5 perguntas para Juane Vaillant sobre Histórias e Livros

zhiOmn Ormando
Ormando zhiOmn
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10 min readNov 9, 2020

Juane Vaillant escreve textos literários, roteiros audiovisuais, e publica no site Boas de Prosa. Dá oficinas de escrita criativa e é professora. Além de seus trabalhos com o texto ela apresenta, produz, dirige, e assim por diante… A seguir ela responde 5 perguntas sobre histórias e livros:

Juane Vaillant

1. Para você, como é criar personagens e histórias?

Eu sou uma observadora e gosto disso. Eu observo as pessoas o tempo todo. Tanto as pessoas na rua, nas praças e festas que eu vou quanto também meus amigos e familiares. Pego emprestado dessas pessoas, trejeitos, gírias e até histórias. O Neil Gaiman disse na master class “Art of Storytelling” algo como “a realidade é mais absurda do que qualquer coisa que você possa inventar.” Eu concordo muito com isso. Às vezes escrevo coisas super fantasiosas, mas no meio disso a grande frase de impacto foi dita por um amigo no bar, pelo meu avô em um churrasco de família ou pelo meu primo de cinco anos.

E já que entrei nesse tópico, tem isso também: tenho uma família muito interessante. Concordando ou discordando de seus pontos de vista, o interessante é que eles sempre tem um. Tanto meus pais, quanto minha irmã, meus tios e tias, primos e primas… Estão sempre interessados em algo. Pesquisando, remexendo, trazendo algo de novo. Então sempre fui rodeada de estímulos para ser curiosa.

Acho que ser curiosa é a primeira coisa que um escritor deve ser.

Depois da curiosidade vem a pesquisa, e eu sou muito chata nesse ponto. Se tem algo que eu não consigo saber ao certo o que é e de onde veio, eu prefiro nem colocar no texto. E também é importante que eu goste da pesquisa. Se estou escrevendo uma história sobre ciganos, por exemplo, e lá pelas tantas tenho que ler hábitos cotidianos deles e começo a achar a leitura enfadonha, eu repenso a minha história. A pesquisa tem que despertar uma emoção ativa: alegria, euforia, tristeza, repulsa… Mas, se eu ficar com preguiça ou indiferente, entendo que o tema não é para mim e é melhor que outra pessoa escreva.

Mas, honestamente, muitas vezes é como se eu não criasse nada. Algumas coisas — muitas delas importantes — me saltam aos olhos e surgem para mim quase prontas.

No romance que estou desenvolvendo agora (“O Olho do Tempo”) tem uma peculiaridade: É como se eu tivesse lido o primeiro livro da saga, e um grande spoiler dos livros finais, e agora a pessoa que teve essa ideia desapareceu e eu tenho que ir completando esses arcos narrativos, essas personalidades, essas locações. Deve ser uma sensação parecida com a do Christopher Tolkien editando, revisando e completando as histórias de seu pai ao longo dos anos. (risos)

Tem histórias como “A casa de Senhorita” ou “Sonhei com a gruta” (do meu livro “O mundo de Cá”) que eu literalmente só acordei e transcrevi o sonho. É claro que a gente coloca umas palavras bonitas, umas firulas, mas a ideia central estava pronta. Então, acho que o “mérito” que eu tenho nisso é, mais uma vez: ser observadora. Prestar atenção e dar vazão para as coisas que o meu subconsciente traz.

Para mim, escrever histórias e criar personagens é como estar em constante contato com o meu inconsciente e com todas as pessoas que me atravessaram.

2. Quais características te atraem na ficção ‘extraordinária’ e de fantasia?

Foi Tolkien quem disse, mas eu conheci a citação através do C.S.Lewis no texto “três maneiras de escrever para crianças”. Segundo Tolkien, o atrativo dos contos de fada consiste em que nele o homem cumpre de maneira mais plena a função de sub criador. Constrói um mundo subordinado que lhe é próprio. E eu acho que tem muito disso mesmo.

E o mundo ser “subordinado” ao autor, não é algo interessante porque é controlador ou prepotente mas porque é livre.

Colocando seus personagens em lugares que não existem, fazendo coisas que são impossíveis, você pode falar de autoritarismo em uma galáxia muito, muito distante ou em uma escola de magia e bruxaria. E talvez as pessoas tenham mais paciência e menos resistência ao ouvir a mensagem assim, do que se fosse em um texto teórico ou em um documentário sobre a segunda guerra.

Também gosto muito de trabalhar com as metáforas que são próprias do meio. Quando seu personagem é de uma espécie específica, como um centauro, uma fada, uma bruxa, já existem uma série de características que pairam sobre esses arquétipos e que o autor pode usar ao seu favor, inclusive para quebrar as expectativas e falar com o leitor: “A-há: nunca foi isso. Está tudo na sua cabeça. “

A fantasia me trouxe grandes reflexões. Talvez até maiores do que textos acadêmicos me trouxeram.

