Fernando Pessoa e o Zodíaco — Montagem por @zhiOmn

5 Perguntas sobre Fernando Pessoa e Astrologia e Ocultismo

zhiOmn Ormando
Ormando zhiOmn
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17 min readApr 16, 2021

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Fernando Pessoa foi um artista singular e múltiplo. Singular pela sua forma própria e original de fazer a sua obra, e múltiplo também pela sua forma de fazer sua obra através de heterônimos e personagens-autores. Talvez pudéssemos até o chamar de “PessoaS”…

Eu (Ormando zhiOmn) fiz cinco perguntas sobre Fernando Pessoa para José Correia, que realiza pesquisa bibliográfica e consultoria na biblioteca do Museu Casa Fernando Pessoa, desde 2009. Leia abaixo as respostas:

Fernando Pessoa — Fonte: casafernandopessoa.pt (efeitos de cor adicionados)

1. Como Fernando Pessoa teve contato e aprendeu sobre astrologia e ciências ocultas?

Toda a vida de Pessoa foi uma busca pelo conhecimento. Daí se dizer que é obra-vida e não vida e obra. Sempre muito curioso, Pessoa leu sobre todas as áreas do conhecimento humano, como atesta a sua biblioteca privada, que podes explorar através do sítio da Casa Fernando Pessoa. Tudo na obra de Pessoa está ligado a tudo o que leu. Andou essencialmente à procura de modelos, para mais tarde, transformá-los em algo da sua autoria.

Pessoa dedicou-se à Astrologia e Ciências ocultas por via de muitas obras de diversos autores que leu desde muito jovem. Pessoa foi um excelente astrólogo e usou também a astrologia no seu quotidiano, lidando com esse saber de manhã, à tarde e à noite, como atestam diversos trabalhos realizados, uma vez que contêm a data e a hora em que foram feitos.

Dos cerca de 30.000 papéis que Pessoa deixou e que fazem parte do seu espólio, 2000 referem-se a desenhos e textos relacionados com a astrologia.

É importante dizer que Pessoa quis renovar a prática da astrologia, procurando novos caminhos com um projecto “New Theory of Astrological Periods”, que foi atribuído a Raphael Baldaya, a personagem criada por Pessoa para assinar os textos de teor astrológico. Uma das mais antigas referências a Baldaya surge numa nota de cerca de 1915, em que são atribuídos por Pessoa, dois projectos:”Systema de Astrologia” e uma “Introducção ao estudo do ocultismo”.

Existem documentos do seu espólio em que são expressas referências a livros de astrologia de George Wilde e Sepharial (Walter Gorn Old), notório e respeitável astrólogo no final do século XIX e início do século XX, e membro da Sociedade Teosófica Inglesa, que remetem para 1914, como a data de início do seu estudo da astrologia.

Uma das obras de Sepharial é “Kabala of Numbers”, publicada pouco antes de 1913. Numa carta para o editor de “A thousand and One Notable Nativities”, de Alan Leo, Pessoa refere ser um estudante de astrologia.

2. Durante a vida o Fernando fez diversos mapas atrais de pessoas que conhecia e não conhecia, e até mesmo de alguns heterônimos. Poderia contar sobre esse assunto e sobre onde esses mapas se encontram hoje em dia?

Pessoa realizou “Mapas do céu” de si próprio, da sua família, dos seus amigos e conhecidos, de muitas individualidades portuguesas e estrangeiras da sua época e de outras épocas, assim como dos heterônimos, uma vez que estes ao nível dos “signos Ascendentes”, pertencem respectivamente, aos seguintes elementos:

  • Fernando Pessoa: Água
  • Alberto Caeiro: Fogo
  • Álvaro de Campos: Terra
  • Ricardo Reis: Ar

Eles formavam uma fraternidade astral, simbolicamente algo de absoluto e indivisível.

