“Augusto” Hermann Hesse (Conto)

“Augusto” é um conto de Hermann Hesse. No Brasil, ele foi publicado no livro “Sonho de uma Flauta e outros contos”. O título do livro em alemão é “Märchen”, que significa “Conto de Fadas”, e ele foi publicado pela primeira vez em 1919.

zhiOmn Ormando
Ormando zhiOmn
31 min readMay 9, 2020

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Retrato de Hermann Hesse — Fonte: commons.wikimedia.org

Na rua Mostack morava uma jovem senhora, que por infelicidade perdera seu marido logo após o casamento, e agora ela sentava ali em seu pequeno quarto, pobre e abandonada, e esperava uma criança que não teria pai. E porque estava assim tão sozinha, todos os seus pensamentos demoravam-se na criança por nascer, e nada houve de belo e magnífico e invejável, que ela não tivesse inventado e desejado e sonhado para essa criança. Uma casa de pedra com vidraças de cristal e repuxo no jardim pareceu-lhe já bastante bem para o pequeno, e, quanto ao futuro, ele se tornaria no mínimo um professor ou um rei.

Ao lado da pobre senhora Elisabeth morava um homem idoso, a quem só raramente se via sair, e eis que ele era um sujeitinho pequeno, grisalho, com uma boina redonda e um guarda-chuva verde, cujo cabo ainda era feito de osso de baleia como nos velhos tempos. As crianças tinham medo dele, e os grandes pensavam que ele decerto teria motivos para viver tão retirado Muitas vezes não era visto por ninguém durante longo tempo, mas de quando em quando se ouvia à noite, vinda de sua casinha em ruínas, uma música delicada, como o som de vários instrumentos pequeninos e suaves. Então crianças passando por ali perguntavam às mães se lá dentro cantavam anjos ou talvez ninfas, porém as mães nada sabiam a respeito e diziam:

— Não, não, isso deve ser uma caixa de música.

Esse homenzinho, a quem chamavam Sr. Binsswanger, tinha com a senhora Elisabeth uma forma singular de amizade. Eles nunca falavam um com o outro, mas o pequeno, o velho Sr. Binsswanger, toda vez que via à janela sua vizinha, cumprimentava-a amigavelmente, e ela agradecida retribuía-lhe o aceno e gostava dele e ambos pensavam: se uma vez algo de muito mau me acontecer, então com certeza hei de querer pedir conselho na casa vizinha. E quando escurecia e a senhora Elisabeth sentava solitária à janela, lamentando seu querido morto, ou pensando em sua pequena criancinha, e finalmente adormecia, aí o Sr. Binsswanger abria devagarinho uma banda de janela, e de seu escuro quarto nascia uma música consoladora, suave e argentina, como um raio de luar filtrado entre nuvens. Por sua vez, o vizinho tinha na beirada da janela de trás alguns velhos pés de gerânio, que ele sempre esquecia de regar, e que apesar disso estavam sempre verdes e cheios de flores e nunca tinham uma só folha enrugada, porque todos os dias bem cedo a senhora Elisabeth cuidava deles e os regava.

Então quando já era o outono, numa tarde chuvosa, rude e cheia de vento e na rua Mostack não se via ninguém, a pobre senhora compreendeu que o momento havia chegado, e aí ela teve medo, porque estava totalmente só. Porém quando a noite veio, uma velha mulher com um candeeiro na mão apareceu, entrou, ferveu água, ajeitou panos de linho e fez o que é preciso fazer quando uma criança deve vir ao mundo. A senhora Elisabeth deixou que tudo se passasse em silêncio, e apenas quando a criancinha já estava ali, embrulhada em fraldas novas e macias, e começava a dormir o seu primeiro sono na Terra, c que perguntou à velha, de onde pois, ela era.

— O Sr. Binsswanger mandou-me — disse a velha e, com isso, a cansada senhora adormeceu, e quando na manhã seguinte tornou a acordar, havia ali para ela leite fervido e tudo no quarto estava limpo e arrumado, e ao seu lado o filhinho gritava. porque tinha fome; mas a velha mulher já se fora. A mãe tomou o pequeno ao seio e alegrou-se de que ele fosse tão belo e forte. Pensava em seu pai que morrera e que não pudera vê-lo, e subiram-lhe lágrimas aos olhos, e ela acariciou o pequeno orfãozinho e então tornou a rir, e assim adormeceu de novo, junto com o menino, e quando despertou, ali estavam leite e uma sopa cozida, e a criança embrulhada em fraldas novas.

Breve porém a mãe era de novo saudável e forte bastante, e já podia ela mesma cuidar de si e do pequeno Augusto, e então veio-lhe o pensamento de que agora o filho precisava ser batizado, e que ela não tinha um padrinho para ele. Assim, ao cair da tarde, quando começava a anoitecer e a doce música de novo se ouvia na casa vizinha, ela foi ver o Sr. Binsswanger. Bateu timidamente à porta escura, aí ele gritou com voz amiga “Entre!” e veio-lhe ao encontro; a música porém de súbito cessara e na peça havia uma pequena e velha lâmpada de mesa diante de um livro e tudo era como em casa de outras pessoas.

— Vim até vós — disse a senhora Elisabeth — para vos agradecer, porque vós me mandastes a boa senhora. Também terei prazer em pagá-la, apenas quando já puder trabalhar e ganhar um pouco de dinheiro. Mas agora tenho uma outra preocupação. O garoto precisa ser batizado e deve chamar-se Augusto, como se chamou seu pai; porém não conheço ninguém e não sei de nenhum padrinho para ele.

— Sim, também pensei nisso — disse o vizinho e alisou a barba cinzenta. Seria bom se ele tivesse um padrinho rico e bondoso, que velasse por ele, no caso de um dia algo ruim vos acontecer. Mas eu sou apenas um velho solitário e tenho poucos amigos, por isso não posso aconselhar-vos ninguém, se vós não quiserdes tomar-me a mim mesmo por padrinho.