Talvez porque quando eu vou ler, não é isso que estou procurando. E também porque os escritores de fantasia bebem muito da água da filosofia, antropologia, psicologia, e colocam essas ideias na boca dos seus personagens. Então, quando o Dumbledore diz que talvez as melhores pessoas para liderar são aquelas que não nasceram com poder e que não buscam o poder, eu vou ouvir o que ele diz porque eu conheço esse personagem. Eu confio nele. E, muitas vezes, quando entrava em contato com textos de Durkheim, por exemplo, eu não fazia ideia de quem ele era e porque era tão importante ouvir o que ele tinha a dizer.

A fantasia tem essa áura. Como se tudo ali fosse antigo e sagrado. Esse conceito é tão repetido que você acaba acreditando. Viu? Os arquétipos de novo!

Capa do livro de contos “O mundo de cá” de Juanne Vaillant — Fonte: amazon.com.br

3. Quais as peculiaridades de contar uma hitória através de um texto e através de um video?

Eu amo contar histórias pelos dois meios, e talvez por isso eu goste tanto de adaptações da literatura para o audiovisual. Até das ruins eu gosto, porque é muito interessante observar o ponto de vista de uma pessoa (ou várias pessoas) sobre determinada história. Começando com o texto, que é minha área mais antiga, gosto bastante da sonoridade. Das boas narrações e descrições. Gosto muito de narradores também. Coisa que nos filmes dificilmente me agrada.

Quando escrevo, meu narrador é quase sempre alguém de carne e osso. Não realmente carne e osso, mas também não posso chamar de personagem, porque na maioria das vezes não são personagens da história. São meus muitos amigos imaginários que me contam a história do seu ponto de vista.

Nos narradores eu coloco muitas das melhores falas, porque, ao contrário das pessoas que estão ali, vivendo suas vidas, o narrador se prepara para contar aquilo. Ele diz: “Olha, vou contar uma história aqui.” Então, significa que ele pensou nisso, ele formulou isso e pode tecer os comentários mais diversos.

Para mim, por exemplo, embora goste de ler livros com narradores observadores que são meio alheios aos fatos, não me interessa enquanto escritora em criar um narrador morno, que não tem opinião sobre as pessoas, sobre os acontecimentos. Talvez seja culpa do Machado isso, não sei…

Já no vídeo, gosto especialmente que me mostrem o que eu sempre vejo, mas de forma diferente. E dai para frente, todas vez que eu ver determinada coisa, vou refletir sobre ela. Como aquela famosa tirinha que mostra vários pássaros nos fios de energia e de longe eles parecem notas musicais, sabe? E isso pode ser tanto em filmes de realismo fantástico como “O Labirinto do Fauno” que me fez olhar para a lama de uma forma diferente, até filmes altamente cotidianos como “Encontros e Desencontros” que transformou o elevador — algo que eu tinha medo — em um local que me faz refletir sobre esses lugares de transição.

Quando dirigi o documentário “90 rounds” inclusive, gravamos muito em elevadores. Na primeira cena do filme estamos lá. E também estamos em carros, e andando nas ruas, entrando em festas… É um filme em movimento. E isso eu gosto muito no cinema. O movimento.

Nas duas linguagens, só tem uma coisa que me faz amar um filme ou livro ou abandonar no meio: Os personagens. Se os personagens forem bem construídos, criveis, complexos e contraditórios, para mim a história é boa.

Eu lembro que muita gente ficou decepcionada com o fim de “Lost” devido à ausência de explicação para alguns fatos científicos. Eu não digo que amei tudo sobre a série, mas senti respeito pelos meus personagens queridos (risos) e era por causa deles que eu via. Já no final de “Game of Thrones”, o caminho que os showsrunners da série obrigaram os personagens a percorrer, sem o mínimo de preparo ou cuidado, fez com que eu (e muitos outros) ficasse extremamente frustrada.

A Construção de personagem é, para mim, algo que deve ser feito com igual cuidado, em livros e em filmes, porquê fica muito evidente quando não é.

4. Quais aprendizados você teve sobre literatura ao ler livros?

Uma das coisas mais interessantes que aprendi é que, ao contrário do que dizem nossos livros de gramática, as regras gramaticais não são a parte mais importante da construção de um texto.