Horóscopo de Alberto Caeiro (esquerda) e de Portugal (direita). — Fonte: multipessoa.net

Em relação a eventuais cartas para desconhecidos (existem apontamentos com nomes de algumas pessoa que terão solicitado os préstimos de Baldaya), não se sabe se Pessoa/Baldaya alguma vez o terão feito, mas há um documento do seu espólio que refere um preçário para escritos astrológicos que seriam cobrados entre 500 e 5000 reis pelos seus serviços.

Resta dizer que todos os “Mapas do céu” e textos sobre astrologia, ou Ciências Ocultas, se encontram no seu espólio (os tais cerca de 30 000 papéis), que constituem tesouro nacional e estão à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal.

Bibliografia:

“Cartas Astrológicas de Fernando Pessoa” editado por Paulo Cardoso e Jerônimo F. Pizarro
  • Livro: “Fernando Pessoa: Cartas Astrológicas”
    Editores: Paulo Cardoso e Jerônimo F. Pizarro
    Publicado em Lisboa por Bertrand Editora em 2011
  • Site da Editora bertrandeditora.pt

3. Fernando Pessoa conheceu o inglês Aleister Crowley quando este esteve em Portugal. Antes disso eles já haviam trocado correspondências, e em um momento da vida Pessoa chegou a traduzir o poema “Hino a Pã”, escrito por Crowley. Como foram os contatos e relações entre eles, e como a astrologia fez parte disso?

De facto em Setembro de 1930, e a título de resumo, deu-se em Lisboa um encontro muito peculiar entre duas pessoas tão diferentes, que em princípio seria quase impossível de imaginar.

Aleister Crowley — Fonte: theguardian.com

Edward Alexander Crowley (a partir dos 20 anos de idade utilizou a forma galesa Aleister do seu nome), nasceu a 12 de Outubro de 1875, era por isso, mais velho do que Pessoa, nascido a 13 de Junho de 1888. foi uma personalidade controversa e marginal, que nos primórdios do século XX, era relativamente conhecido como um excelente jogador de xadrez, poeta, escritor, já com obra publicada, toxicodependente.

Membro de várias ordens secretas (Golden Dawn; Argenteum Astrum; Ordo Templi Orientis), praticante de magias sexuais, viajante pelo mundo, alpinista nas montanhas mais altas do antigo Ceilão, espião para o British Intelligence em Nova Iorque durante a 1ª Grande Guerra e estudante em Cambridge.

Em parte algumas destas actividades foram financiadas pela fortuna que herdou dos pais. Dedicou-se a uma vida boémia em Paris. Foi também um profeta de uma religião que criou na Sicília, num templo chamado de Abbey of Thelema, com um dos princípios “Do what thou wilt shall be the whole of the Law”, e pintor em Berlim.

Manteve relações particulares com algumas personalidades célebres na época, como: Auguste Rodin, William Sommerset Maugham, Aldous Huxley, entre outros. Crowley também assinava as suas correspondências com outros nomes, como A Grande Besta (The Great Beast) ou 666. Também chegou a utilizar Frater Perdurabo (Liber 777).

À sua maneira, Pessoa foi ele também alguém marginal, introvertido, discreto, e com pouca obra publicada. Esta história do encontro entre Pessoa e Crowley, terminou também com um suicídio (de Crowley) que não aconteceu.

Vários incidentes e discussões entre Crowley e Hanni Jaeger, a sua companheira, terminaram com a partida desta para a Alemanha. Crowley decidiu fingir o seu suicídio para se vingar. Abandona em segredo o país e o suicídio é encenado na Boca do inferno¹, com a cumplicidade de Pessoa e de Augusto Ferreira Gomes (amigo de Pessoa, jornalista e astrólogo) A notícia saiu no Diário de Notícias/Notícias Ilustrado (n.º 21, 5 de Outubro de 1930), redigida por Pessoa e assinada por Ferreira Gomes.
¹ Formação rochosa, localizada em Cascais, próxima de Lisboa, local onde vários suicidas puseram termo à vida, inclusive o poeta Guilherme de Faria, em 1929

No dia 2 de Setembro de 1930 chega a Lisboa, a bordo do navio “Alcântara” o Mago Negro Aleister Crowley (considerado o “pior homem do mundo”), acompanhado da jovem Hanni Larissa Jaeger, também conhecida por “Dama Escarlate”. Crowley vinha a Lisboa no seguimento de correspondência mantida com Fernando Pessoa, que o foi esperar ao cais.