Com isso a pobre mãe ficou feliz e agradeceu ao velhote e tomou-o por padrinho. No domingo seguinte levaram o pequeno à igreja e fizeram-no batizar, e aí apareceu também de novo a velha senhora e deu-lhe um táler* de presente, e quando a mãe não quis aceitar, a velha disse:

— Tomai, sou velha e com isso tenho o que preciso. Quem sabe se o táler* lhe trará sorte. Uma vez tive o prazer de prestar um favor ao Sr. Binsswanger. Somos velhos amigos.

* Táler — correspondente a três Marcos

Aí voltaram juntos para casa e a senhora Elisabeth preparou café para os seus hóspedes, e o vizinho tinha trazido um bolo que foi um verdadeiro banquete de batizado. Mas quando já tinham bebido e comido e a criancinha havia muito adormecera o Sr Binsswanger falou:

— De modo que agora sou o padrinho do pequeno Augusto e gostaria de oferecer-lhe como presente um castelo de reis e um saco cheio de moedas de ouro, porém isso eu não tenho, e tudo que me resta é colocar para ele um táler junto da senhora comadre. Entretanto, o que puder fazer por ele deve acontecer. Senhora Elisabeth, vós com certeza haveis desejado para vosso garoto muito de bom c de belo. Agora meditai sobre o que vos parece ser o Melhor para ele, então cuidarei de que isso se torne verdade. Tendes livre um desejo para vosso rapaz, aquele que quiserdes, mas apenas um, meditai bem; e quando hoje à noite ouvirdes minha pequena caixa de música, então deveis pronunciar o desejo a orelha esquerda de vosso menino, aí ele será realizado.

Com isso despediu-se depressa e a comadre foi embora com ele, e a senhora Elisabeth ficou sozinha e toda admirada, se não fossem os dois táleres no berço e se o bolo não tivesse fundo em cima da mesa, ela teria tomado tudo por um sonho. Assim, sentou-se perto do berço e começou a embalar a criança e cismava e pensava lindos desejos. Primeiro queria torna-lo rico, ou belo, ou espantosamente forte, ou sensato e inteligente, mas em tudo havia uma desvantagem, e por fim ela pensou: “Ah, isso foi com certeza apenas um gracejo do velho homenzinho.”

Já havia escurecido e ela por pouco não adormecera ao lado do berço, cansada do trabalho e das preocupações e dos muitos desejos, quando, vinda da casa vizinha, ouviu-se uma música deliciosa e suave, tão fina e delicada, como jamais ouviu som de nenhuma caixa de música. Aquilo fez com que a senhora Elisabeth se recordasse e tornasse a si, e agora ela novamente acreditava no vizinho Binsswanger e em seu presente de batizado e quanto mais refletia e quanto mais queria desejar, mais tudo se embaralhava em sua cabeça, de modo que não podia decidir-se por coisa alguma.

Assim ficou toda aflita e tinha lágrimas nos olhos, e já a música soava mais distante e mais fraca, e ela pensou que se não dissesse seu desejo naquele instante, então seria muito tarde e tudo estaria perdido.

Suspirando curvou-se para o seu menino e murmurando-lhe à orelha esquerda:

— Meu filhinho, eu te desejo — eu te desejo — e quando a linda música já quase cessara de todo, ela assustou-se e disse depressa: — Desejo que todas as pessoas sempre sejam obrigadas a gostar de ti.

Os sons agora cessaram e havia um silêncio de morte na peça escura. Porém ela atirou-se chorando sobre o berço e estava cheia de temor e angústia e gritou:

— Ah, eu te desejei a melhor coisa que sabia, mas afinal talvez não tenha sido o certo. E também mesmo que todos, todas as pessoas gostem de ti, ninguém nunca poderá gostar tanto de ti quanto tua mãe.

Augusto cresceu como as outras crianças; era um lindo menino, louro, de olhos claros e corajosos, mimado pela mãe e em todo canto bem recebido. A senhora Elisabeth não demorou a notar que seu desejo do dia do batizado cumpria-se na criança, pois nem bem o pequeno já tinha idade para andar, e saía à rua e encontrava outras pessoas, todos o achavam tão lindo e atrevido e inteligente como poucas crianças, e cada um segurava-lhe a mão, olhava-o nos olhos e dava-lhe o melhor de si mesmo. Jovens mães sorriam para ele e velhotas ofereciam-lhe maçãs, e quando em algum lugar praticava-se uma travessura, ninguém acreditava que tivesse sido ele, ou quando se tornava impossível negálo, as pessoas encolhiam os ombros e diziam:

— Não se pode levar a mal de verdade um garoto tão engraçado.

Houve gente que por causa do lindo menino passou a tornar-se atenciosa com sua mãe, e ela, que não conhecera ninguém e antes só recebera em casa poucos trabalhos de costura, agora era bem conhecida como a mãe do Augusto e tinha mais protetores do que nunca haveria podido desejar. As coisas corriam bem para ela e para o garoto, e aonde os dois fossem juntos, a vizinhança alegrava-se, saudava-os e seguia-os com os olhos.

O melhor de tudo, Augusto tinha-o ao lado com seu padrinho. Este de quando em quando o chamava à noite para a sua casinha ali estava escuro e somente no negro buraco do ardia uma chama pequena e vermelha, e o velhote sentava junto ao menino sobre uma pele no chão e olhava com ele a chama silenciosa e contava-lhe compridas histórias. Mas às vezes quando uma história assim grande terminava e o pequeno já sonolento mirava o fogo com os olhos fechados nascia da escuridão uma música doce e fina, e quando ambos a escutavam em silêncio por um longo momento, aí acontecia com frequência que o quarto ficava cheio de pequenas crianças brilhantes, que voavam em círculo com suas claras asas douradas, para lá e para cá, como em lindos bailados cheios de arte, em torno umas das outras, e em pares, e ao mesmo tempo cantavam e isso soava pleno de alegria e de serena beleza. Aquilo era a coisa mais bonita que Augusto jamais vira e ouvira, e quando mais tarde ele pensava em sua infância, então era o sombrio e silencioso quarto do padrinho, e a chama vermelha no fogão, com a música e com o alegre voo encantado dos anjos, o que lhe surgia na memória e lhe dava saudade.

