“Caminhar não é um esporte” Frédéric Gros

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Ormando zhiOmn
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2 min readNov 16, 2020
Edição brasileira de “Caminhar, uma Filosofia” de Frédéric Gros

Caminhar não é um esporte. O esporte é uma questão de técnicas e regras, de números e competição, que exige toda uma aprendizagem: conhecer as posições, incorporar os gestos adequados. E depois, bem depois, vêm a improvisação e o talento.

O esporte é constituído de contagens: em que posição você ficou? Qual foi seu tempo? Qual o resultado? Sempre a mesma divisão entre o vencedor e o vencido, tal como na guerra — há um parentesco entre a guerra e o esporte do qual a guerra tira sua honra e o esporte, sua desonra: do respeito pelo adversário ao ódio pelo inimigo.

O esporte é também, obviamente, o senso da resistência, o gosto pelo esforço, a disciplina, uma ética, um trabalho.

Mas é além disso algo de material, revistas, espetáculos, um mercado. São performances. O esporte proporciona imensos cerimoniais midiáticos, apinhados de consumidores de marcas e imagens. O dinheiro toma-o sob controle para despojar as almas, e a medicina, para fabricar corpos artificiais.

Caminhar não é um esporte. Pôr um pé na frente do outro é uma brincadeira de criança. Nada de resultado, nada de números quando se dá um encontro: o caminhante dirá que caminho tomou, em que trilha se descortina a mais bela paisagem, a vista que se vislumbra de tal ou qual terraço.

Muito embora se tenha tentado criar um novo mercado de acessórios, calçados revolucionários, meias incríveis, mochilas práticas, calças funcionais… E se procure implementar o espirito do esporte: não se faz mais uma caminhada, se “faz um trekking”. Vendem-se bastões alongados que deixam os caminhantes com a aparência de improváveis esquiadores. Mas nada disso vai muito longe. Nem pode ir muito longe.

A caminhada — não se descobriu nada melhor para andar mais devagar. Para caminhar, são necessárias antes de tudo duas pernas. O resto é supérfluo. Querem andar mais depressa? Nesse caso não caminhem, façam outra coisa: rodem, deslizem, voem. Não caminhem. E depois, quando se anda a pé, só há um desempenho que de fato conta: a intensidade do céu, o viço das paisagens. Caminhar não é um esporte.

Mas, uma vez em pé, o homem não consegue ficar parado.

Frédéric Gros, no livro “Caminhar, uma filosofia” (Tradução de Lilia Ledon da Silva)

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