A relação entre Pessoa e Crowley teve início em 1929, quando o poeta após adquirir e ler a obra “The Confessions of Aleister Crowley”, ter detectado e comunicado a existência de um lapso no horóscopo do Mago à editora deste, Mandrake Press.

Capa de “The Confessions of Aleister Crowley” (esquerda) e o mapa astral de Crowley (direita). — Fonte: Biblioteca particular de Fernando Pessoa no site da Casa Fernando Pessoa

Crowley e Pessoa encontraram-se três vezes durante a estadia do Mago, até à simulação do suicídio deste na Boca-do-Inferno, em Cascais. Em termos literários, o que resultou deste encontro mágico, foi profícuo. Para além do poema Dá a surpresa de ser”, escrito a 10 de agosto de 1930, Pessoa também terá erigido o horóscopo de Hanni, embora não tenha mencionado o nome no cabeçalho da folha de papel em que o desenhou, o que revela algum fascínio por Hanni Jaeger.

Três semanas depois da estadia de Crowley em Portugal, Pessoa produziu o poema “O Último Sortilégio”, datado de 15 de outubro de 1930, que foi publicado na revista Presença. Deste poema, existem referências em cartas dirigidas a João Gaspar Simões. Na de 16 de outubro de 1930, Pessoa menciona:

“Uma advertência: este poema é uma interpretação dramática da «magia de transgressão». Se, por alguma circunstância, achar melhor não o publicar, não hesite em não o publicar.”

Na missiva datada de 30 de outubro de 1930, Pessoa refere que:

“Deveras e realmente, não posso dar-lhe explicação nenhuma sobre a génese particular deste poema. Sobre a génese geral dessa ordem de poemas é que talvez ha­veria alguma coisa a dizer. Mas isso não tem interesse estético nem psicológico.”

Ainda fazem parte do trabalho desenvolvido por Pessoa, uma tradução do poema de Crowley “Hymn to Pan” (“Hino a Pã”), publicada na revista Presença, nº 33. (Coimbra: Jul.-Out. 1931), e mais de 90 trechos de uma novela policial com o título “The Mouth of Hell” (“A Boca do Inferno”), para além da correspondência trocada entre o poeta e Crowley.

Bibliografia:

  • Livro: “Fernando Pessoa: O Guardador de Papéis”
    Organização: Jerónimo Pizarro
    Publicado em Lisboa por Texto Editores em 2009.
    rUm encontro impossível e um suicídio possível: Fernando Pessoa e Aleister Crowley
    , Steffen Dix.
    pp. 39–81;
  • Livro: “O Mistério da Boca-do-Inferno — O encontro entre o Poeta Fernando Pessoa e o Mago Aleister Crowley”
    Autor: Victor Belém
    Publicado em Lisboa por Casa Fernando Pessoa em 1995.
  • A última edição sobre o encontro: tintadachina.pt/produto/misterio-da-boca-do-inferno

Filme “Boca do Inferno” (2020)

Para além disso, foi feito um filme, com o título “Boca do Inferno”, que estreou a 26 de Agosto de 2020, nas Noites de Boris”, na Casa das Artes do Porto, numa sessão dedicada a Fernando Pessoa.

4. No texto “Notas para a recordação do meu mestre Caeiro” Álvaro de Campos diz que “O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o António Mora é um pagão, eu sou um pagão; o próprio Fernando Pessoa seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro”. Por que Pessoa não se tornou um pagão, e como seus heterônimos manifestaram o que ele não pôde ser?