A ideia é. A paixão com que você escreve é. Alguns dos livros mais incríveis que já li, como “Ensaio Sobre a Cegueira”, “Quarto de Despejo”, “Olhos d’Água”, são cheios de liberdade poética, de palavras inventadas, de palavras faltando, de virgulas sobrando…

Existe uma grande beleza na literatura. Seja poema ou prosa: qualquer um pode escrever. E deve escrever. Até alguém que tem pouco letramento, até gente disléxica como eu (risos). Também aprendi que literatura é tudo que quem escreveu fala que é.

Qualquer formato de texto, com qualquer diagramação, com qualquer propósito, será lido por mim como literatura se a pessoa que escreveu me falar que é.

Tem seis anos que dou aula de escrita criativa. Em um dos primeiros cursos de longa duração, lá em 2016, uma aluna minha escreveu um relato super pessoal sobre sua relação com seu irmão. Eu, ainda inexperiente e cheia de preconceitos, disse algo como: “Muito interessante, mas da próxima vez, tenta dar um ar um pouco mais ficcional, porque está muito parecido com textos que escrevemos nas redes sociais, desabafos e tal”. Uma outra aluna me disse: “Nossa, mas eu gosto tanto de ler isso. Não é literatura?” E dai pensei: “Não é? ‘O diário de Anne Frank’ não é literatura? E se não, por quê não?”

Sigo aprendendo e entendendo o que é literatura todos os dias.

Juane Vaillant (no centro) acompanhada de Aline Miranda (à esquerda) e Isabella Mariano (à direita), autoras do livro “Uma Palavrinha” que contém exercícios de escrita. — Fonte: secult.es.gov.br

5. Quais aprendizados você teve sobre a vida ao ler livros?

Nossa… eu poderia escrever um livro falando o que eu aprendi com os livros. Mas, vamos começar pelo começo. Meus livros favoritos me ensinaram muito sobre assumir as responsabilidades sobre as coisas que fazemos. Nossas escolhas, nossas falas e nossas omissões, tudo tem uma consequência. Às vezes em pequena escala, às vezes em grande escala. Outra coisa muito importante é sobre sabedoria.

Os livros me mostraram que os sábios e a sabedoria podem estar em lugares que a gente menos espera. Talvez no último lugar que vamos procurar. E talvez, exatamente por termos percorrido tanto na nossa jornada, é que podemos receber essas mensagens e tomá-las como ensinamentos.

Essa última parte pode parecer clichê, mas o que eu posso fazer? Sou um clichê ambulante (risos). Eu acho que a literatura me ensinou muito sobre persistência. Dificilmente um bom protagonista vai ter tudo de mão beijada, e se ele desistir do objetivo no primeiro capítulo, e não tiver nenhum outro, sobre o que estamos lendo? Até em histórias como “Seinfeld”, cujo grande “plot” era ‘ser sobre nada’, percebemos que ele tem um objetivo de ser um comediante reconhecido, e isso está ali em todos os episódios.

Então, voltando para os livros, os livros que eu mais li são sobre jornadas épicas. E isso dá uma perspectiva, sabe? De repente você está lendo e pensa: “Mano, a família inteira do cara morreu e ele ainda não desistiu. Eu vou desistir depois de uma crítica de alguém que eu nem conheço ou vou deixar o fora de um cara qualquer me abalar? Eu não!”

E acho que essa mensagem vale inclusive para a literatura. Muita gente vai querer convencer as pessoas que ler é chato, que escrever é chato, que não é para todo mundo, que tem que ter dom…Ba-le-la.

Não tenho a ideia meritocrata de que “quem se esforça consegue” e que “todo mundo que tentar o suficiente vai conseguir”, mas desistir de tudo também é tão prejudicial quanto. Da minha parte, eu sigo.

Juane Vaillant

Juane Vaillant é formada em Rádio e Tv pela Faesa e trabalha na área cultural como escritora, roteirista e produtora desde 2010, tendo participado como
de curtas metragens capixabas, como “O Espelho”, “A Febre”, “Da Curvá Pra Cá”, “Inabitáveis” e “90 rounds” e o longa “Os Primeiros Soldados”.

Juane faz parte do coletivo literário Boas de Prosa, é integrante da produtora Bangladesh filmes e é apresentadora e roteirista no canal sobre cultura Hip Hop “Vai Vendo”.

Como escritora, Juane tem diversos trabalhos publicados em coletâneas, um livro de contos fantásticos intitulado “O mundo de Cá” (publicado pela Editora Pedregulho) e o livro “Uma palavrinha”, em parceria com suas companheiras do “boas de prosa”. Apesar de tudo (e por causa de tudo) Juane se define apenas como uma contadora de histórias.

Acompanhe os movimentos dela pelo Instagram, Facebook e pelo site Boas de Prosa.

Todas as perguntas dessa ‘edição’ do ‘5 perguntas?’ foram elaboradas por zhi~omn {Ormando MN}. Data da entrevista: junho de 2020.

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