Capa de uma edição em português do livro “O Jogo das Contas de Vidro” de Hermann Hesse

“Letras” José Servo (Hermann Hesse)

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Ormando zhiOmn
2 min readMay 3, 2020

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Nós às vezes tomamos da pena e escrevemos
Sinais sobre uma folha branca de papel,
Dizem isto ou aquilo, e todos os conhecem,
É um brinquedo que tem as suas regras,
Mas se viesse um selvagem
Ou habitante da lua,
E seus olhos curiosos, ávidos de conhecer,
Caíssem nessa folha de papel,
Nesse campo sulcado de ruínas,
Receberia uma imagem
Fixa e estranha do mundo.
O A e o B seriam para ele
Homem e animal,
Olhos, línguas, membros a mover-se,
Ora ponderados, ora impetuosos;
Leria como na neve as pegadas do corvo,
Havia de correr, de repousar,
Sofrer, voar com essas letras,
E da criação veria as possibilidades todas
Fantasmagorizar pelos negros e fixos sinais,
Deslizar pelas barras de ornamentos;
Veria arder o amor, estremecer a dor,
Havia de espantar-se, rir, chorar, tremer,
Porque, por detrás dos gradis
Barrados dessa escrita,
Surgiria em miniatura o mundo inteiro,
Em seu ímpeto cego, transformado
Em anão, enfeitiçado nesses caracteres
Prisioneiros, os quais, em passos tesos,
De tal modo se igualam,
Que o ímpeto da vida e do morrer,
Volúpia e sofrimento, irmanam-se,
Mal se diferenciam…

Finalmente o selvagem gritaria,
Presa de medo insuportável,
E então atiçaria o fogo,
E batendo na testa, por entre litanias,
Ofertaria às chamas
A branca folha rúnica.
E talvez pressentisse, adormecendo,
Que esse mundo inexistente,
Ilusionismo, invento insuportável,
Retornava ao nada,
Sugado, levado para a terra de ninguém,
E então o selvagem haveria
De suspirar, de rir e de sanar.

— José Servo (Hermann Hesse)

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Copiado do livro “O Jogo das Contas de Vidro” (publicada em 1943)

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