A sua 4.ª pergunta é muito interessante. Como o próprio Pessoa disse na carta a Adolfo Casais Monteiro, trata-se de um drama em gente. Há um jogo de personagens.

A própria simplicidade de Caeiro não deixa de ser “simulada”, porque quando diz ele diz nos versos:

“Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender”

do poema XXIV de “O Guardador de Rebanhos”, significa que há toda uma trajectória intelectual complexa, porque revela que ele avaliou todo esse conhecimento que lhe foi dado, mas acabou por rejeitá-lo porque não encontro verdade nenhuma e o neopaganismo é o regresso ao homem primitivo, que supõe uma certa inocência, tal qual, uma criança.

Ele é o oposto de Pessoa, exactamente porque rejeitou o pensamento e deu um passo em frente na busca do arquétipo da felicidade que assenta na infância. Pessoa continua mergulhado na sua busca incessante pelos mistérios da existência, que só lhe podem trazer angústia, uma vez que não há respostas nem verdades absolutas.

O Neopaganismo moderno pode ser entendido como o regresso aos antigos deuses (gregos e latinos), na forma de fazer arte e literatura. Nas Notas de Campos, ele diz que

“Reis é um pagão por carácter, o Mora é um pagão por inteligência, ele próprio é um pagão por revolta, por temperamento, e que Caeiro é a consubstanciação do paganismo.”

Caeiro é o centro onde gravitam os heterónimos por serem seus discípulos, de acordo com as suas características próprias. O Neopaganismo seria representado por Caeiro, tal como diz Reis:

“A obra de Caeiro representa a reconstrução integral do paganismo, na sua essência absoluta, tal como nem os gregos nem os romanos, que viveram nele e por isso o não pensaram, o puderam fazer. A obra, porém, e o seu paganismo, não foram nem pensados nem até sentidos: foram vindos com o que quer que seja que é em nós mais profundo que o sentimento ou a razão.”

Pessoa também é um neopagão, à sua maneira porque desenvolveu uma forma própria de paganismo, o Paganismo Superior, com ligações ao Neoplatonismo e ao antigo imperador romano Juliano, o Apóstata, que tentou restaurar os templos dos antigos deuses que haviam sido destruídos.

Essencialmente o Paganismo Superior de Pessoa, é uma espécie de Paganismo para os tempos modernos, onde cabiam:

“todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos — fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior […]”.

Bibliografia:

“Alberto Caeiro, Descobridor da Natureza” e “Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português”
  • Livro: “Alberto Caeiro : ‘descobridor da natureza’?”
    Autora: Maria Helena Nery Garcez
    Publicado em Porto, por Centro de Estudos Pessoanos
    Ano: 1985
  • Livro: “Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português”
    Ccoordenação: Fernando Cabral Martins (Neopaganismo, Steffen Dix)
    Publicado em Lisboa por Editorial Caminho
    Ano: 2008
    Páginas consultadas: 523–526

5. Sabe-se que Fernando fez previsões astrológicas sobre a própria morte e sobre a morte de outra pessoa… qual era a visão do poeta-astrólogo (e seus heterônimos) sobre o que acontece após a morte?

De facto, são muito interessantes as suas perguntas. São pura filosofia.

A metafísica e a ontologia, como sejam a efemeridade da vida, a finalidade da morte, o sentido da existência estão presentes no caminho literário de Pessoa, essa sua busca constante pelas verdades.

Essa busca pelo que está oculto começa bastante cedo através de personagens literárias, como sejam os pré-heterónimos em língua inglesa: Charles Robert Anon e Alexander Search, que terão continuidade mais tarde no Pessoa ortónimo, quer nos heterónimos pagãos e em Álvaro de Campos.

Investigadores como Yvette Centeno e Pedro Teixeira da Mota apresentaram textos pessoanos que mostram a posição esotérica do poeta, e nesse sentido a sua pergunta sobre a vida para além da morte ou imortalidade poderá ser respondida à luz do que transparece da obra de Fernando Pessoa:

No início de 1913, Pessoa escreveu o conjunto de poemas “Além-Deus”, entre os quais, o seguinte:

IV — A Queda

Da minha ideia do mundo
Caí…
Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem Ali…

Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser. .
Escada absoluta sem degraus..
Visão que se não pode ver

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma…
Clarão de Desconhecido…
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido..