Entretanto o menino cresceu, e agora, muitas vezes sua mãe tinha momentos em que ficava triste e que a faziam relembrar aquela noite do batizado. Augusto corria alegremente de um lado para o outro pelas ruas da vizinhança e em toda parte era bem-vindo, ganhava de presente nozes e peras, bolos e brinquedos, as pessoas lhe davam de comer e de beber, deixavam-no montar a cavalo cm seus joelhos e colher flores nos jardins, e com frequência ele só voltava tarde para casa e contrariado empurrava para longe de si a sopa de sua mãe. E então quando ela se afligia e chorava, ele achava aquilo aborrecido e ia para a sua caminha com cara de poucos amigos; e quando uma vez ela ralhou com ele e o puniu, ele gritou bem alto c queixou-se de que toda gente o agradava e era simpática com ele, menos sua mãe. Por isso ela tinha tantos momentos de tristeza e às vezes irritava-se seriamente contra o seu menino, porem quando mais tarde via-o deitado sobre o travesseiro c que a luz da vela brilhava sobre o inocente rosto da criança, aí toda dureza desaparecia do seu coração e ela o beijava devagarinho, com cuidado para que ele não acordasse. Era sua própria culpa se toda gente gostava do Augusto, e ela às vezes pensava com tristeza e quase com terror que talvez fosse melhor que nunca tivesse feito aquele desejo.

Uma vez ela estava exatamente à janela dos gerânios do Sr. Binsswanger e com uma pequena tesoura cortava as flores murchas do pé, aí ouviu no pátio que ficava atrás das duas casas a voz do seu garoto e debruçou-se para espiar. Viu-o encostar-se ao muro, com seu rosto bonito e um pouco orgulhoso, e à sua frente estava uma menina maior, que o olhava suplicante e dizia:

— Combinado, tu és bonzinho e me dás um beijo?

— Não quero — disse Augusto e enfiou as mãos nos bolsos.

— Sim, por favor — disse ela de novo. Também quero te dar uma coisa linda.

— Que é? — perguntou o menino.

— Tenho duas maçãs — disse ela timidamente.

Mas ele virou-lhe as costas e esboçou uma careta.

— Não gosto de maçãs — disse, desdenhoso, e queria ir embora.

A menina, porém, segurou-o e disse para adulá-lo: — Escuta, tenho também um lindo anel.

— Mostra aqui! — disse Augusto.

Ela mostrou o anel, ele o olhou bem, então tirou-lhe do dedo e colocou-o no seu próprio, segurou-o na luz e achou prazer nisso.

— Bem, então podes ganhar um beijo — disse distraidamente e deu-lhe um rápido beijo na boca.

— Queres agora vir brincar comigo? — perguntou ela com meiguice e pendurou-se ao seu braço.

Mas ele empurrou-a para longe e gritou bem forte:

— Deixa-me em paz, afinal! Tenho outras crianças com quem posso brincar.

Enquanto a menina, chorando, deixava o pátio, ele fazia uma cara aborrecida e zangada; depois girou o anel no dedo e observou-o bem, aí começou a assobiar e caminhando lentamente foi-se embora dali.

Sua mãe, porém, quedou-se imóvel com a tesoura na mão, chocada pela dureza e pelo desprezo com que sua criança tomava o amor alheio. Esqueceu as flores e ali ficou balançando a cabeça e repetindo para si mesma: “Ele é mau sim, ele não tem coração.”

Mas, logo depois, quando Augusto voltou para casa e ela começou a interpelá-lo, ai ele olhou-a rindo com seus olhos azuis e não tinha nenhum sentimento de culpa, e então começou a cantar e a suplicar-lhe e estava tão engraçado e simpático e carinhoso com ela, que ela teve que rir e viu bem que com crianças não se pode levar tudo tão a sério.

No entanto as más ações do menino não ficavam totalmente sem castigo. O padrinho Binsswanger era o único por quem ele linha veneração, e quando à noite ele entrava na sala e o padrinho dizia: “Hoje a chama não queima no fogão, e não há música, os anjinhos estão tristes, porque fostes tão mau “,então ele saía em silêncio para casa e jogava-se sobre o leito e chorava, e depois durante dias seguidos fazia toda a força para ser bom e gentil.

Todavia a chama no fogão queimava sempre mais e mais raramente, e o padrinho não era de se corromper nem com lágrimas nem com carícias. Quando Augusto tinha doze anos, o encantado voo dos anjos na sala do padrinho já se tornara para ele um sonho distante, e quando ele alguma vez o sonhava à noite, então no dia seguinte tornava-se em dobro selvagem c barulhento e comandava seus muitos camaradas como um general por cima de muros e cercas.

Sua mãe havia muito estava cansada de ouvir toda gente elogiar o garoto, de como ele era fino e educado; ela ainda só tinha preocupações com ele. E quando um dia o professor veio-lhe contar que conhecia alguém que estava disposto a mandar o menino para uma escola estrangeira e deixá-lo estudar, aí ela teve uma conversa com o vizinho, e logo depois, numa manhã de primavera, chegou um carro e Augusto, com roupas novas c bonitas, entrou nele e disse à mãe e ao padrinho e à gente da vizinhança vivei bem, porque lhe fora permitido viajar para a capital e estudar. Sua mãe penteara-lhe pela última vez o cabelo louro e o abençoara, e agora os cavalos partiam e Augusto seguia para o mundo desconhecido.

