“Matéria de Poesia” Manoel de Barros
Poema do livro “Matéria de Poesia”
1.
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia
O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia
Terreno de 10 x 20, sujo de mato — os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia
Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia
As coisas que não levam a nada
têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima
Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral
O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia
As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia
As coisas que os líquenes comem
— sapatos, adjetivos —
têm muita importância para os pulmões
da poesia
Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia
Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso
Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta
Pessoas desimportantes
dão pra poesia
qualquer pessoa ou escada
Tudo que explique
a lagartixa da esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia
O que é bom para o lixo é bom para a poesia
Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços
As coisas jogadas fora
têm grande importância
— como um homem jogado fora
Aliás é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória
As coisas sem importância são bens de poesia
Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho.
2.
Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia:
a — Esfregar pedras na paisagem.
b — Perder a inteligência das coisas para vê-las. (Colhida em Rimbaud)
c — Esconder-se por trás das palavras para mostrar-se.
d — Mesmo sem fome, comer as botas. O resto em Carlitos.
e — Perguntar distraído: — O que há de você na água?
f — Não usar colarinho duro. A fala de furnas brenhentas de Mário-pega-sapo era nua. Por isso as crianças e as putas do jardim o entendiam.
g — Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos, teréns de rua e de música, cisco de olho, moscas de pensão…
h — Aprender a capinar com enxada cega.
i — Nos dias de lazer, compor um muro podre para os caramujos.
j — Deixar os substantivos passarem anos no esterco, deitados de barriga, até que eles possam carrear para o poema um gosto de chão — como cabelos desfeitos no chão — ou como o bule de Braque — áspero de ferrugem, mistura de azuis e ouro — um amarelo grosso de ouro da terra, carvão de folhas.
l — Jogar pedrinhas nim moscas…
3.
Então — os meninos descobriram que amor
Que amor com amor
Que um homem riachoso escutava os sapos
E o vento abria o lodo dos pássaros.
Um garoto emendava uma casa na outra com urina
Outros sabiam a chuvas. E os cupins
Comiam pernas de armário, amplificadores, ligas
religiosas…
Atrás de um banheiro de tábuas a poesia
Tirava as calcinhas pra eles
Ficavam de um pé só para as palavras —
A boca apodrecendo para a vida!
De tarde
Desenterraram de dentro do capinzal
Um braço do rio. Já estava com cheiro.
Grilos atarraxados no brejo pediam socorro.
De toalha no pescoço e anzol no peixe
Eles foram andando…
Botavam meias-solas nas paisagens
E acendiam estrelas com lenha molhada.
Acharam no roseiral um boi aberto por borboletas
Foi bom.
Viram casos de ostras em canetas
E ajudaram as aves na arrumação dos corgos
A todo momento eles davam com a rã nas calças
Cada um com a sua escova
E seu lado de dentro. Apreciavam
Desamarrar os cachorros com linguiça.
À margem das estradas
Secavam palavras no sol como os lagartos
Passavam brilhantina nos bezerros. E
Transportavam lábios de caminhão…
Nunca poucos fizeram tantos de pinico!
Só iam para casa de lado — como uma pessoa
Que tem cobra no bolso.
E para cada mão — os cinco dedos de palha
— Manoel de Barros