— Fernando Pessoa

Para ele a verdade está oculta;
(1) a verdadeira natureza da alma humana, da vida e da morte,
(2) a verdadeira maneira de entrar em contacto com as forças secretas da natureza e manipulá-las, e
(3) a verdadeira natureza de Deus ou dos Deuses e da creação do mundo.”
(Esp. 54–97).

Na sua nota biográfica, de 1935, quanto à sua posição religiosa, refere que:

“Cristão gnóstico, e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabala) e com a essência oculta da Maçonaria.”

Na carta a Adolfo Casais Monteiro de 13 de Janeiro de 1935, Pessoa refere que:

“Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiência de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. (…) Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, podemos ir comunicando com seres cada vez mais altos.”

Y. Centeno refere que

“a criação literária é, para Fernando Pessoa, uma das faces do mistério iniciático”.
(In, Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética.)

Por isso,

“(…) Ser iniciado é ser admitido à conversa dos Anjos. Uns ouvem, outros vêem e ouvem. Os primeiros estão à esquerda os outros à direita.”
(Esp. 54B-20).

Daí as referências aos Rosa-Cruz:

“I — Quando, despertos deste sono, a vida” Fernando Pessoa

NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ

Não tínhamos ainda visto o cadáver de nosso Pai prudente e sábio. Por isso afastámos para um lado o altar. Então pudemos levantar uma chapa forte de metal amarelo, e ali estava um belo corpo célebre, inteiro e incorrupto…, e tinha na mão um pequeno livro em pergaminho, escrito a oiro, intitulado T., que é, depois da Bíblia, o nosso mais alto tesouro nem deve ser facilmente submetido à censura do mundo.

Fama fraternitatis roseae crucis.

I

Quando, despertos deste sono, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à Noite que nos a Alma obstrui,

Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que há ou flui?
Não: nem na Alma livre é conhecida…
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.

Deus é o Homem de outro Deus maior:
Adam Supremo, também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador;

Foi criado, e a Verdade lhe morreu…
De além o Abismo, Espírito Seu, Lha veda;
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.

— Fernando Pessoa (Fonte)

Assim, a morte para Pessoa é apenas uma “passagem”, conforme as suas palavras,

“O significado real da iniciação é, para este mundo em que vivemos, um símbolo e uma sombra, que esta vida que conhecemos pelos sentidos é uma morte e um sono, ou, por outras palavras, que o que vemos é uma ilusão.”
(Esp. 54A-55)

Todo esse caminho é referido no poema, “Iniciação”:

“Iniciação” Fernando Pessoa

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.

……

O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.

……

A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.

……

Neófito, não há morte.

— Fernando Pessoa

para Yvette Centeno:

“(…) Fernando Pessoa encontra na filosofia hermética uma via para o instruir sobre a natureza do homem (e da arte na sua mais elevada dimensão), a natureza do Universo e de Deus. Alcança deste modo uma forma de sabedoria, a que lhe permite fechar o círculo da serpente ouroboros (A Ouroboros ou Oroboro é uma criatura mitológica, uma serpente que engole a própria cauda formando um círculo e que simboliza o ciclo da vida, o infinito, a mudança, o tempo, a evolução, a fecundação, o nascimento, a morte, a ressurreição, a criação, a destruição, a renovação. Muitas vezes, esse símbolo antigo está associado à criação do Universo), descobrindo e afirmando que ‘tudo é um’ e que ao artista, como ao adepto, compete ‘reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo…”

No conjunto de poemas, “Passos da Cruz”, publicados na revista Centauro, em 1916, 14 sonetos que simbolizam a via sacra, Pessoa remete para a ideia de ser escolhido por uma entidade metafísica para uma missão a desempenhar:

“Há um poeta em mim que Deus me disse… Há um poeta em mim que Deus me disse…” (…)

“Aconteceu-me do alto do infinito / Esta vida.” (…)

“Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela / E oculta mão colora alguém em mim.” (…)

“Emissário de um rei desconhecido / Eu cumpro informes instruções de além,” (…)

A questão da imortalidade da alma, está plasmada no seu único livro publicado em português, “Mensagem”, uma contemplação do passado versando um futuro espiritual de um bem comum como o (5.º Império, espiritual) assente na cultura, na literatura e língua portuguesas.