Depois de muitos anos, quando o jovem Augusto se tornara um estudante e usava boinas vermelhas e um bigode, aí uma vez ele viajou de volta para a sua cidade, porque o padrinho lhe escrevera que sua mãe estava tão doente que não poderia mais viver por muito tempo. O rapaz chegou à noitinha e as pessoas viram com admiração como ele descia do carro e como o cocheiro carregava atrás dele até a casinha uma grande mala de couro. A mãe porém restava agonizante no velho quarto do lado, e quando o lindo estudante viu reclinado sobre a almofada branca um rosto pálido e murcho, de que apenas os olhos silenciosos conseguiam saudá-lo, aí ele caiu chorando à beira do leito e beijou as frias mãos de sua mãe e deixou-se ficar de joelhos perto dela durante toda a noite, até que as mãos se tornassem geladas e os olhos se fechassem.

E quando enterraram a mãe, o padrinho Binsswanger pegou-o pelo braço e foi com ele para a sua casinha, que ao jovem parecia ter-se tornado ainda mais baixa e mais escura, e quando já longo tempo estavam sentados ao lado um do outro e apenas algumas janelinhas ainda brilhavam fracamente na escuridão, aí o velhote alisou com seus dedos magros a barba grisalha e disse a Augusto:

— Quero acender uma chama no fogão, assim não precisaremos de lâmpada. Sei que deves partir de novo amanhã, e agora tão cedo não serás visto ali onde tua mãe morreu.

Enquanto dizia isso, acendeu uma pequena chama no fogão e aproximou sua cadeira, e o estudante a dele, e então de novo se deixaram ficar sentados por um longo momento e olhavam as brasas que morriam, até que as centelhas quase desapareceram, e aí o velho com doçura falou:

— Vive bem Augusto, eu te desejo tudo de bom. Tiveste uma mãe corajosa, e ela fez mais por ti do que imaginas. De boa vontade teria eu ainda uma vez feito música para ti e te mostrado os pequenos espíritos, porém sabes que isso já não é possível. Entretanto não deves nunca esquecê-los e lembra-te que eles ainda cantam e que também tu talvez possas tornar a ouvi-los, se algum dia os procurares com um coração solitário e saudoso. Dá-me agora a mão, meu rapaz, sou velho e preciso ir dormir.

Augusto deu-lhe a mão e não pôde dizer nada, saiu tristemente para a casinhola deserta, a fim de pela última vez dormir no antigo lar, e antes que adormecesse teve a impressão de ouvir, ao longe, distante e suave, a doce música de sua infância. Na manhã seguinte partiu dali e durante muito tempo ninguém ouviu falar a seu respeito.

Breve também esqueceu o padrinho Binsswanger e seus anjos A vida rica envolvia-o, levando-o em seu rojão. Ninguém melhor do que ele sabia cavalgar pelas ruelas movimentadas saudando com olhares despóticos as mocinhas que o admiravam ninguém, como ele, compreendia a dança, de maneira tão simples e atraente; ninguém, como ele, conduzia um carro, com tanto descuido e elegância, ou, como ele, ninguém sabia com tanto brilho e vivacidade passar um noite de verão a beber no jardim. A rica viúva, de quem era o amante, dava-lhe dinheiro e cavalos e tudo, o que ele precisava e o que queria ter, com ela viajava para Paris e para Roma e dormia em seu leito de seda; seu amor porém era a loura e suave filha de um burguês, a quem ele, com riscos, visitava à noite no jardim de seu pai e que durante muito tempo escreveu-lhe cartas longas e ardentes, quando ele estava em viagem.

Mas uma vez ele não voltou. Encontrara amigos em Paris, e como a rica viúva se havia tornado desinteressante e o estudo já desde muito lhe parecia aborrecido, ficou na terra longínqua e viveu como o grande mundo, teve cavalos, cães, mulheres, perdeu dinheiro e ganhou dinheiro a rodo, e por toda parte havia gente que o seguia, dando-lhe tudo de si e servindo-o, e ele ria e aceitava aquilo com desprezo, como quando garoto aceitara uma vez com desprezo o anel da menina. O desejo encantado morava em seus olhos e em seus lábios, mulheres rodeavam-no de carícias e amigos inflamavam-se por sua causa, e ninguém via — ele próprio percebia-o mal — como seu coração se tornara vazio e ávido, e como sofria sua alma doente. Com frequência cansava-o o ser assim querido por todos, e saía disfarçado, andando por cidades desconhecidas, e em todo lugar achava as pessoas tolas e demasiado fáceis de vencer, e em todo lugar o amor, que o acompanhava tão fervoroso, parecia-lhe risível e somente tão poucos o satisfaziam. Mulheres e homens muitas vezes causavam-lhe asco por não ser mais orgulhosos, e ele passava dias inteiros sozinho com seus cães, em belos campos de caça na montanha, e um veado que conseguisse surpreender e que abatesse, fazia-o mais feliz que a corte de uma mulher bonita e mimada.

Foi quando uma vez viu, durante viagem por mar, a jovem esposa de um embaixador, severa e esguia dama da nobreza nórdica, que se mantinha num altivo isolamento entre várias outras elegantes senhoras e pessoas da sociedade, silenciosa e cheia de orgulho, como se ninguém se lhe fosse comparável; e quando ele a viu e observou como seu olhar só parecia roçá-lo, com ligeireza e indiferença, foi como se pela primeira vez na vida entendesse o que era amor, e esse amor ele decidiu ganhar, e dali por diante cada hora do dia passava-a a seu lado e debaixo de seus olhos, e porque ele próprio era sempre rodeado de homens e mulheres que o admiravam e buscavam sua companhia, em meio à comitiva da viagem, com a bela orgulhosa, tinha o ar de um príncipe com sua princesa, e também o marido da loura o distinguia e esforçava-se por agradá-lo.

