“O Desfiladeiro” Hermann Hesse (Livro “Caminhada”)

zhiOmn Ormando
Ormando zhiOmn
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3 min readFeb 16, 2021

O vento sopra nesse pequeno e corajoso caminho. Já não existem árvores ou arbustos, só o musgo e a rocha crescem aqui. Por aqui ninguém tem nada para procurar, ninguém tem propriedade. Aqui no alto, o camponês não tem nem feno, nem madeira. É o longínquo que atrai, a saudade que queima, foi ela que entre as rochas formou esse pequeno caminho, entre pântano e neve, levando para outros vales, outras casas, outras línguas e outra gente.

Bem no alto do desfiladeiro, eu paro. O caminho aqui desce para os dois lados, a água corre para ambos os lados e o que aqui em cima se une, palmo a palmo, leva seu rumo para dois mundos. Essa pequena poça, aqui junto do meu pé, corre para o norte. Sua água desce a longínquos, frios oceanos, mas logo ali, esse pequeno resto de neve vai pingando para o sul. Sua água, descendo pelas costas da Ligúria ou do Adriático, chega até o mar que se delimita com a África. Mas, na verdade todas as águas do mundo se encontram e é no úmido voo de uma nuvem que o Ártico e o Nilo se fundem. A bela e antiga parábola santifica meu instante. Também a nós, viajantes, qualquer caminho conduz para casa. Meu olhar ainda tem opção: tanto o norte como o sul lhe pertencem, a cinquenta passos, porém, só me restará aberto o sul. Como respira cheio de segredos, com seus vales azulados! Como é forte o bater do meu coração a ele me entregando! É o prenúncio de lagos e de jardins, e o odor de vinho e amêndoa sobe até aqui em cima. Antigo e santo mito de saudade e peregrinação a Roma!

Recordações da juventude ressoam em mim como o repicar de sinos em vales distantes: o êxtase da primeira viagem ao sul, o inspirar inebriante do generoso ar dos jardins às margens dos lagos azulados, ao entardecer espreitar até a longínqua pátria através dos picos nevados das montanhas que empalideciam! A primeira prece defronte às santas colunas da antiguidade! A primeira e fabulosa visão do mar espumante batendo-se contra as rochas escuras!

O êxtase já não sinto, nem mais o desejo de mostrar a todos os meus entes queridos esse maravilhoso desconhecido e toda a minha felicidade. Em meu coração não habita mais a primavera, já é verão. É diferente o tom da saudação do estranho que chega até a mim, em meu peito o seu eco ressoa bem mais baixinho. Já não jogo o meu chapéu para o alto, nem canto nenhuma canção, mas sorrio, não só com a boca, mas com a alma, com os olhos, com todo o meu ser e ofereço para essa terra, cujo perfume sobe até a mim, sentimentos bem diversos dos de outrora, mais sensíveis, mais perspicazes e experientes, porém mais calmos e mais agradecidos. Hoje, tudo isso me pertence muito mais do que antes, chega a mim com muito maior riqueza e colorido. A minha saudade já não falsifica as cores do desconhecido, meus olhos se satisfazem com aquilo que aí está, pois já aprenderam a ver e o mundo ficou mais belo do que outrora.

Sim, o mundo está mais belo e eu estou só, mas não sofro em ser só. Não desejo nada diferente. Estou disposto a deixar-me assar pelo sol, estou ansioso em amadurecer. Estou pronto para a morte, pronto para renascer, pois o mundo ficou mais belo.

— Hermann Hesse, no livro “Caminhada”

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