Poderá também encontrar a imortalidade simbólica no desdobramento em vários, aí também Pessoa recusou a morte.

A perspectiva da imortalidade na visão dos heterónimos:

Álvaro de Campos

Que à sua maneira, e de acordo com as suas fases, alterna o religioso com o ateu. Como é o heterónimo das sensações, a imortalidade é vista para além do corpo.

“Estou cansado da inteligência” Álvaro de Campos

Estou cansado da inteligência.
Pensar faz mal às emoções.
Uma grande reacção aparece.
Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo
Na casa antiga da quinta velha.
Pára. meu coração!
Sossega, minha esperança factícia!
Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui…
Meu sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!
Meu horizonte de quintal e praia!
Meu fim antes do princípio!
Estou cansado da inteligência.
Se ao menos com ela se percebesse qualquer coisa!
Mas só percebo um cansaço no fundo, como baixam internas
Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho.

— Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), 18 de junho de 1930 (Fonte)

Ricardo Reis

O quanto somos fracos, frágeis e estamos prometidos à morte. Para este heterónimo, cuja filosofia se baseia no Epicurismo e no Estoicismo, há a procura de uma tranquilidade (ataraxia), face à angustia do homem perante a efemeridade da vida, da fugacidade do tempo, e da fatalidade da morte. (…) « a verdade se existe é com os Deuses»(…)

“Nada fica de nada. Nada somos. [2]” Ricardo Reis

Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pesa
Da húmida terra imposta.
Leis feitas, estátuas altas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, porque não elas?
O que fazemos é o que somos. Nada
Nos cria, nos governa e nos acaba.
Somos contos contando contos, cadáveres
Adiados que procriam.

— Ricardo Reis (Fernando Pessoa), 28 de agosto de 1932 (Fonte)

Alberto Caeiro

Embora hoje em dia face à teoria do Bigbang se diga que o cosmos é finito, tal como o planeta Terra e o Sol, uma vez que tudo o que nasce morre, Caeiro perspectiva a imortalidade neste poema utilizando o universo como algo que vai para além do tempo.

Caeiro foi construído como uma personagem que recusa o pensamento, o metafísico, o mistério, a filosofia e o misticismo.

“Aceita o universo” Alberto Caeiro

Aceita o universo
Como to deram os deuses.
Se os deuses te quisessem dar outro
Ter-to-iam dado.

Se há outras matérias e outros mundos
Haja.

— Alberto Caeiro, 1º de outubro de 1917 (Fonte)

Bibliografia:

  • CENTENO, Yvette, Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética. Lisboa: Editorial Presença, 1985;
  • CENTENO, Y. K., Fernando Pessoa, O Amor, A Morte, A Iniciação. Lisboa: A Regra do Jogo, 1985;
  • PESSOA, Fernando, Heróstrato e a Busca da Imortalidade, edição de Richard Zenith, tradução de Manuela Rocha. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.
  • Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, coordenação de Fernando Cabral Martins (Imortalidade, Pedro Teixeira da Mota). Lisboa: Editorial Caminho, 2008, pp. 352–353;
José Correia

Entrevistado: José Correia

Licenciado em Sociologia e Pós-Graduado em Sociologia das Religiões. Exerço funções de pesquisa bibliográfica e consultoria na biblioteca da Casa Fernando Pessoa, desde 2009.

Entrevista feita por Ormando zhiOmn no outono de 2021.

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