Nunca lhe era possível estar a sós com a desconhecida, até que em um porto do sul toda a comitiva desceu do navio, a fim de dar uma voltas pela cidade e por um momento tornar a sentir o chão sob os pés. Ele aí não se afastou por um instante da amada, até que em meio ao tumulto de uma feira livre conseguiu falar-lhe. Inúmeras vielas pequenas e estreitas desembocavam naquela praça, ele conduziu-a por uma, ela acompanhou-o confiante; mas quando de súbito sentiu-se sozinha com ele e intimidada e que já não viu mais a comitiva, ele virou-se impetuosamente, tomou-lhe a mão hesitante e instou-lhe para que ficassem ambos em terra e fugissem.

A estranha empalidecera e manteve os olhos pregados no chão.

— Oh, isso não é de um cavalheiro — falou baixinho. — Permita-me que esqueça o que acaba de me dizer!

— Não sou um cavalheiro — gritou Augusto — sou um namorado, e um namorado só sabe de sua amada, e não conhece outro pensamento, além de estar junto dela. Ah, tu, linda, vem comigo, seremos felizes.

Ela o olhou com seus claros olhos azuis, séria e punitivamente:

— Como, pois, poderia o senhor saber — murmurou queixosa — que o amo? Não sei mentir: gosto do senhor e muitas vezes desejei que quisesse ser meu marido. Pois o senhor foi o primeiro a quem amei de coração. Ah, como se pode de tal maneira desvirtuar o amor! Nunca pensaria ser-me possível amar uma pessoa que não fosse pura e boa. Porém mil vezes prefiro ficar ao lado de meu marido, a quem pouco amo, mas que é um cavalheiro cheio de honra e nobreza, coisas que o senhor não conhece. E agora não me dirija mais uma palavra e reconduza-me ao navio, caso contrário pedirei socorro à gente estranha pela sua insolência.

E como ele pedia e suplicava, ela afastou-se e iria embora sozinha, se ele não se aproximasse e silencioso a acompanhasse ao navio. Ali fez descer à terra suas malas e não se despediu de ninguém.

A partir de então a felicidade do bem-amado teve fim. Virtude e honradez eram-lhe agora detestáveis, ele as tratava a pontapés, e seu prazer consistia em seduzir mulheres virtuosas com toda a arte do seu encantamento, e em abandonar cheio de escárnio a gente ingênua que imediatamente se fazia sua amiga, depois de tê-la explorado. Tornava pobres mulheres e moças, as quais repelia em seguida, preferia jovens de casas fidalgas, a quem seduzia e arruinava. Nenhum prazer que não procurasse, até o esgotamento, nenhum vício que não aprendesse c novamente rejeitasse. Mas já não havia alegria em seu coração, ou resposta em sua alma ao amor que de todas as partes lhe chegava.

Numa bela casa à beira-mar ele vivia sombrio e rabugento, e atormentava as mulheres e os amigos que ali o visitavam, com os mais extravagantes caprichos e maldades. Ansiava por degradar as pessoas c mostrar-lhes todo o desprezo; estava cheio e farto de ver-se rodeado de um amor que não pedira, que não desejara, que não merecera; sentia o vazio de sua vida desperdiçada e transtornada, que nunca dera e sempre somente possuíra. Às vezes durante longo tempo passava fome, apenas a fim de sentir de novo um desejo verdadeiro e poder acalmar uma necessidade.

Espalhava entre os amigos a notícia de que estava doente e precisava de calma e solidão. Chegavam cartas que ele nunca lia, e pessoas preocupadas informavam-se com a criadagem sobre a sua saúde. Entretanto ele sentava sozinho e amargo no salão que dava para o mar; sua vida jazia atrás dele, vazia e devastada, estéril e sem esperança de amor, como as ondas cinzentas e agitadas. Parecia horroroso, assim de cócoras sobre o assento, à beira da janela mais alta, enquanto prestava contas a si próprio. Gaivotas brancas boiavam perto da praia, ele as seguia com um olhar vazio, do qual toda ventura e toda participação desapareceram. Só em seus lábios bailava um sorriso duro e maldoso, quando tendo terminado suas reflexões fez soar a campainha, chamando o criado. E agora mandou convidar todos os seus amigos para uma festa num dia determinado; seu propósito, porém, era aterrorizar os recém-chegados e escarnecê-los com a visão de uma casa deserta e do seu próprio cadáver. Pois estava decidido, com veneno, dar fim à vida.

Então na noite da suposta festa, despediu toda a criadagem, para que se fizesse silêncio nos grandes salões, e deixou-se ficar em seu quarto, misturou um veneno forte num copo de vinho de Chipre e levou-o aos lábios.

No instante exato em que queria beber, bateram à porta, e como ele não dava resposta, a porta se abriu e um velhote entrou. Caminhou até Augusto, tomou-lhe cuidadosamente das mãos o copo cheio e disse numa voz bem conhecida:

— Boa-noite, Augusto, como estás?

Pegado de surpresa, zangado e envergonhado também, ele sorriu cheio de ironia e disse:

— Sr. Binsswanger, o senhor também ainda vive? Já faz tempo, e o senhor na verdade não parece ter envelhecido. No momento porém o senhor aqui me incomoda, meu caro, estou cansado e quero beber um trago para dormir.

— Isso vejo eu — respondeu o padrinho calmamente. Queres beber um trago para dormir, e tens razão, este é para ti o último vinho que ainda te pode ajudar. Mas antes vamos conversar por um minuto, meu rapaz, e já que tenho atrás de mim um longo caminho, não te zangarás se eu beber um pequeno gole para me revigorar.

Com isso tomou o copo e levou-o à boca, e antes que Augusto pudesse detê-lo, ergueu-o e esgotou-o de uma só vez.

Augusto tornara-se mortalmente pálido. Arremessou-se sobre o padrinho, sacudiu-o pelos ombros e gritou estridente:

— Velho, sabes o que bebeste aí?

