constantes e frequentes, mas isso importa pouco. O ponto aqui é: seria possível chamar alguém de ateu hoje? As definições de teísmo são tão amplas e difusas que considerar alguém ateu está cada vez mais difícil. Ademais, sem cair numa onda inquisidora braba, você conseguiria, de fato, relacionar atitudes e ideologias com a falta de crença em Deus? Assusta, não?

Com esse susto na alma, fui procurar de onde vinham essas lógicas, e não foi difícil encontrar. Há farta informação disponível que vincula humanas, PT, Lula e o diabo a quatro: se você estuda humanas ou é professor na universidade em um desses departamentos, você produz propaganda socialista para o governo de ateus. Só isso. Nada mais.

Para essa gente, ser socialista é o maior dos pecados. Um vagabundo que depende do governo. Contra o impeachment? Claro, não quer que a mamata acabe, né? Acha muito estranho o comportamento da mídia nesses últimos tempos? Óbvio, você é socialista, e se pudesse interviria em tudo e proibiria tudo, né?

Há uma gama de pessoas escrevendo essas coisas, que são imediatamente apropriadas e usadas por leitores sedentos por definições e marcações. Tudo na velocidade da luz. Fulano disse isso? Escreve aí, é porque ele é aquilo. Sicrano falou bem deles? Lógico, ele depende deles, é ateu e socialista. Pondés, Carvalhos, Azevedos e Constantinos estão sendo acionados para dar munição a um discurso de ódio e, principalmente, de ignorância. Seus artigos viraram manuais de atitude política. Os bons debates, as discussões saudáveis, foram substituídos por definições, mapeamentos e acusações. Tudo rápido e com a precisão de uma metralhadora.

Agora — e esse é o motivo deste artigo estar aqui — nada disso é novo pra mim. Sou judeu, e essa definição é acompanhada por estigmas desde que me entendo por gente. Quando me defino como judeu, sou observado pela imagem que as pessoas tem de um judeu, e não pela minha imagem. Se digo alguma coisa que desafia essa relação entre o judeu imaginário e aquele judeu que fala, deve ser porque não se trata de um judeu de verdade, deve ser ateu, deve ser assimilado… senão, não falaria aquelas coisas.

Ademais, tenho cidadania israelense e pesquiso (sou historiador, lembram?) o conflito palestino-israelense. É comum ser recebido por plateias inteiras com asco e certezas sobre minhas opiniões. Aliás, é comum também não ser recebido por plateias inteiras, porque lhes parece que não vale a pena escutar um judeu israelense.

Considero não ser casual o fato de que os articulistas acima citados tenham, uns mais outros menos, se aventurado em temas do conflito. O modus operandi de entender palestinos e israelenses, judeus e árabes, foi exportado para a política nacional. Isso é tão não novo pra mim…

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