O Sr. Binsswanger assentiu com a cabeça grisalha e inteligente e sorriu:

— É vinho de Chipre, como vejo, e não é ruim. Tu não pareces sofrer necessidades. Mas tenho pouco tempo e já não te importunarei, se fizeres o favor de me escutar.

Assombrado, o homem olhava com horror o padrinho em seus olhos claros e esperava de instante para instante vê-lo tombar.

O padrinho todavia quedava sentado confortavelmente em sua cadeira e sacudiu a cabeça com bondade para o seu jovem amigo

— Preocupa-te que o gole de vinho pudesse fazer-me mal? Descansa! T. gentil de tua parte que te preocupes comigo, ou não o teria suspeitado. Mas agora conversemos um pouco como nos velhos tempos! A mim me parece que te fartaste da vida fácil? Compreendo isso, e quando eu for embora, podes tomar encher teu copo e bebê-lo. Mas antes preciso contar-te algo.

Augusto apoiou-se à parede e escutou a voz boa e agradável daquele homenzinho tão velho, voz que lhe restara familiar desde a infância e que acordava em sua alma sombras do passado. Uma vergonha e uma tristeza profundas apoderaram-se dele, como se mirasse nos olhos sua própria e inocente infância.

— Bebi teu veneno — cominou o velho — porque sou eu o culpado de tua miséria. Quando do teu batizado tua mãe fez por ti um desejo, e eu o cumpri, embora ele fosse insensato. Não tens necessidade de conhecê-lo, tornou-se uma maldição, como tu próprio sentiste. Lamento que tenha sido assim, e cu me alegraria bem, se ainda chegasse a ver-te de novo uma vez comigo em casa, sentado diante do fogão e que ouvisses os anjos cantarem. Não é fácil, e no momento parece-te talvez impossível que teu coração jamais se torne curado, puro e sereno. É possível, porém, e eu gostaria de pedir-te que tentes. O desejo de tua pobre mãe saiu-te mal, Augusto. Como seria agora, se me permitisses realizar também um desejo teu, qualquer um? Não quererás desejar dinheiro e fortuna, nem poder ou amor de mulheres, disso já tiveste bastante. Medita, e quando achares que sabes de um encanto que possa mudar tua vida transtornada e fazê-la de novo mais bela e melhor, e fazer-te a ti novamente feliz, então deseja-o!

Augusto quedou mergulhado em profundas reflexões e calou-se, mas estava cansado demais e sem esperanças, assim disso depois de um momento:

— Eu te agradeço, padrinho Binsswangcr. Mas creio que minha vida já não pode ser consertada é melhor que eu faça o que pensei fazer, quando entraste Mas te agradeço teres vindo.

— Sim — disse o velho com prudência — posso imaginar que não te pareça fácil. Mas talvez se pensardes ainda um pouco, Augusto, talvez te ocorra aquilo que até agora mais te faltou, ou talvez possas te lembrar dos tempos passados, quando tua mãe ainda vivia e que às vezes à noite vinhas até minha casa. Então houve horas em que foste feliz, não?

— Sim, naquele tempo — assentiu Augusto, e o quadro radioso do princípio de sua vida deparava-se-lhe longínquo e pálido, como de um espelho muito antigo. — Mas isso não pode voltar. Não posso desejar tornar-me de novo uma criança. Aí tudo recomeçaria!

— Não, isso não faria sentido, tens razão. Mas pensa novamente no tempo lá em casa e na pobre rapariga, que quando estudante visitaste à noite no jardim do seu pai, e pensa também na linda senhora loura, com quem uma vez viajaste num navio, e pensa em cada instante em que uma vez foste feliz e em que a vida te parecia boa e digna de ser vivida. Talvez possas reconhecer aquilo que então te fez feliz e desejá-lo. Faz isso por amor a mim, meu rapaz!

Augusto fechou os olhos e olhou para trás em sua vida, como de um caminho escuro olha-se um longínquo ponto luminoso, de onde se veio, e tornou a perceber como tudo uma vez fora claro e belo ao seu redor e como então, devagar, tudo se tornara mais e mais escuro até que trevas o envolvessem e nada mais conseguisse alegrá-lo. E à medida que refletia e relembrava, mais belo e mais agradável e mais desejável parecia-lhe o distante raio de luz, e afinal ele o reconheceu e lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

— Quero tentar — disse para o padrinho. — Tira de mim o velho encanto que não me ajudou, e dá-me em troca que eu saiba amar os homens!

Chorando caiu de joelhos diante de seu velho amigo e já na queda sentia como o amor por esse homem queimava dentro de si e como nele uma luta se travava para encontrar palavras e gestos de esquecimento. O padrinho porém, o pequenino homem, tomou-o suavemente nos braços e carregou-o até o leito, ali deitou-o e afastou-lhe os cabelos da fronte ardente.

— Está bem — murmurou ele baixinho — está bem, meu pequeno, tudo ficará bem.

Entretanto Augusto sentiu-se assaltado por um grande cansaço, como naquele instante tivesse envelhecido de muitos anos, caiu num sono profundo, c o velhote partiu silenciosamente da casa abandonada.

Augusto acordou com uma algazarra enorme, que ressoava por toda a casa, e quando se ergueu e abriu a porta mais próxima encontrou o salão e todos os quartos cheios de seus antigos camaradas, que haviam vindo para a festa e encontrado a casa vazia. Estavam irritados e desiludidos, e ele lhes foi ao encontro, a fim de vencê-los com um sorriso e um gracejo, como de hábito. Mas sentiu de repente que havia perdido esse poder. Mal o viram, começaram todos a gritar contra ele, e quando indefeso quis rir e estendeu a mão num gesto para proteger-se, caíram-lhe todos furiosos em cima.

— Vigarista — berrou um — onde está o dinheiro que me deves? — E um outro: — E o cavalo que te emprestei? — E uma bela e colérica mulher: — O mundo inteiro conhece meus segredos, que revelaste. Ah, como te odeio, monstro! — E um rapaz de olhos encovados gritou com o rosto retorcido: — Sabes o que fizeste de mim, Satã, corruptor de jovens?

E assim continuou, e cada um juntava sobre ele opróbrio e vergonha, e cada um estava certo, e muitos o espancaram, e quando se foram, e ao ir-se partiram o espelho e levaram consigo vários objetos de valor. Augusto ergueu-se do chão, batido c desonrado, c quando entrou no seu quarto e lançou um olhar ao espelho a fim de lavar-se deparou com um rosto murcho e feio, olhos vermelhos que lacrimejavam e da testa pingava-lhe sangue.

— Essa é a paga — disse para si mesmo e limpou o sangue do rosto, e mal tivera tempo de refletir um pouco, a casa foi penetrada por nova algazarra e pessoas que se arremessavam pela escada acima: Agiotas a quem ele hipotecara sua casa, e um marido, cuja esposa ele seduzira, pais, cujos filhos foram por ele atraídos ao vício e à miséria, e criados e criadas que ele despedira, policiais e advogados, e uma hora mais tarde conduziam-no algemado em um carro para a prisão. Atrás o povo gritava e cantava cantigas de escárnio e um moleque através da janela atirou um bolo de lama no rosto do repudiado.

A cidade estava já farta das infâmias desse homem, que tantos conheceram e amaram. Nenhum vício de que não fosse acusado, e nenhum que negasse. Pessoas que ele havia muito esquecera, diante dos juízes contaram coisas que ele fizera havia muito anos; criados a quem recompensara e que haviam roubado, contaram os segredos de seus vícios e cada rosto estava cheio de horror e de ódio, e ninguém ali falou por ele, ninguém o louvou, ninguém o desculpou ou teve dele boas lembranças.

Ele deixou que tudo acontecesse, deixou-se conduzir para dentro e para fora da cela, diante de juízes e testemunhas, com olhos doentes mirava triste e admirado os rostos maldosos, indignados, odientos, e em cada um sob a capa de ódio e de torpeza ele percebia luzir um encanto familiar e uma chama do coração. Todos esses uma vez o amaram, e ele a nenhum, agora pedia desculpas a todos e esforçava-se por ter deles uma lembrança boa.

Por fim foi posto numa prisão e a ninguém era permitido vê-lo, aí num delírio de febre falou com sua mãe e com sua primeira namorada, com o padrinho Binsswanger e com a dama nórdica do navio, e quando despertou, e seguiram-se dias horríveis, ele perdido e solitário, então sofreu toda a tortura da saudade e do abandono e suspirava por ver gente, como nunca antes suspirara por qualquer prazer ou bem material.

E quando saiu da prisão estava doente e envelhecido, e ninguém mais o conhecia. A vida seguiu seu curso, nas ruas dirigiram-se carros e cavalgou-se e passeou-se, frutas e flores, brinquedos e jornais foram postos à venda, só com Augusto ninguém se preocupava. Belas mulheres, que uma vez tivera nos braços ao som de música e champanhe, passavam por ele com suas equipagens, e atrás de seus carros levantava-se o pó sobre Augusto.

Mas o horrível vazio e a solidão em que estava asfixiado em meio à sua vida faustosa, esses abandonaram-no por completo. Quando penetrava num portão para proteger-se do calor do sol, ou quando pedia um gole d’água no pátio de trás de uma casa, então admirava-se de como as pessoas o escutavam rabugentas e hostis, as mesmas que dantes lhe foram gratas c com olhos brilhantes responderam a suas palavras orgulhosas e insensíveis. Entretanto agora a visão de cada homem o alegrava e comovia, amava as crianças que brincavam e iam à escola, e amava a gente velha que sentava em bancos diante de suas casinhas, aquecendo ao sol as mãos enrugadas. Quando Via um rapaz perseguir a uma menina com o olhar apaixonado; ou um operário num dia de descanso, que, saudoso do lar, carregava nos braços suas crianças; ou um médico fino e inteligente que silencioso e apressado conduzia seu carro e pensava em seus doentes; ou também uma prostituta pobre e mal vestida, que a noite aguardava sob um poste de luz, e mesmo a ele o renegado, oferecia seu amor, então todos esses eram seus irmãos e irmãs, e cada um trazia em si a lembrança de uma mãe amada e de um passado melhor ou a marca familiar de uma determinação mais bela e mais nobre e cada um lhe era simpático c digno e dava-lhe motivo para reflexões e ninguém era pior do que ele próprio se sentia.

Augusto resolveu percorrer o mundo e procurar um lugar onde lhe fosse possível servir aos homens de alguma maneira e mostrar-lhe seu amor. Ele precisava habituar-se com o fato de que seu aspecto já não fazia ninguém feliz; seu rosto estava emagrecido, suas roupas e sapatos eram os de um mendigo, e também sua voz c seu andar nada mais tinham daquilo que uma vez alegrara e encantara as pessoas. As crianças temiam-no, porque sua barba cinzenta comprida e eriçada descia até embaixo, os bem-vestidos evitavam sua proximidade, em que se sentiam mal e sujos, e os pobres desconfiavam dele, como de um estranho que lhes quisesse levar seus bocados. Assim era-lhe trabalhoso servir aos homens. Mas ele aprendia a não se deixava abater. Via uma pequena criança estendendo as mãozinhas para o fecho da porta da confeitaria e não alcançá-lo. Podia ajudá-la, e às vezes encontrava-se também um, ainda mais pobre do que ele próprio, um cego ou um paralítico a quem podia ajudar em seu caminho e fazer um pouco de bem. E onde isso não lhe era possível, aí dava alegremente o pouco que tinha, um olhar claro, bom e um aceno fraternal, um gesto compreensivo e de compaixão. Aprendeu a reconhecer no seu caminho o que dele esperavam, com que as pessoas se alegrariam: este com um cumprimento sonoro e jovial, o outro com um olhar silencioso e ainda um outro que simplesmente o evitassem e não o aborrecessem. Cada dia admirava-se de quanta miséria havia no mundo, e mesmo assim como os homens se divertiam, e entusiasmava-se de sempre tornar a ver como ao lado de cada dor achava-se um sorriso feliz, como ao lado de cada dobre de sinos achava-se um andar de criança, ao lado de cada sofrimento e maldade, uma gentileza, um gracejo, um conforto, um riso.

A vida humana parecia-lhe perfeitamente organizada. Quando dobrava uma esquina e um bando de meninos de escola atirava-se sobre ele, como resplandecia ali em todos os olhos coragem e alegria de viver e beleza juvenil, e quando troçavam dele e o atormentavam um pouco, isso não tinha tanta importância: era até compreensível, ele próprio quando se via em uma vitrina ou refletindo na água do poço ao beber, achava-se mesmo murcho e mesquinho de aparência. Não, para ele não se tratava mais de agradar às gentes ou experimentar poderes, disso já tivera bastante. Para ele era agora bonito e edificante ver outros esforçarem-se e ter sucesso naquele caminho que ele pisara uma vez, e como as pessoas perseguiam seus objetivos com tanto fervor e com tanta força e orgulho, isso lhe era um espetáculo maravilhoso.

Entretanto foi inverno e de novo verão, Augusto ficou longo tempo doente num hospital de pobres, e ali gozou, silencioso e agradecido, a fortuna de ver homens pobres e prostrados agarrarem-se à vida com todas as forças e desejos. Era divino notar a paciência crescendo nos suspiros dos doentes graves e a clara vontade de vida nos olhos dos convalescentes, e também eram belos os rostos calados e dignos dos agonizantes, e mais belo que tudo isso era o amor e a paciência das bonitas e limpas enfermeiras. Mas esse tempo também chegou ao fim, o vento do outono soprou, e Augusto, seguiu seu caminho, ao encontro do inverno, e uma estranha impaciência apoderou-se dele, como se visse com que lentidão avançava, pois queria ainda ir a toda parte e mirar ainda nos olhos tantos e tantos homens. Seu cabelo tornara-se cinzento e seus olhos riam tímidos atrás de pálpebras avermelhadas e doentes, e pouco a pouco também sua memória se turvara, de modo que lhe parecia nunca ter visto o mundo de outra maneira que hoje; mas estava feliz e achava o mundo maravilhoso e adorável.

Assim, ao romper do inverno chegou a uma cidade; neve amontoava-se pelas ruas escuras, e um par de garotos retardatários atiraram bolotas no caminhante, fora isso porém já havia um silêncio noturno. Augusto estava muito cansado, aí entrou por uma viela estreita, que lhe pareceu bem conhecida, e de novo por outra, e lá estava a casa de sua mãe e a do padrinho Binsswanger, pequenas e velhas, cercadas da neve gelada, e na do padrinho havia uma janela clara, tremulando vermelha e tranquila na noite de inverno.

Augusto entrou e bateu à porta da sala e o velho homenzinho foi ao eu encontro e conduziu-o calado até o quarto, lá estava silencioso e quente e uma chama pequena, clara ardia no fogão.

— Tens fome? — perguntou o padrinho. Mas Augusto não tinha fome, sorria apenas e balançava a cabeça.

— Mas deves estar cansado, não? — tornou a perguntar o padrinho, e estendeu no chão sua antiga pele, e assim os dois velhos acocoraram-se ao lado um do outro e olharam o fogo.

— Tiveste um longo caminho, — disse o padrinho.

— Ah, foi muito lindo, só fiquei um pouco cansado. Posso dormir aqui contigo? Então amanhã continuarei.

— Sim, podes. E também não queres tornar a ver os anjos dançarem?

— Os anjos? Oh, sim, quero muito, quando uma vez for de novo criança.

— Há tempo que não nos vemos — recomeçou o padrinho. Tu te tornaste tão belo, teus olhos são de novo tão bons e suaves como nos velhos tempos, quando tua mãe ainda vivia. Foste gentil em me visitar.

O caminhante quedava sucumbido perto do amigo. Nunca estivera tão cansado, e o agradável calor e a luz do fogo confundiam-no, de modo que não conseguia mais distinguir com clareza entre hoje e o passado.

— Padrinho Binsswanger — disse — fui de novo desobediente e a mãe lá em casa chorou. Deves falar com ela e dizer-lhe que quero tornar a ser bom. Sim?

— Sim — disse o padrinho, — mas descansa, ela gosta de ti.

Agora o fogo diminuíra, e Augusto mirava a fraca chama avermelhada com os mesmos olhos grandes e sonolentos, como da vez de sua antiga infância, e o padrinho tomou-lhe a cabeça no colo, uma música fina e alegre nasceu no quarto sombrio, suave e venturosa e milhares de pequenos espíritos brilhantes pairavam no ar e cruzavam-se com leveza e arte, entrelaçando-se, em volta uns dos outros e em pares. E Augusto olhava e escutava e abria seu coração infantil ao reencontrado paraíso.

Uma vez pareceu-lhe que sua mãe o chamara, mas estava cansado demais e o padrinho já havia prometido conversar com ela. E quando adormeceu, o padrinho juntou-lhe as mãos e escutou seu coração agora silencioso, até que no quarto se fizesse noite completa.

— Hermann Hesse, no livro “Sonho de uma Flauta e outros Contos”

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Assinatura de Hermann Hesse — Fonte: commons.wikimedia.org

Publicado originalmente no livro “Sonho de uma Fauta e outros Contos” de Hermann Hesse.

Texto copiado de https://www.pdf-archive.com/2017/06/05/herman-hesse-augusto/herman-hesse-augusto.pdf

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